Sei exactamente a data em que as unhas dos
pés começaram a crescer descontroladamente, porque passava na rua a
manifestação dos desempregados da fábrica de aspiradores, fechada sem aviso
prévio a 14 de Fevereiro, precisamente o dia em que deixei cair o corta-unhas
do quinto para o parapeito do segundo andar, onde Dona Rogélia, entre vozes e
cabeça virada para cima tentava descobrir de onde caíra aquela testemunha das
unhas que mensalmente, lhe caiam sobre a roupa estendida.
Eu, encolhido rapidamente para dentro
evitando a denúncia, pensava tristemente como iria estar nesse jantar, com as
mãos aparadas, mas com os pés interrompidos pela trágica queda do corta-unhas,
depois do investimento feito nas rosas vermelhas, graças à ajuda de um santo
chamado Valentim, que me colocaria sentado frente a frente com a mulher mais
fascinante que conhecera até esse dia.
Convidara-a para uma ceia romântica, onde
com as poupanças de uma catrefada de meses lhe iria pedir, anel de brilhantes
em caixinha aberta, que passasse o resto da sua vida comigo.
Comprara nos novos armazéns da cidade, teia
colorida de mil luzes e cores propositadamente atractivas, um não menos
atractivo fato às riscas, teia propositada também, com colete, uma gravata e
uma camisa branca que desse saída ao único que tinha, uns botões de punho de
ouro branco, tirados depois do velório e antes de baixar à terra, dos pulsos do
meu avô paterno que para onde ia não lhe fariam falta, visto que cá, apenas os
tinha usado três vezes durante os noventa e dois anos que andou de pé, mais os
nove meses de gateio e os quatro de colo e mama, que se lembrasse, e uma que
jamais se lembraria. No dia do casamento, no baptizo do primeiro filho, quando
o neto fez o exame da quarta-classe e agora ali, naquela cama com paredes de
madeira próximas e tecto baixo que o levariam a não recordar esse último
pormenor.
Quando ela entrou, sentiu que a sua vida mudaria a partir desse dia e
quando o empregado de casaquinho branco e lacinho preto no pescoço acendeu a
vela da mesa, sentiu que os seus dedos, olhos e restantes instrumentos dos sentidos,
iam embrulhados naquela luz que lhe emoldurava o rosto, a afagava com brilho e
fazia realçar o vermelho vivo dos lábios que seriam dele para sempre.
Saíram do restaurante, ignoraram as outras festas de corações da cidade e
meteram-se na cama do seu quinto-andar.
Foi aí, que duas dores fortes nos dois dedos gordos dos pés, o fizeram
estremecer.
Tentou escondê-los quando notou que as unhas começaram a crescer desordenadamente.
Furavam os lençóis e atordoado viu como uma delas, lhe aparecia
desafiante depois de cruzar os cobertores, na parte superior da colcha. Tentou
mover-se, mas era já impossível. O braço que repousava sobre o corpo da sua
amada, era uma armadilha, uma prisão, fechada pelas unhas da mão que tinham
crescido e se cravavam no colchão, se enrolavam nas molas e tiveram a ousadia
de ter perfurado a tábua que sustentava o peso da horizontalidade das
comodidades do descanso. A do dedo mínimo, tocava mesmo o chão, começando como
raiz fascicular a desenvolver-se espalmada no solo e tentando mesmo
introduzir-se no sobrado de madeira. Tinham entretanto já aflorado as unhas dos
pés na parte superior dos cobertores e enrolavam-se como vides nos florões
forjados e nas colunas finas da cama de ferro.
Suava e a ânsia fazia-me dificultar a respiração. Pedia a Deus, aos anjos
e santos que ela não despertasse e as minhas extremidades, alongavam-se por
todo o quarto tendo a única pessoa que o sabia, aprisionada, apavorada,
silenciosa pela vergonha e imobilizada pela incapacidade de qualquer movimento.
Eu próprio. Numa angústia e numa incapacidade de resolução que me retirava
qualquer veleidade de vislumbrar, mesmo que em pensamento, uma solução para
tamanho problema, muito mais quando reparei que uma unha já grossa como caule
resistente, se tinha espetado furiosamente no candeeiro do tecto, e abafado com
o seu rápido enrolamento, o artefacto, rompendo lâmpadas e mergulhando o quarto
numa escuridão total.
Quatro, cinco estrondos, que de início julguei vindos da manifestação de
desempregados da fábrica dos aspiradores que gritavam na rua em protesto contra
as minhas unhas, que só aí entendi serem as responsáveis por aquela falência
que atirou para o desemprego, todos aqueles empregados com mulher e filhos.
Julguei serem bombas, agora que o terrorismo estava tão em voga, mas não,
batiam à minha porta, com força.
Lembrei-me de quando brincava na rua aos polícias e ladrões, às pistolas
e às ordens claras.
Olhei as mãos, os pés, o candeeiro, o colchão e beijei suavemente a
mulher que tinha ao lado, não percebendo que a manifestação, as bombas e as
unhas eram fruto de um pesadelo, perpétuo, que me golpeou, como qualquer bom
pesadelo, realçando o medo que desde criança tinha em cortar as unhas.
Nunca ninguém acreditou que me doíam quando eram cortadas, nunca ninguém
acreditou nesse momento de pânico.
Batiam à porta, com força, como as bombas que me despertaram.
Vesti o roupão calmamente, agora que tudo tinha passado.
Abri a porta, e ali estava ela, a vizinha do andar de baixo, o corta-unhas
na mão como arma:
- Aqui está! Sabia que era você que me salpicava a roupa de unhas
grandes, grossas e amarelas.
Apenas lhe adivinhava os lábios, dizendo, como quando a minha mãe trazia
a tesoura:
- Mãos ao ar.
Perante o corta-unhas apontado ao meu peito, pela vizinha do segundo
andar, levantei os braços em sinal de rendição, como o menino polícia da minha
rua quando descobria o meu esconderijo de menino ladrão.
Tinha sido descoberto.
Aragonez Marques
In SINÓNIMA E OUTROS CONTOS... em fase de revisão...