viernes, 12 de julio de 2019

MARGENS DE UM RIO VIOLENTO / UM CHEIRINHO ANTECIPANDO SETEMBRO


Na primeira quinzena de setembro estará na rua a reedição de "Margens de um Rio Violento" inserido por Filigrana Editora como o livro dois, na Coleção Aragonez Marques.

Com personagens de fábula, o Chico Orelhas, o Pirata, o Popular, o Mãos de Sabão, o Piriscas, o Cegonha, o Professor Sérgio e outros, "Margens de um Rio Violento" é um livro desenvolvido no cenário de um Reformatório, nos finais da década de 70 e princípios de 80.

Quem se não lembra da Colónia Penal de Vila Fernando/Elvas ou de São Bernardino /Peniche? 

Os Institutos de Reeducação de Menores espalhados pelo país eram armazéns de crianças e jovens, delinquentes ou órfãos colocados aí por ordem dos tribunais. 

Esta novela, começada a escrever há mais de quarenta anos como denúncia, editada há trinta como relato de experiências, será reeditada por Filigrana Editora em setembro de 2019, como retrato de uma época.

Deixo um cheirinho:

65.
- Vocês vão "dar de froscas" porra. Eu quero ir.
Popular e Chico Orelhas ficaram atónitos. Renato estava ali. Apercebeu-se de tudo. E agora?
- Deixa-te de histórias Piriscas, que conversa é essa? "Dar de froscas" queremos todos.
- Disse-me o passarinho - respondeu o Piriscas trocista, enquanto afagava a cabeça do pardal que assomava no bolso da camisa verde de ganga.
Popular olhou para o amigo como se tivessem sido apanhados em flagrante.
Tinha que decidir rápido.
Abortar o plano? Avançar com o Piriscas?
Esta decisão perturbava Chico Orelhas que adivinhando os pensamentos do amigo, pressentindo a decisão do adiamento, fixou Franco nos olhos e disse-lhe:
-Prefiro morrer. Quero sair daqui. Ele que venha. Não penses adiar esta merda. Sermos dois ou três é o mesmo, vamos porra, vamos... e abanou o corpo de Popular como que para o acordar de um sono profundo.
Popular pegou na mangueira.
-Logo que aqui passarmos, abres a porta de trás, saltas lá para dentro e nós arrancamos.
-E eu acredito nisso? - disse o Piriscas - vocês montam-se no carro e eu nunca mais os vejo. Nem pensem, eu ajudo o Orelhas a levar o balde.
-Não, pegas na ponta da mangueira e vais ligá-la à torneira. Quando eu te disser para ligares a água, abres a torneira e arrancas a correr para o carro. Rápido, alteramos o plano e vamos a isto já, saímos os três ao mesmo tempo. Vamos embora.
Pegou na ponta da mangueira e saiu do armazém em direcção ao carro.
A mangueira começou a desenrolar.
Atrás dele saiu Chico com o balde.
O Piriscas pegou na outra ponta da mangueira e avançou para a torneira.
Quando chegaram ao carro cada um foi para o seu sítio.
- Liga a água - gritou o Popular ao Piriscas.
O rapaz abriu a torneira. A água começou a correr por dentro do comprido tubo azul. Chico Orelhas dentro do carro tocava os fios. A ligação directa foi perfeita e o carro começou a trabalhar. Piriscas correu a toda a pressa e entrou para ele já a primeira estava metida e a viatura a arrancar.
O monitor ficou estupefacto, correu para o meio do pátio.
A rapaziada começou aos gritos, eufórica. Batiam as palmas e gritavam.
- Arranca para o portão porra, arranca para o portão, não dês cabo disto, arranca para o portão!
Chico Orelhas não o ouvia. Sentia-se o actor do alarido. Fez um pião no pátio, avançou em sentido contrário ao portão, direito à palmeira grande.
- Que estás a fazer porra? Vamos embora, vamos embora!...
Deu três voltas à palmeira embriagado pelo êxito.
A malta gritava, aplaudia, endoidecia.
Depois de lhe enfiar uma segunda, aceleraram a fundo, largou o travão de mão auxiliar dos volteios, apontou ao portão, terceira, pé no fundo, a grande porta do Instituto cresceu para eles por detrás do monitor de braços abertos que berrava e saltou da frente no último momento.
Passaram o portão diabolicamente a uma velocidade que ninguém tinha feito. Entraram na liberdade e deixaram para trás três heróis nas bocas dos companheiros que rejubilavam, sentindo o feito, como coisa sua também.
Faustino correu para o telefone.
Tinha que ligar rápido para a Guarda Republicana.
- O meu carro porra, o meu carro...

(...)

Aragonez Marques
(in Margens de um Rio Violento, 
no prelo)