viernes, 7 de julio de 2017

Excerto / A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL


 (...)

António Fagundes Fonseca deitou-se de papo para o ar, colocou os braços por detrás da cabeça e viu como Mariana, robe vestido, andava de um lado para outro. Fazia-o sempre que se sentia insegura. Agora faltava a mala. António sabia que a mulher, acabaria por trazer a mala para o toucador, colocaria um saco plástico no chão, e começaria a rasgar papéis e a desfazer-se da tralha. Era sempre assim, fora sempre assim. Quando estava intranquila, Mariana arrumava desarrumando o saco fundo das surpresas que a acompanhava sempre. Aquele poço sem fim, das coisinhas, dos restos e das necessidades na hora, enchia todos os meses, e na hora que menos se esperava, mas coincidindo sempre com as insónias de Mariana, era esvaziado e separado das inutilidades e exageros. Era como se ao arrumar a mala, se arrumasse a si própria e num ritual, que ele conhecia de muitos anos de cumplicidade, despejava-a e despojava-se, terminando sempre pela carteira que guardava para último, atafulhada de papéis e papelinhos que eram vistos e rasgados, emagrecendo-a e reduzindo-a até ficar apenas com as fotografias dos netos, do marido e dos trocos. A carteira era o coração da mala, e se libertava o corpo, acabava sempre por libertar a alma.
- Já está!
Pensou António Fagundes Fonseca quando a viu colocar o saco de plástico no chão e a mala volumosa, castanha e com alça a tiracolo, sobre o tampo de mármore do toucador.
Apenas se ouviu de início o ruído metálico do correr do fecho, depois multiplicaram-se sons de fundo, arrastados, abafados, embrulhados. – Onde está o leque?- pensou António depois de ter visto sair a escova do cabelo, um espelho redondo, umas chaves, outras chaves, um lenço branco amarrotado, outro lenço maior e colorido, uns óculos de sol, batom, lápis dos olhos, rímel, tudo por separado e espalhado, uma bandolete, uma tesoura, uma fita métrica desenrolada, um pacote encetado com três bolachas Maria esquecidas, uma chupeta da neta, o missal e o véu, a última imagem impressa de Santa Glorieta (que colocou dentro do missal), a caixinha redonda com o terço dentro comprado em Fátima, um corta-unhas, um frasquinho de perfume, falta o leque, falta o leque, António continuava a olhar e o leque passou a ser uma obsessão, umas cuequinhas dobradas preventivas de eventual incontinência, uma lima, duas castanhas piladas, a caixinha das aspirinas, e o leque? Suspirava mentalmente António, dois pensos rápidos e um urgente, um embrulhinho em papel de prata que desembrulhado mostrou o resto de uma banana (acabaram ambos no saco de plástico), um carrinho de linhas com uma agulha enlaçadamente espetada, umas luvas de pele fina, António olhava-a como se olha um mágico tirando mundos da cartola, e o leque?... tirou a carteira do dinheiro e das fotografias, o coração, esvaziou-a, colocou-a sobre a cama, rasga ali, rasga aqui, bolinha, papelinho e mais papelinho, saco plástico…
Agarrou a boca da mala, espreitou lá para dentro como quem espreita um precipício profundo e escuro, virou-a, abanou-a e nada mais, estava limpa, esventrada, vazia, desinflada:
- António, perdi o leque!
- Eu sei.
Mariana sentiu-se também melhor, despejada, mais leve e tranquila.
- Anda para a cama, anda.

Mariana soltou o cabelo, despiu o roupão, puxou um pouco a camisa de dormir para poder dobrar os joelhos, beijou o marido e meteu-se na cama, sobre ele. O coração da mala caiu para o chão, aberta no retrato dos netos, e ai ficou até que amanheceu.
(...)

in a Mulher do Sargento Espanhol
(em breve nas livrarias)