martes, 22 de julio de 2014

A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL NO SEMANÁRIO FONTE NOVA

Numa homenagem aos
 Bombeiros Voluntários de Portalegre e 
aos Professores 
António Freire e Martinó Coutinho, 
o Semanário Fonte Nova,
 publica na edição desta semana um extracto
para leitura de férias, da
 Mulher do Sargento Espanhol
 a editar muito em breve.
Boas Férias e Boas Leituras.


O jogo de luzes conjugado com o arco, 
dão-nos uma noção de profundidade que parece que entramos por Portalegre dentro,
 com a caneta do João Trindade
 pela porta do Fonte Nova. 
Uma das melhores capas deste jornal.
 Tenho orgulho de fazer parte deste número 


domingo, 20 de julio de 2014

A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL / Cap. 55 como cheirinho...



55. Esperança, Esperancinha, Cinhona, Cinha

Dona Cinha, apenas tinha ganho o nome de Dona, e mesmo de Cinha, há quatro anos, quando depois da morte do marido, asfixiado por uma espinha de cação escondida no tomate da caldeirada, baixou de Peniche para Lisboa, com os quilos de gordura coleccionados nos últimos vinte anos, jurando a si mesma não mais meter na boca qualquer animal que tivesse espinha ou osso, tornando-se deste modo numa vegetariana fanática, que a adelgaçou e secou, levando-a a ser conhecida por Dona Cinha em vez de a Cinhona como nos anos em que viveu com o marido, gestionando uma taberna na estrada que levava ao Cabo Carvoeiro.
Foi uma mudança radical na sua vida, mais uma, desconhecendo, que não seria a última.
Tinha conhecido o marido numa procissão do Senhor dos Passos em Portalegre de machado e capacete polido, luvas brancas, cordão branco caindo sobre os botões dourados, marchando perfilado, bandeiras à frente e passo certo.
O bombeiro mais fardado que já vira.
Ela tinha descido à cidade, na folga que a senhora lhe dera para assistir à morte do Senhor. Trouxera-a o lavrador no carro, da aldeia para a cidade, mão esquerda no volante e a direita entre as suas pernas nuas, como habitualmente sempre que viajavam sozinhos e a sentava no banco da frente. Permitia-lhe ela como um costume, já um hábito, uma cláusula secreta assinada por medo de dizer não, naquela entrega da sua vida para o serviço da quinta, propriedade, como o cavalo, o sofá, o candeeiro italiano e tudo o que no universo onde vivia, de um só dono. Romão Papafina era rei, presidente, chefe, pai, proprietário sem reservas, de tudo e todos os que gravitavam no seu enorme espaço.
Piscou-lhe o olho o bombeiro, um rapaz da sua idade.
Sentiu que seria possível outra vida. Jacinto passou a ir à aldeia e ela, sempre que a folga era possível, agarrava a camioneta da carreira e rumava à cidade, hipnotizada pelas suas histórias de caserna voluntária.
Eram diferentes os beijos que lhe dava. Centravam-se nos lábios e na pele, dias e dias consecutivos, e os dedos, com respeito, baixavam no seu corpo poucos centímetros por semana e só um dia muitos e muitos dias depois, com dois verões e a terceira primavera pelo meio, se atreveram a dominar­-lhe por completo o corpo. De Esperancinha a Esperança e de Cinhona a Dona Cinha, apenas guardava uma mágoa imensa de nunca lhe ter contado que já tinha sido mãe, de um filho que nunca viu e que lhe nasceu morto e escondido, entre os muros de um convento. Há segredos, que devem manter-se sempre em segredo, porque o desconhecimento é garantia da felicidade de todos, menos de quem o guarda ou reserva para si.
Foram felizes.
Ele fora criado praticamente no Quartel, desde os catorze anos, começando a brincar entre a ambulância amarela e o auto-tanque. Aquele quartel era a segunda casa de muito bombeiro, mas a primeira de muita gente.
Ali se passavam os dias como uma pequena família doentia, sem outro mundo, esperando avidamente que a sirene tocasse, muitas vezes em angústia, porque não tocava, e uma festa quando o som invadia a cidade, interrompendo o vazio de onde nada acontecia, num gemido continuo quando o sinistro era na cidade ou com pausas como música, debaixo para cima e de cima para baixo, quando era fora dela, no campo, a parte de fora das casas juntas.
Não era uma profissão.
Havia uma carga militarizada e hierárquica, encapotada com um voluntariado balofo de estado novo, onde entre Jacinto e os muitos companheiros, apenas dois sabiam ler e escrever. Mas eram aventureiros e faziam dos fogos as suas vidas. O auto-tanque, vermelho, tinha capacidade para dez homens. Quando a sirene se transformava em nuvem sonora caída sobre as ruas, sobre os prédios, entrando por portas e janelas mesmo fechadas, era hora do privilégio de virar as costas aos patrões e mostrar galhardamente a todos a coragem de pertencer ao Corpo, correndo à civil, rua do Comércio acima ou rua da Cooperativa abaixo até ao Quartel. Partiam os primeiros dez a chegar, depois de vestir os macacos azuis e atarraxarem os bivaques à cabeça. Chegavam a discutir, a empurrar e esbracejar até sentirem o cú na meta de couro castanho dos dois assentos virados um para o outro. Os atrasados ficavam aí, desgosto no corpo, pedindo a Deus que o sinistro fosse grande, grande a valer, para sair outra viatura. Dentro da cabina, os felizardos davam azo à vitória, vidros abertos, braços esticados e mãos contra o vento enquanto as luzes rolavam no tejadilho anunciando a urgência e o apito agudo da viatura gritava num gemido doloroso, estrada fora, enrolando-se com as luzes azuis. Ao detectar o fumo ao longe uivavam como grito de guerra alvoraçado e ébrio:- Já “chera”!! – E se era fogo pequeno: - Bela merda, isto apagasse com uma mijadela - e se era grande, o êxtase misturava-se alegremente com a adrenalina e o – Já “chera”!! - transformava-se em ordem de ataque, até que as portas se abriam e caíam sobre o mato em chamas, batedores de madeira com pontas de lona, socando e varrendo com força, garra e ódio, o laranja das labaredas até as destruírem com brio e galhardia.
Às vezes ficavam vários dias, lutando e suando, tendo como inimigos a cortiça da Robinson e a Serra de São Mamede. As populações levavam da Serra Leite, pacotes triangulares, último grito da moda da cooperativa, e os homens bebiam-nos pelo bico como chupando teta de vaca.
Só a lixeira da Câmara era vista como batalha chata e pouco digna, mal cheirosa e ingrata por ser sistemática, muitas vezes, duas e três por semana.
Quando o tédio invadia o quartel muitos dias seguidos sem movimento belicoso, ouvia-se repetidamente suspirar pelos cantos:- Porra, que chatice, pelo menos que arda a lixeira - e como por milagre, ardia.
Eram homens preparados, treinados no risco.
- Ai homem de Deus, tenho mais medo quando vais ao treino que quando vais ao fogo.
Formavam por trás da Fábrica Real, no esqueleto preto de madeira com vários andares e janelas, onde os meninos no verão trepavam e se escondiam para ver à borla o cinema ao ar livre.
- Descansar!
Abriam as pernas, mãos atrás das costas e esperavam ordens.
- Subir dois a dois, tu e tu.
Tiravam as escadas curtas e estreitas com gancho na ponta, do carro dos bombeiros, alçavam-nas até à janela do primeiro andar onde as penduravam, trepavam por elas, sentavam-se no parapeito, uma perna para cada lado, subiam-nas a pulso e enganchavam-nas nas janelas do segundo andar, subiam, sentavam, puxavam, terceiro andar e assim sucessivamente até ao último piso. Aí se juntavam todos vendo a cidade de cima, até chegar o instrutor com a manga. Os graduados, com meia dúzia de homens que não subiram ficavam em baixo, pequeninos, olhos no alto. Encima havia nomes alados, Canário, Cara de Anjo, trepadores, Lagarto e até nomes artísticos que poderiam ser de circo como Bilé ou trágicos para quem olhava a insegurança do treino, Picado.
- Tu e tu, baixem às costas dois aspirantes.
Enrolados com unhas e dentes aos ombros dos experimentados bombeiros de primeira, os aspirantes fechavam os olhos e faziam o percurso inverso com confiança cega no homem que baixava e encaixava a escada, peitoril a peitoril, até ao chão, lanço a lanço no sentido inverso da subida.
- Baixem a manga!
Soltava-se do último andar o tubo de lona branco sujo. Em baixo enrolavam-lhe a ponta, afunilando-a e travando a velocidade da descida. Encima, os futuros bombeiros e os bombeiros de terceira, entravam no buraco escuro, um a um, e escorregavam túnel sem luz, respiração parada pela rapidez até ao chão. Um, dois, três, todos. Formavam então novamente à voz do comando.
- Não esqueçam, se forem mulheres a ser salvas, têm que baixar de cabeça para baixo ou queimarão as pernas no atrito do roçar da lona manga abaixo.
Arrumava-se o material e tinha acabado mais um treino, sem acidentes, milagrosamente, como sempre.
Deus protege os audazes.
Se não fosse naquele dia o desentendimento, Jacinto não tinha abandonado o grupo e quem sabe, se esta história não seria diferente.
Soara a sirene como tantas vezes, intermitente como em milhares de dias, na Serra de São Mamede como em centenas de ocasiões.
Saíram várias viaturas, não houve necessidade de briga pois havia lugar para todos. Pararam numa clareira, as montanhas e as árvores pela frente.
No alto, fumo.
- O incêndio está crescendo do outro lado. Não há estradas nem caminhos até lá. Os carros ficam aqui. Iremos a pé. Só fica um motorista com a viatura.
Dez homens carregados, com água às costas em pesados depósitos de cobre, batedores nas mãos, sacrifício serra acima. À frente o chefe do grupo gritava: - Vamos, força, mexam-se, quando lá chegarmos já não há nada. - Quase duas horas de subida, pedras tropeçadas, pesavam os ombros, raiva e dor, o chão de caruma afiada, mas chegaram. Cansados aliviaram a carga como contrabandistas mal pagos de café em esforço, ou carregadores de mantimentos nas subidas do Tibete.
Fresco estava o chefe, o único que não levava carga.
- Irra, esqueci-me do rádio na viatura. Trinta e três, vai lá abaixo buscá-lo.
O trinta e três era Jacinto, esgotado e mal disposto.
- Vá você!
Essa desobediência a uma ordem de um seu superior levou-o a um processo disciplinar que acabou com oito dias de suspensão sem poder entrar no quartel.
- Pois nunca mais cá entro!!
E nunca mais entrou, dando por terminada a sua missão voluntária nos bombeiros.
Meses depois, órfão de amigos e da casa de sempre, fugiu com a criada de Romão Papafina, primeiro para Lisboa, depois para Peniche. Montou uma taberna onde Esperancinha coleccionou vinte quilos em vinte anos e que só o malfadado osso de cação interrompeu.
Esperança apenas guardou dele o bivaque, que emoldurou com vidro e tudo, e fazia parte da parede da sala.
Atravessou um período difícil sem família e sem Jacinto.
Acabou por ter que fechar a taberna e os rendimentos foram-se como as encomendas sem dinheiro que ficam no Cabo Carvoeiro.
A Cáritas cuidou dela algum tempo, mas foi Foluke, a amiga voluntária que trabalhava na entrega de alimentos na zona centro, que lhe deu ânimo para recomeçar a vida. Recuperou a dignidade em Lisboa e quatro anos após a morte de Jacinto, Dona Cinha era querida por todos, encerrando a cadeado, julgava ela, o passado.
O segredo, continuou a guardá-lo só para ela, estava decidido, até à tumba.
Dona Cinha não sabia que o destino não pára, apenas porque decidimos atá-lo, com a mordaça do silêncio.

 in A Mulher do Sargento Espanhol
(a publicar em breve)

CRÓNICA DO SEMANÁRIO FONTE NOVA DE MAIO - EXAMES




Exames 

Passou o mês de Maio sem novidades, neste escorregar vertiginoso até ao Portugal de há quarenta anos, onde teimam em colocar-nos.
Passou Maio com Fátima a 13, o Benfica a 14 e os exames da quarta classe a 19 e 21.
As eleições a 25, sem graça e a marcarem “necessidades de entendimento” entre os dois maiores partidos europeus, assim à laia de partido único.
Por cá, o desencanto, a abstenção recorde de um punhado de gente sem esperança que pensa que a democracia é isto.
Mas é a escola, que sempre pensei como estrada de futuro, aquilo que mais me preocupa. Este regresso ao passado, não estaria mal se fosse transporte de festa à década de oitenta, onde curiosidade e sonho, fazia de cada sala de aula um laboratório de criatividade.
O património das escolas de Magistério, dos anos que se seguiram aos cravos, foi desmantelado. As escolas de formação de professores, repletas de especialistas, enveredaram por um academismo pacóvio, que terminou na ignorância sobre a monodocência, um pouco (ou muito) como os padres da igreja católica que fazem formação a jovens casais frente ao matrimónio. Quantos professores com pelo menos dois anos de docência no primeiro ciclo (e já é pedir muito), fazem parte dos quadros das escolas de formação de professores, sejam universidades ou politécnicos?
Acabam assim metendo a mão numa massa que desconhecem e para a qual não têm a noção da quantidade de fermento necessário.
Desrespeitam-se os processos educativos, desconhecem-se as etapas de desenvolvimento da criança, abafa-se a psicopedagogia, ignoram-se os diferentes ritmos de aprendizagem, destroem-se os recursos e as condições para um ensino individualizado, finge-se desconhecer ou desconhece-se mesmo, a importância do grupo de pares que estas idades comportam, e forma-se uma caldeirada cinzenta, onde prevaleceram os complementos de formação, a troco de uns trocos a mais no ordenado e o poder glamoroso de colocar um Dr. nos livros de cheques.
Cada vez se necessitam mais professores primários, sem vergonha e com orgulho de o serem, que continuem a assegurar o único escalão de ensino que estava organizado.
Esse desconhecimento da monodocência, impede que consigam levar “os maomézinhos” à montanha, pelo que resolveram, atirar todo o peso da montanha para cima dos “maomézinhos” de nove anos.
O ataque à monodocência que tem sido ensaiado, não é mais do que a incompetência de quem desconhece por completo o primeiro ciclo, hoje em dia, não só governantes e formadores, mas já também professores que foram formados ou que fizeram e fazem formações no cinzentismo da academia.
Os exames no primeiro ciclo são uma aberração não só do ponto de vista psicopedagógico, mas também uma fuga para a frente (ou para trás?) numa escola inicial que perdeu o rumo e a essência.
Muitos professores gostam, deste poder policial de vigiar exames, mãos atrás das costas como os pombos de Lobo Antunes, exercendo um poder absurdo não conquistado pelo respeito do reconhecimento do saber, mas pelo adultismo de uma hierárquia forçada numa escola cada vez com mais degraus.
Esquecem-se os processos de aprendizagem, substituidos por baterias de testes manipulados pelas editoras que são aplicados dia após dia para preparar estas crianças para o exame final, com um peso de 30%, que obriga pais e alunos a diarreias e xanax.
Que se não zanguem os professores que acuso deste gostinho, pois em alguns agrupamentos, caiu-se mesmo no ridículo de, por forma voluntária e por decisão maioritária dos docentes do 1º ciclo, serem aplicados estes exames ao segundo ano (segunda classe). Falamos de crianças de 7 e 8 anos, a quem o GAVE, agora IAVE forneceu os exames, provas intermédias como lhe chamam, com “penes” e tudo, talvez na esperança de no futuro enviarem cassetes, transformando os professores em monitores, de uma velha Telescola, quem sabe?
Tenho saudades de ouvir cantar nas escolas do ensino primário, de ver misturar as cores e usarem~se os pinceis, dos contratos de trabalho, dos jornais de parede, das assembleias de turma onde se educava para a cidadania e porque não, da Maria dos Olhos Grandes que conheceu os dois lados do mundo e do autocolante com a cara de um palhaço que dizia “Queremos teatro na nossa escola já”.
Depois, queixem-se da abstenção.
Ganhe quem ganhe as próximas eleições legislativas, terá urgentemente que olhar para o grave problema instalado na educação, pois por este caminho, temo que comecem também a fazer exames no ensino pré-escolar para acesso ao primário, e com o rigor e o método apregoado, a serem vigiadas as provas por agentes da Guarda Nacional Republicana.
Aragonez Marques

NOTA:
Sou pai de uma menina de sete anos aluna da escola espanhola, que terá que ingressar no ensino deste Governo de Portugal no próximo ano letivo.
Tem no seu estabelecimento de ensino primário, aqui tão perto, do outro lado do Guadiana, português e inglês, aprende música e dança. Faz teatro. Tudo na escola. Sem exames no 1º ciclo, obviamente, que estes pioneirismos só a nós, génios do retrocesso, competem.
Temo por ela, pelo que escrevo como pai e não como professor.