domingo, 28 de enero de 2018

CRUZ DE PAU


CRUZ DE PAU

A primeira mulher que vi nua na minha vida estava deitada numa mesa de mármore na casa mortuária do cemitério da cidade onde nasci.

Era mais branca do que a mesa, tinha os pés juntos, as unhas pintadas de cor-de-rosa e os braços colocados ao lado do corpo como se estivesse em sentido.

Os olhos fechados deixavam adivinhar pelo tom das pálpebras uma cor clara, talvez verde mais do que azul, por ser escuro o triângulo perfeitamente desenhado por baixo do ventre.

Mas era o buraquinho vermelho, por onde saíra a bala, lavado e como a marca de um beijo, que sobressaia apesar da pequenez.

 Por ele fora empurrada a vida, fria e rápida, montada na velocidade do disparo que lhe queimou as costas e arrebatou a alma quente e lenta.

Dela apenas se sabia ser mulher, entre os vinte e os trinta anos, que usava na hora da morte umas botas altas e uma saia curta, guardadas na entidade forense que decretou que se expusesse ali, e as portas fossem abertas, de duas em duas horas, para que o povo a pudesse identificar.

Eu ia pela mão do padre, director do internato onde estava, desde que o meu pai ali me deixara, depois de a minha mãe, dizem, que ainda hoje não sei bem, nos ter abandonado para ir viver com outra família, a de um homem com quatro filhos, viúvo e com carência de afectos que descobriu nos de minha mãe, assim me contaram, a solução dos problemas da sua família.

O padre levava-me pela mão, bem apertada, não fosse perder-me naquele carrossel de pessoas que andavam à volta, passo a passo, nova corrida nova viagem, observando cada traço da mulher assassinada.

Lembro-me da ponta dos seus sapatos de verniz, ora tapa que esconde, debaixo da sotaina comprida e eu, olhava para cima guiado pela fileira de botões que passando pelo colarinho branco, como uma fronteira, destapava do outro lado um rosto esguio e sorridente com uma boca que se abria e fechava e soltava sons “é bonita não é?”

Eu baixava a cabeça envergonhado e o padre apertava-me a mão com mais força.

Naquele orfanato, passei anos com agasalho e comida, com oitenta irmãos de infortúnio que compartilhavam o mesmo quarto, onde oitenta camas ordenadas, lado a lado, de ferro azul claro e colcha de pano branco, denunciavam a camarata pelo cheiro de couro e humidade que escorria, escondida, pelas paredes pintadas de cinzento.

O meu pai todos os meses me visitava e quando calhava também.

 Quando os domingos tinham sol, levava-me a lanchar, uma laranjada e um bolo de arroz, antes de me entregar aos padres e às paredes, até que me visitasse de novo, se pudesse, se juntasse, se tivesse trabalho, para a viagem de Lisboa ali.

As suas visitas, começavam muito antes de me visitar.

Soube da morte do meu pai no dia que me chamaram ao director sem ser pelo altifalante do pátio.

Tinha dezoito anos e estava a semanas de abandonar, por idade, a instituição.

O bom padre, que o tempo tinha marcado com o ritmo do nosso crescimento moveu os lábios grossos “já não sofre mais”.

Houve um período de tempo em que deixou de me visitar. 

Não sentia a falta do bolo e da laranjada nos domingos com sol, mas do cheiro do seu casaco e da rudeza das suas mãos grossas e grandes, ou as minhas eram pequenas e finas.

Diziam-me os padres que estava de viagem, que voltaria se Deus quisesse e que as minhas orações eram importantes. 

Por isso levei dias e dias soltando rezas, orações e sacrifícios.

Levei anos a rezar, à noite, ao levantar, várias vezes durante o dia, quando o cheiro do seu casaco me despertava a saudade.

Quando finalmente voltou a visitar-me estava diferente. 

Mais triste e mais calado. 

Os cabelos tinham mudado de cor e as suas mãos eram mais leves e trémulas.

Só no dia que me informaram da sua morte me disseram que a sua viagem foi feita parado, numa ilha longe de todos, numa camarata de adultos por ordem de um juiz.

Quando larguei a instituição, o velho director deu-me a chave de um quinto andar numa travessa dos arredores de Lisboa, Cruz de Pau, o nome da terra onde viveu os últimos dias. 

A casa estava em meu nome, uma conquista sua, um orgulho, duas divisões, uma cozinha e uma casa de banho, de camas enferrujadas onde iria por testamento começar a minha vida sozinho.

Deu-me dinheiro, a morada de uma fábrica onde deveria pedir trabalho e um bilhete de comboio.

Cheguei numa quarta-feira, meti a chave na porta e rodei. 

Empurrei devagar e abri o começo da minha vida adulta.

Duas camas, duas banquinhas de cabeceira, uma televisão com antena interna, um frigorífico vazio com seis garrafas vazias ao lado.

A minha casa.

Fui adulto durante vinte minutos, até que tocou a campainha e apareceu Deolinda “ Raúl? Meu menino, o teu pai falou-me muito de ti” e começou a falar-me dele, homem triste, sempre infeliz, onde eu aparecia na sua vida como vida “ se não fosse pelo menino Raul, há muito que nos tinha deixado e não só agora”.

As garrafas vazias ao lado do frigorífico eram a prova da sua infelicidade, fígado em explosão de combate à tristeza.

“Gostava muito de si, era eu que lhe cuidava da roupa, lhe limpava a casa, lhe respondia quando lhe apetecia falar.”

Deolinda era uma mulher madura, calma, os cabelos desarranjados por ter deixado de acreditar em si, mas uma ternura capaz de me olhar e de me chamar “menino”.

O seu paizinho pediu-me que lhe desse esta chave, da caixa que está em cima do guarda-fato e talvez incomodada com a barba que despontava na minha cara, reparei que passara a tratar o “menino” por você.

Nessa noite, abri a caixa.

Tinha dentro vários montinhos de cartas com laço.

O meu pai e a minha mãe tinham-se amado, num tempo, num momento.

Pela noite, tomei banho colocando em ruído os canos oxidados da casa de banho, pequena mas minha.

Sentei-me na cama, abri a gaveta da banquinha de cabeceira. 

Uma fotografia de uma mulher com um bebé ao colo, um pano de flanela verde envolvendo alguma coisa pesada e um frasco de verniz cor-de-rosa já ressequido.

Abri o pano verde como quem desembrulha um caramelo gigante e depois das voltas apareceu uma pistola negra.

Lembrei-me das pontas dos sapatos envernizados do director do meu orfanato, da sua mão apertando a minha no dia em que descobri numa mesa de mármore a primeira mulher nua que vi na minha vida.

Só então entendi que o bom sacerdote me tinha levado pela mão a despedir-me da mulher que me tinha trazido ao mundo.

Aragonez Marques 
2015 
(...  publicado numa colectânea
de contos de escritores ibéricos
em Espanha...) 

                                                       


CRUZ DE PALO
 (Original em Castelhano)


La primera mujer que vi desnuda en mi vida estaba tendida en una mesa de mármol en el tanatorio del cementerio de la ciudad donde nací. Era más blanca que la mesa, tenía los pies unidos, las uñas pintadas de rosa y los brazos colocados junto al cuerpo. Los ojos cerrados dejaban adivinar, por el tono de los párpados, un color claro, más verde que azul, por ser oscuro el triángulo perfectamente dibujado bajo el vientre. Pero era el agujerito rojo, por donde había salido la bala, lavado y como la marca de un beso, el que sobresalía a pesar de su pequeñez. A través de él le había sido empujada la vida, fría y rápida, montada en la velocidad del disparo que le quemó la espalda y le arrebató el alma caliente y lenta. De ella sólo se sabía que era mujer, entre los veinte y los treinta años y que llevaba, en la hora de la muerte, unas botas altas y un vestido morado, guardados en la entidad forense que decretó que el cadáver estuviese allí expuesto y que las puertas se abrieran, cada dos horas, para que la gente lo pudiese identificar.
Yo iba de la mano del sacerdote, director del reformatorio donde estaba desde que mi padre allí me dejase, después de que mi madre, dicen, que todavía hoy no lo sé bien, nos abandonara para ir a vivir con otra familia, la de un hombre con cuatro hijos, viudo y con carencia de afectos que descubrió, en los de mi madre, la solución a los problemas de su familia.
El sacerdote me llevaba de la mano, bien apretada, para que no me perdiese en aquel carrusel de personas que andaban alrededor, paso a paso, nueva carrera, nuevo viaje, observando los trazos de la mujer asesinada.
Recuerdo la punta de sus zapatos de charol, ora asoma, ora esconde, debajo de la larga sotana que yo miraba desde abajo guiado por la hilera de botones que, pasando por el blanco alzacuello como una frontera, destapaba del otro lado un rostro enjuto y sonriente con una boca que se abría y se cerraba y soltaba sonidos “es guapa, ¿verdad?”. Yo bajaba la cabeza, avergonzado. El sacerdote me apretaba la mano con más fuerza.
En aquel reformatorio pasé años con abrigo y comida junto a otros hermanos con los que compartía la misma habitación en la que ochenta camas ordenadas, de lado a lado, de hierro de color azul claro y colcha blanca, denunciaban la caserna con un olor a botas de cuero y a la humedad que escurría, escondida, por las paredes pintadas de gris.
Mi padre venía a verme todos los meses y cuando caía, normalmente cuando los domingos tenían sol, me llevaba a merendar, una naranjada y un pastel, antes de entregarme otra vez a los curas y a las paredes hasta su próxima visita, al mes siguiente, si pudiese, si juntase, si hubiese tenido trabajo para costearse el viaje desde la capital hasta allí. Sus visitas comenzaban mucho antes de su llegada.
Supe de la muerte de mi padre el día que me llamaron al director sin ser por el altavoz del patio. Tenía dieciocho años y me quedaban semanas para abandonar, por edad, la institución. El buen sacerdote, al que el tiempo había marcado con el ritmo de nuestro crecimiento, movió los gruesos labios “ya no sufrirá más. Reza por sus pecados”.
Hubo un periodo de tiempo en el que dejó de visitarme. No sentía la falta del pastel y de la naranjada pero sí del olor de su chaqueta y de la rudeza de sus manos robustas y grandes. Los curas me decían que estaba de viaje, que volvería si era voluntad de Dios y que mis oraciones eran importantes. Por eso pasé días y días soltando rezos, oraciones y sacrificios. Me pasé años rezando por la noche, al levantarme, varias veces durante el día; siempre que el olor de su chaqueta me despertaba la añoranza.
Cuando finalmente volvió a visitarme estaba diferente, más triste y más callado. El cabello le había cambiado de color y sus  manos eran más ligeras y trémulas. Sólo el día que me informaron de su muerte me dijeron que su viaje lo había hecho parado, en una isla lejos de todos, en una celda aislada por orden de un juez.
Cuando dejé la institución, el viejo director me dio la llave de un quinto piso situado en una travesía de los alrededores de la capital. Cruz de Palo era el nombre de aquel pueblo donde mi padre vivió sus últimos días. La casa la había puesto a mi nombre, una conquista suya, un orgullo. Dos habitaciones, una cocina y un cuarto de baño de tuberías oxidadas donde empezaría, por testamento, mi vida en solitario. Junto con la llave, también me dio un poco de dinero, la dirección de una fábrica donde podía pedir trabajo y un billete de tren.
Llegué un miércoles, metí la llave en la puerta y la giré. Empujé despacio y abrí el comienzo de mi vida adulta. Una cama, dos mesillas de cabecera, un armario, una televisión con antena interna, un frigorífico vacío con seis botellas vacías junto a él… mi casa. Adulto durante veinte minutos,  hasta que sonó el timbre y apareció Angélica “¿Raúl?, mi niño, tu padre me habló mucho de ti”. Comenzó a hablarme de él, me dijo que fue un hombre triste, siempre infeliz y que yo fui lo único que apareció en su vida como vida. “De no haber sido por su niño Raúl haría ya mucho tiempo que nos habría dejado”. Las botellas vacías del frigorífico eran la prueba de su infelicidad, hígado en explosión de combate a la tristeza. “Te quería mucho. Yo le lavaba la ropa, le limpiaba la casa, le escuchaba cuando tenía ganas de hablar”.
Angélica era una mujer madura, tranquila y con el pelo descuidado, por haber dejado de creer en sí misma, pero con una ternura capaz de verme y de tratarme como a un “niño”.
“Tu papá me pidió que te diera esta llave, es de la caja que está encima del armario”.
Esa tarde, abrí la caja. Tenía dentro varios atadijos de cartas sujetos con un lazo. Mi padre y mi madre, la mujer que para mí siempre había sido un misterio, se habían amado, en un tiempo, en un momento.
Por la noche me metí en la bañera, activando el barullo de las tuberías oxidadas del cuarto de baño, pequeño pero mío.
Me senté en la cama, abrí el cajón de la mesilla. Una fotografía de una mujer con un bebé en su regazo, un paño de franela verde envolviendo algo pesado y un frasco de esmalte de uñas rosa.
Abrí el paño verde, como el que abre un caramelo gigante, y apareció una pistola negra.
Me acordé de las puntas de los zapatos brillantes del director de mi reformatorio, de su mano apretando la mía, el día en que descubrí en una mesa de mármol la primera mujer desnuda que vi en mi vida.
Sólo entonces entendí que el buen sacerdote me llevó de la mano a despedirme de la mujer que me había traído al mundo.                                     


Aragonez Marques 
2015 
(...  publicado numa colectânea
de contos de escritores ibéricos
em Espanha...) 

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