miércoles, 3 de enero de 2018

A DÚVIDA DA PRINCESA



Era uma vez uma princesa que vivia, como todas as princesas, num palácio.

Preparada desde pequena, com bonecas e fogões, de sala, para poder um dia servir um qualquer príncipe a última metade da sua vida, cresceu.

Como o peixe que se julga livre na sua rotina secular de subir o rio apenas naquela época do ano, buscando a desova como tradição geneticamente interiorizada, fez-se princesa quando a idade lhe ditou que era hora, só que no seu interior e com o passar do tempo, descobriu que o seu palácio era um castelo e o príncipe, o proprietário provisório aguardando a herança das terras do pai.

Proprietário do castelo, mas também o seu.

A princesa vivia segura dentro dele. Aquela segurança de quem tem um príncipe e será herdeira de um reino que passará aos seus filhos.

Lá dentro nada lhe faltava, parecia, mas o mundo, esse, só o via das ameias de pedra escura e sobreposta, projectado em horizontes de impossíveis castradores de liberdades e balizadores contratuais de comportamentos.

Enquanto ia passando veloz a segunda metade da sua vida, descobriu a rotina, descobriu sentimentos que era obrigada a compartilhar apenas consigo mesma.

Começou a entender que a vida corria rápida e igual e que não era só o seu corpo que estava preso no castelo, mas também os sentimentos, e com o passar dos dias, notou que muitas vezes as lágrimas iluminavam os seus olhos e não sabia o porquê.

Gostava de fazer coisas novas, coisas que sabia ser capaz de realizar com êxito... mas era conservador o seu palácio.

Viria daí aquela ansiedade que certos dias, cada vez em maior número, lhe apertava o peito e lhe humedecia os olhos grandes impedidos de ver o mundo?

Às vezes apetecia-lhe sair das muralhas, enfeitadas com grandes jardins interiores, mas rodeadas de um fosso impeditivo.

Nunca entendeu se esse fosso, apenas transponível por uma ponte levadiça de que não dispunha de força para levantar, julgava, servia para a proteger no seu castelo ou para a prender dentro dele.

Cansada de se deitar e levantar igual, cansada do espaço que percorria limitado, um dia arriscou e saltou o fosso.

Não percorreu o espaço livre cá fora até muito longe, pois temia o não poder regressar já ao castelo, à segurança, para que fora criada.

Quando voltou, fechou-se durante horas no quarto sobre a cama de dossel.

A forma como fora educada, trouxera-lhe um desconhecido sentimento de culpa e do quarto, passou à capela, tão medieval como o castelo, como se Deus condenasse alguma vez a busca da felicidade de alguém.

Mas aquela rotina, aquela sensação de escrever poemas que ninguém lia, aquela certeza de ser capaz de fazer mais, levou-a a saltar de novo o fosso, desta vez um pouco mais longe, mas sempre com o regresso como certeza, ao castelo da segurança.

Depois, outra vez aquela sensação de culpa que a levava a não tentar nova aventura além muralhas, durante meses.

Mas eram grandes as tentações do mundo, grandes as portas de tanta coisa para fazer, e tantas, tantas as portas e as coisas.

Ainda adolescente, enquanto preparava a segunda metade da vida, poderia ter ficado com outro príncipe, quem sabe se castelo ou palácio? Só que aí não era a norma tradicional de viver em função de quem, era amor.

A palavra amor é ridícula quando se não ama.

Não calhou a entrada por essa porta, mas a adolescência é marcante e o amor, uma vez sentido, nunca se esquece, mesmo que se esqueça o amante.

Pode camuflar-se, enrolar-se nas lianas do tempo que cobrem as florestas, onde Diana reina sobre a fauna, com milhares de gotas de água que caem e fazem crescer o emaranhado da vegetação, tal como a vida das pessoas com a queda das milhares de horas que enleiam e enlameiam os destinos.

A princesa, tinha conhecido o amor e hoje, tantos anos passados necessitava senti-lo de novo, e essa necessidade, parecia mais viva, mais madura, mas também mais ameaçadora da segurança do castelo que nunca conseguiria ser palácio.

Tocou o telefone.

Nunca era a princesa que atendia, mas naquele dia fê-lo, como se o destino lhe coordenasse os movimentos.

- Sou eu. Quero ver-te.

Um arrepio percorreu-lhe o corpo numa decisão de dizer basta.

- Passo a buscar-te dentro de meia-hora.

A princesa pousou calmamente o telefone, enquanto por dentro se dava a mestria da explosão de adrenalina  subindo pelo corpo como espumante desenrolhado lentamente.

Subiu ao quarto. Olhou o espelho. Com o polegar e o indicador abriu o olho esquerdo. Depois com a mesma mão fez o mesmo ao direito.

Os trinta e seis anos ameaçavam-lhe o rosto, e aquelas ténues rugas começavam o aviso.

Renasceu então, como magia.

Desceu as escadas, ignorando os guardas, as vizinhas nas janelas viram-na saltar o fosso sem medo e entrar no carro.

Partiram dali, pela primeira vez sem pensarem como voltar a meter a princesa no castelo sem que ninguém o soubesse.

Pararam no cruzamento de uma estrada perdida, lugares que a natureza oferece aos plebeus errantes sem dinheiro para comprar espaços de tempo no tempo confortável das hospedarias, entre a noite e a folhagem.

Só a luz vermelha do rádio alumiava a noite, aquecendo timidamente com uma música ligeira e baixa o momento.

Apenas plebeus errantes.

Abraçaram-se, beijaram-se, fizeram amor com o espírito sem se tocarem os corpos, naquele platonismo infantil que teme destruir o sonho.

Em imaginação, as roupas ficaram espalhadas nos bancos, vidros embaciados de respirações alternadamente comuns, loucura contrastando com a chuva miudinha que caía.

Depois, suados, abriram o tecto eléctrico do carro e deixaram a chuva embalar-lhes a visão imaginária dos corpos nús, no meio do riso e do prazer.

Apenas plebeus livres.

Tiveram que passar tantos anos para a princesinha se sentir verdadeiramente feliz.

Agora sabia que o poderia ser sempre que entendesse, apenas tinha que decidir se voltaria ou não ao castelo que já não considerava seu.

Afinal, tinha descoberto com toda a certeza que não se tratava de um palácio.

Tinha também a seu favor, o saber que as muralhas, o fosso e a ponte levadiça, não existiam para a proteger, mas para a manter.

Só lhe faltava decidir.

Voltar ou não voltar?

Estava facilitada a decisão, mas só ela sabia como era difícil optar, entre a segurança rotineira, ou a aventura sem certezas de futuros, presentes felizes, é certo, mas muito para trocar.

Coragem? 

Apenas o amor sabia ser verdadeiro, embora uma voz pequenina lhe repetisse ao ouvido:

- E se daqui a algum tempo apenas trocaste um castelo por outro?

Nunca o poderemos saber. 

Hoje é dia 31 de Agosto de 1977.

Deveríamos ser nós a controlar o nosso destino.


A.M.
1997

in- Retratos Esquecidos de uma Velha Gaveta ( na gaveta ).

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