sábado, 30 de diciembre de 2017

A PRAIA ONDE MORREM AS BALEIAS OU UMA BRAÇADA PARA FORA DA DEPRESSÃO



Eu sou a praia onde morrem as baleias. Não sei porque me escolhem as baleias para morrer. Nem sei sequer se é isso que desejam, sei apenas que é a mim que chegam e que ao longo dos anos, é em vão que luto, dia a dia, para guiá-las de novo ao oceano, o que é difícil.

Uma baleia pesa muito, e se permitem porque inofensivas o meu contato com elas na água, torna-se muito dificultosa a tarefa de as desencalhar dos meus baixios.

São poucas as que conseguem recuperar os seus rumos e muitas, depois de o conseguir, regressam de novo para agonizarem definitivamente.

As minhas areias, embora doiradas ao sol e cobertas de mil gaivotas que deixam as suas marcas no chão húmido, pouco duradouras que a água apaga quando sobe a maré, não passa de terra leve e triste que oculta cadáveres tapados.

Dantes chegavam mais espaçadamente no tempo e eu, pensando ainda ser uma coincidência, esforçava-me com uma maior ilusão em salvá-las, depois com o passar dos anos, transformei em rotina passar os dias a abrir valas, à mão, enormes, para onde as arrastava e cobria, tentando mais salvar a imagem paradisíaca da minha baía dourada que os turistas aplaudiam, do que a vida destes gigantescos mamíferos que me procuravam, vá-se lá saber porquê.

Às vezes acordava envolto em medos e dormia mal com pavor aos pesadelos.

Na minha pressa, agora objetiva, de manter superficialmente a praia limpa, duvidava se alguma vez enterrara alguma daquelas criaturas viva.

Este pensamento arranhava-me como o frio cortante que enfrento no inverno, e porque constante, passou a arranhar-me durante todo o ano transformando-me em praia com inverno permanente, com marés vivas, ondas altas e ventos que dobravam as palmeiras, outrora belas sempre, tanto calmas como promessas com as suas novas folhas na primavera, como acolhedoras nas suas espraiadas sombras no verão, como poéticas nos pores-de-sol de outono ou dançarinas no inverno, impedindo o vento nesse entreter de baile, de consumir as dunas.

É neste inverno permanente, agora sem música para o baile ou palmeiras para dançar, que hoje continuo a assistir à vinda das baleias e à destruição das dunas.

Deixei de acreditar que as posso salvar e consumo meses inteiros a abrir covas e a enterrar. Algumas dessas covas nem sequer têm ainda baleias mortas. Hoje já não me preocupo com a paisagem e muito menos com os turistas, sou no entanto mais sensível aos cheiros. Abro buracos para evitar os cheiros. Cavo e tapo porque as baleias cheiram mal. Perdi a ilusão de poder salvá-las.

A última vez que o fiz, levei quase um mês envolto em suores e canseiras, empurrando uma baleia resistente perante os olhares dos turistas, mar dentro. Assim que virava costas, ela aí vinha, boiando, atrás de mim, aproveitando as ondas calmas para me impregnar de odores.

- Deixa-me! Segue o teu caminho! Eu só te posso dar uma cova, nada mais. Ainda por cima, uma cova pequena, que tenho os dedos feridos de tanto escavar com eles. Dedos que quase não têm impressões digitais, dedos quase sem identidade. Deixa-me! Para ti tenho uma cova pequena, nada mais.

Nunca fui dos melhores nos meus entendimentos dialogantes com as baleias, e talvez este "nada mais" fosse entendido como uma forma do verbo "nadar", ela continuava a perseguir-me.

- Deixa-me! - e pedi por favor.

Ignorou este meu último queixume. Não sei porque mistério continuava a escolher-me a mim, trocando pelas minhas águas baixas e sufocantes a liberdade das profundezas do mar, onde com a barbatana horizontal desenhava o azul dos céus e pelo seu orifício atirava repuxos mais altos do que metade da cova de areia escaldante que a esperava comigo. Ajustada ao tamanho do seu corpo. Nada mais ali cabia. Apenas o seu corpo, nunca a imensidão do seu espírito.

- Vai-te! Deixa-me! - e batia ferozmente na água tentando afugentá-la, ruído e mais ruído, que a fizesse renunciar à morte nem que fosse pelo medo.

Parece que finalmente se foi.

Deixei-me eu agora arrastar na espuma das minhas ondas que me enrolaram cansado na areia.

Reparei então, que durante este tempo, enquanto eu lutei para salvar uma baleia, tinham chegado à praia sessenta, estas já cadáveres, trocando moscas por cheiros.

Levantei-me em ângustia, gritei, ergui o mar e agitei a areia espetando os seus grãos de quartzo como agulhas no vento. O que restava das palmeiras foram abanadas até à exaustão e depois, numa tristeza, numa resignação, resignação, resignação, recomecei, recomecei a abrir covas, abrir covas, maquinalmente, maquinalmente...

Todo o peso do infortúnio se abateu na minha baía nesse instante. Varreu-se o presente e o futuro, só o passado, essa repetição deste presente e imagem de provir invadia tudo.

Covas, continuar a abrir covas para sempre.

Revoltei-me na praia e transformei-me naquele momento em local de tormenta.

Os que observavam a minha baía naquele instante, nada fizeram. 

Indiferentes ao sofrimento daquela agressividade da natureza, limitaram-se a levantar bandeiras vermelhas, e quando já cansado e sem forças para cobrir de areia os sessenta buracos onde com esforço ainda tinha conseguido depositar os cadáveres que arrastei um a um, limitaram-se a colocar cartazes que alertavam para o perigo de que alguém pudesse cair naquelas covas.

Fui considerado uma praia perigosa, uma praia a evitar.

Sempre foi assim.

Cada vez que como praia necessitei de auxílio, apenas me cercaram de bandeiras e cartazes de perigo, regalando-me a quarentena forçosa até que sozinho, acabasse as minhas tarefas e pintasse  a praia, cada vez mais retocada, mais maquilhada, em doirados de areia e sol, palmeiras em descanso e céu sem núvens, passaporte de relações com as gentes que então aí iriam desfrutar, mais amantes de sedas e brocados que de corpos nús.

E eu? Que sempre aceitei qualquer relógio? Mesmo quando alguém me disse que não passava de um relógio parado? Mesmo antes de ter lido, ouvido e confirmado, que mesmo um relógio parado, duas vezes por dia tem as horas certas?

Quem me aceita como sou, como destino de um mistério, sem serem as baleias? Essas criaturas grandes e pacíficas que me procuram, vamos lá saber por quê? Ainda por cima para morrerem em mim?

Voltemos à praia.
Voltemos à praia onde morrem as baleias.
Voltemos a mim.

Acabei a tarefa extenuadora de me limpar, mar calmo de um lado, areia alisada do outro, céu por cima como mandam as regras de todas as praias, todas as covas tapadas, as moscas e os cheiros longe dali, olhei-me nas águas. 

O meu reflexo ia-se alterando com o vai-vem das águas, o rosto era distorcido, umas vezes alongado, outras com formas lunares, havia dificuldade de saber como era realmente. Tinha no entanto os olhos fundos e vermelhos, as mãos doridas e lixadas, não sei de onde mais uma vez me vieram as forças para terminar tamanha tarefa.

Sentei-me, mas tive poucos momentos para gozar o descanso.

Olhei o horizonte.

Não queria acreditar.

Gritei, arranhei a areia, esfreguei as costas nas palmas pontiagudas das palmeiras, feri os pés de raiva com as conchas mortas também. - Não posso crer! É ela! A estúpida de novo. Vem para cá! - gritei em desespero - Fora! Fora daqui! Aqui não! Aqui não! Fora! - e agitava os braços no ar impedindo-a de regressar. - Vais morrer idiota! 

(Sinceramente naquele momento preocupava-me mais com o trabalho que a sua morte acarretaria do que a sua vida) 

- Vais morrer idiota! Para quê? Porque é que aqui? Fora! Fora! - e agitava as minhas águas e levantava as minhas areias e dobrava violentamente o que restava das minhas palmeiras.

Insensível ela aproximava-se, parecia que descansava nas águas. A distância ia-a fazendo cada vez maior.

Sentei-me desiludido. 

Ela foi-se aproximando, mas de repente, parou. Muito antes do recife. Tinha percebido onde terminava a liberdade do mar e começava o perigo da praia. Movimentou-se então, evitava a todo o custo as águas baixas da minha praia, as minhas águas. Mergulhou e bateu com a barbatana no azul forte fazendo saltar um chorro de água em cascata circular e foi então, supresa das surpresas, que vi outras duas pequenas barbatanas chapinharem o oceano, mais pequenas do que a cabeça da mãe. E eu que pensava que as baleias só podiam ter uma cria de cada vez. Estava atónito. Havia vida pela primeira vez na minha praia depois de tantos anos. 

Havia vida novamente em mim. 

Não me restavam dúvidas, a baleia desta vez não regressava para morrer, vinha saudar-me e apresentar-me as crias que trouxera consigo do vasto oceano. 

Levantei-me e ri. Ri muito. As minhas gargalhadas ecoavam nas escarpas e eram molhadas, porque uma grande vontade de chorar me vestiu o peito e lavou a cara. 

Saltei, acenei, e ela feliz saltava com as pequenas, dialogando comigo numa mímica agradecida.

Dei-me conta então, que tempos houve, em que gostei de ser a praia onde morrem as baleias, talvez por ser a única forma de ter junto a mim gente, turistas, que se deitavam em mim, e desfrutavam das minhas palmeiras por esse tempo de pé e viçosas, até terem uma boa fotografia de uma baleia morta, ou me auxiliavam a levá-las para o mar alto, com o mesmo fim, deixando-me logo que a imagem ficava gravada e pronta para ser reproduzida e mostrada a outros turistas, não se preocupando se a mesma tinha sobrevivido ou não. 

Turistas, apenas turistas. 

Sempre turistas da vida. Sacadores de momentos à distância, não bebedores da mesma, e que eu, proprietário de uma praia, pobre diabo, tinha a ousadia de confundir com aplausos e até mesmo com amor.

Há decisões na vida que se têm que tomar rápido. Sem necessidade de tempo para pensar. Pensar muito pode levar ao adiamento das decisões.

Entrei na água, baloucei-a ritmada, cobri-me, atravessei a distância entre nós sem nunca olhar para trás e esquecendo as sessenta covas que tinha acabado de cobrir com os cadáveres dentro, atravessei as águas baixas, nadei a partir do recife e juntei-me às crias.

Parti com elas.

Despi-me da praia, abandonei as bandeiras vermelhas e os repetidos cartazes de perigo que me isolavam e impediam.

Nadei com elas, nadei e continuo nadando.

Deixei de ser uma praia onde as baleias vão morrer.

Sou uma baleia que guia outras no evitar os recifes e as águas baixas.

Hoje já não sou uma praia de baleias mortas.

Hoje sou uma baleia que só procurará a sua praia no fim da caminhada.

Confesso que estou a gostar de fazer esta viagem.

Afinal o que eu sempre gostei, foi de água.


                                                                                           A.M
i



in- Retratos Esquecidos de uma Velha Gaveta ( na gaveta ).

jueves, 28 de diciembre de 2017

RETRATO DE UM VELHO DA MINHA TERRA NO MEU TEMPO






Escorria-lhe do canto da boca, baba viscosa que lhe molhava a beata curta, apagada, enganadora do vício que teimava em enganá-lo.
Nunca vi mãos que tremessem tanto, mas as palavras eram seguras, diretas, eram palavras com força, contendo uma história em cada letra.
- Sabe , Senhor? Nasci aqui, no Alentejo, ainda fui à escola, sim senhor. Pouco tempo, mas fui.Conhece a Rosa do montado? Namorei-a nove anos!... antes de conhecer a minha patroa. Andámos juntos na escola. O pai dela era merceeiro, uma profissão muito boa naquela altura. Tirou a quarta classe e foi estudar para a cidade. Hoje é professora. Mas, namorei-a nove anos, sim senhora! É que sabe? Ela nas férias vinha à aldeia, e eu... gostava dela, naquela altura... coisas de gaiatos... (sorriu) era bonita, muito bonita mesmo. Depois, a cidade subiu-lhe à cabeça, começou a dar aulas aos cachopos e conheceu um qualquer desses das Finanças, que lhe deu um carro, uma casa... encheu-lhe a barriga.
Eu não podia, tirei só a terceira classe. Andava pelo campo a guardar catorze ovelhinhas. Ganhava um tostão por dia.
Hoje, ela é uma senhora fina, dona do montado.
Se calhar já se nem lembra de mim. Nem me olha na rua.
Coisas de crianças, sabe? Coisas de crianças...
                                                                           AM
1999
in- Retratos Esquecidos de uma Velha Gaveta ( na gaveta)

jueves, 19 de octubre de 2017

A TORTILHA DE BATATA - Clarinha



( Eu, Clarinha, sou a segunda a contar da esquerda,
 as outras são as minhas irmãs)

A TORTILHA DE BATATA

Estou irritadíssima, imaginem vocês, que os fotógrafos, que eram dois, um que meteu um palco com flores de papel e outro que carregava no botão da máquina, foram hoje à minha escola, e embora a minha mãe pagasse treze euros pelas fotografias, mais um do que no ano passado, algumas com calendário, eles é que decidiram como eu me sentava não me deixando escolher o meu melhor perfil, que é o esquerdo, porque no direito tenho um biquinho numa orelha igual à do meu pai. A minha avó diz que essa orelha do meu pai, é em bico, porque ele era um diabrete quando era pequeno, mas ele diz que essa orelha tem um bico porque a direita é o diabo. Agora se eu não gosto do biquinho da minha orelha, tenho todo o direito de mostrá-la só a quem quero, seja a direita ou a esquerda, era o que faltava, e não metê-la assim na montra do calendário que os meus avós vão ter todo o ano de 2018 colado no frigorífico como o de 2017, pois é a prenda de natal que os meus pais lhes dão desde que há fotografias na escola, já no tempo das minhas irmãs grandes era igual.
Todos os meninos e meninas tiraram fotografias, e os professores também, sozinhos e em grupo, de pé e sentados, de todas as maneiras como no casamento da minha prima Clotilde, que já está divorciada, que tirou fotografias em todo o lado, até agarrada ao telefone da sala e à cortina do quarto.
Só é pena que nem todos os meninos e meninas da minha escola possam como eu levar as fotografias para casa, porque os pais de alguns não têm dinheiro para as pagar. Eu acho mal, afinal aquilo não é um colégio como o da minha prima Leonor, com nome de princesa, que os meus tios pagam para ela lá estar porque o meu tio é médico e a minha tia é enfermeira mulher de médico e não têm mais filho nenhum. A minha é uma escola do governo e deveria ser igual para todos os que lá andamos.
A minha mãe, já anda um pouco farta de eu ser assim e está sempre a dizer-me, cada vez te pareces mais com o teu pai, e como ele, não sairás nunca da cepa torta, e hoje quando estava a comer na mesa da cozinha e lhe ia contar o que pensava das fotografias, disse-me:
- Come e cala-te.
O meu tio gordo, irmão do meu pai, diz muitas vezes que nos temos de calar para podermos comer e dar de comer aos nossos. Também outro dia o meu pai disse que se não nos tivesse que dar de comer, a mim e à minha irmã, que as outras já comem sozinhas, lhes cantaria as quarenta. Tentei que o meu pai me dissesse mais sobre os quarenta, mas ele disse-me que um dia quando eu fosse grande iria perceber, porque as crianças não têm entendimento para números tão grandes, eu apesar de tudo, descobri que há uma relação entre as palavras e os alimentos e quando na mesa da cozinha insisti com a minha mãe que o euro que o senhor fotógrafo este ano leva a mais a cada menino, que não é nada, assim como o euro do senhor Costa amigo do meu pai leva aos turistas, multiplicado por mais de mil meninos e meninas que tem o agrupamento, dava para pagar as fotografias dos meninos sem dinheiro, pois os senhores professores vão ter as fotografias de borla. Aí sim, a minha mãe zangou-se mesmo e já com a voz muito alta ainda conseguiu gritar:
- Cala-te, já te disse e come Clara (chamou-me Clara e não Clarinha).
Eu então calei-me e comi tudo, não fosse por causa das palavras, conseguir fazer desaparecer da mesa a tortilha de batata.

CLARINHA

PS 
Esta redacção (com dois cç de propósito e para aborrecer), foi vítima de tentativa de censura por parte do meu pai, que me disse que as fotografias dos professores não tinham calendário. Embora saiba que não têm calendário pois ganham o mesmo que há uma data de anos atrás, esta tentativa foi inadmissível.

Clarinha.           


lunes, 2 de octubre de 2017

O QUE FOSTE LÁ FAZER? - Excerto da chegada..





(…)
Se os dragões existissem, diria que um, enorme, gigante mesmo, boca e narinas dilatadas, vivia sobre o monte Ramelau, e que àquela hora, sempre a mesma em que chegava um avião, tentava mandar para trás quem se atrevia a invadir a sua ilha, com enormes baforadas de hálito quente.
Esta foi a primeira sensação que Carlos Novais teve quando baixou as escadas íngremes encostadas ao avião acabado de chegar.
Juntou-se ao grupo de colegas que embarcaram nesta aventura e se iam reunindo na pista.
Olharam uns para os outros e tardou que alguém mais afoito, rompesse o silêncio húmido e abafado e dissesse: - Uma foto companheiros, ânimo, chegámos a Timor.
Saíram sorrisos como abraços em grupo para a câmara.
Tinham deixado Portugal dia 19 e chegado a Timor-Leste às 13.45 (hora local) do dia 23 de Maio.
Engoliram horas.
Noites e dias estavam às avessas como estavam os corpos e os pensamentos.
Saíram juntos do aeroporto.
Lá fora aguardavam-nos outros colegas que já viviam essa experiência há mais tempo.
Para além dos amigos que alguns lá tinham, Novais tinha o abraço da Maria e do Alberto, esperavam-nos também as coordenadoras gerais do projeto, a Coordenadora Portuguesa e a Timorense e com elas, os treze coordenadores das treze escolas, uma por distrito, nesta teia organizada para reiniciar o acesso à Língua Portuguesa e que, funcionava como os tentáculos de um polvo, cuja cabeça bicéfala estava em Dili.
Cada escola tinha uma carrinha com motorista e os professores foram distribuídos por elas e levados para alojamentos provisórios na capital.
Carlos Novais, um dos quatro homens que chegaram, foi levado para um hotel, de onde se via o mar, esse seu mar que tanto lhe seria companheiro durante a sua estadia na Ilha.
As colegas, ficaram em casas, uma zona fechada chamada Vila Verde e que Carlos Novais não recorda bem.
Recorda-se, isso sim do seu hotel.
Novo Horizonte, porque os horizontes podem ser novos, entre o centro de Dili e a praia da Areia Branca.
Até chegar ali, tinha feito uma curva nas condições que subiam e baixavam consoante as escalas.
Partira do seu distrito às seis horas da manhã de dia dezanove, e a partir daí, tinha tocado movimentos em Lisboa, Madrid, Doha e Bali.
Em Doha sentiu o primeiro rugir da diferença, com mulheres apenas com olhos e homens todos de branco.
Em Bali, respirou a Ásia.
Ficou num hotel majestoso e sentiu o poder do dólar.
Pagou com eles as refeições, onde as rupias, apesar de muitas para valerem mais, continuam a ser pobres envergonhadas de pouco valor.
Uma refeição no hotel andava pelos quatro dólares.
Carlos Novais comparou mentalmente com o euro... mas isto seriam, ora bem, o quê? Só? Três euros e vinte, menos de um maço de cigarros? Um hotel de luxo destes?... Não conseguiu deixar de pensar que a Europa não ia por bom caminho.
Timor, tem a Austrália como guia e a Austrália, tem como rainha, a mais antiga monarquia europeia, consciente disso, tenta manter laços com os países vizinhos, mesmo com a sua velha inimiga Indonésia e agarra-se à CPLP para manter a sua identidade histórica.
Mas regressemos à primeira noite com oito horas de diferença de Lisboa, agora, ou nove, quando Lisboa anda ao sabor da mudança dos ponteiros, um passo para o lado, outro para o outro, numa valsa dançada pela luz.
Carlos Novais, chega ao hotel Novo Horizonte, dão-lhe um quarto, uma chave e um código de internet.
Coloca as duas malas e o saco de mão no chão, tira o portátil, liga-o e começa a chamar a família.
Tinham-se passado tantas coisas novas em tão pouco tempo que lhe parecia ter saído de casa há uma eternidade.
Como sempre, o melhor tinha deixado lá e não se referia só à família e aos amigos, trouxe o seu telefone velhinho, o computador sem autonomia de bateria, roupa q.b. como o sal, nem a viola, nada, o que cozinhasse na sua vida a partir desse momento, seria com os seus recursos e com os ingredientes de lá.
Não se preocupou por isso com os vinte e sete quilos de limite de bagagem, a dor de cabeça das companheiras.
Ele e só ele estavam ali, nessa primeira noite, e o computador sem câmara, só podia escrever, não podia ver ninguém:
- Sou eu !!
-Papá, Papá!
- Então como estão?
- Vimos a tua viagem pela Net, seguimos a rota do avião.
Modernices destes tempos, uma das que Carlos Novais sabia ter como deficiência.
- Quem está aí?
- Todas!!
E estavam, mulher e filhas, as pequenas e as maiores que foram apoiar este momento que também para elas não deveria estar a ser fácil.
- Não morri, caramba. Só saí de casa por uns tempos.
Carlos Novais tentava inventar coisas para lhes dizer, a cabeça estava branca como as vestes dos homens de Doha.
- Tu estás bem?
- Na maior!!
Nessa altura e enquanto escrevia, chorava, e ainda bem que o não viam para evitar o gozo das filhas, “andas muito chorão” e andava.
Antes de ir, chorava por tudo e por nada, não era berraria, não pensem, era assim, comovia-se e pronto.
Comovia-se com tudo, com as palavras que ouvia, com os livros que lia, sobretudo se falassem de crianças ou de velhos, mas reconhecia que ultimamente a coisa se tinha complicado e já torcia o beiço, com um filme, com a televisão e até com as telenovelas que dizia não ver, mas que espreitava.
- Andas aí?
- Sim, estou.
- Então já viste algum crocodilo?
A mulher de Carlos, culpada com a amiga Lurdes com quem aprendia receitas novas, do seu elevado peso que o fez não ter cinto suficiente no último voo entre Bali e Timor escreveu:
- Que comeste?
- Coisas do avião.
Carlos, ao olhar para os seus cento e trinta e oito quilos e lembrando-se do pormenor de no voo que o deixou em Dili não ter tido cinto suficiente para o apertar e proteger, acrescentou:
- Olha amor, estou entregue a mim mesmo. Estou em Timor-Leste, a dezassete mil quilómetros de casa onde aterrei sem cinto de segurança.
Mal sabia Carlos Novais que muitas outras vezes iria sentir a falta desse cinto.
-Então? Então? Carlos estás aí?
Não tinha ficado sem Net, conforme lhes foi dito durante as conversas preliminares com o ministério, foi sem luz e só três horas depois conseguiu ligar de novo o computador onde uma fileira de preocupações estava escrita em monólogo:
- Carlos estás bem?
- Carlos porque não escreves?
- Passa-se alguma coisa?
Carlos respondeu de imediato:
- Está tudo bem, fiquei sem luz.
Em desabafo em tom depreciativo, a mulher escreveu:
- Pronto, já estás em Timor…
Carlos esperou um pouco e respondeu:
- O problema não é de Timor, é ainda de Portugal, onde com os roubos nos ordenados, os congelamentos de salários e tudo aquilo que sabes na pele, não dá hipóteses a que um professor possa ter um computador em condições, que não tenha que estar ligado à luz, por velho e muito uso ao seu serviço, tenha ainda que sair do país que é seu… e, caramba!!!
Judite, esposa:
- Não te metas em política Carlos, dá-me tanto medo que sejas assim.
Para Carlos Novais, a conversa estava terminada, não sabia era como o fazer.
Irritava-o a passividade dos portugueses, os medos, as permissões, a última greve de professores em que em todo o agrupamento de escolas a que pertencia, só ele como um tonto perdeu o dia de trabalho, surpreendido por todos os colegas que se manifestavam contra a política desgraçada do governo se terem perfilado religiosamente na escola, como cordeiros silenciosos.
A diretora pela manhã telefonou-lhe:
- Olha, as auxiliares fazem greve, não vai haver aulas, anda que não perdes o dia.
Não queria acreditar no que ouvia, montarem-se sobre as pobres auxiliares educativas que ganhavam quinhentos euros por mês.
Tinha mesmo que sair, para longe, nada fazia sentido, o país estava falso, vivendo de expedientes.
Lembra-se de ter chegado à escola no outro dia e dizer às colegas:
- A partir de hoje falem comigo de novelas, do festival da canção, da Bárbara Guimarães e das nódoas negras, mas não se atrevam a dizer mal da escola, do ministro ou do governo, que eu não discuto mais esse tema convosco.
Decidiu nesse dia colocar mar e terra sobre ele e o país.
- Olha estão a chamar-nos para jantar.
Não estavam.
- Está bem, quando voltas a falar?
- Não sei, quando puder.
- E como sei quando podes?
- Dou-te um toque de telemóvel. Não atendas que deve ser caro e vai para o computador.
- Adeus amor.
- Adeus Papá.
- Papá beijinho para ti.
- Papá compra-me coisinhas.
- PAI, PAI.
- Papá, foi a pequenina que escreveu PAI, eu ajudo a cuidar das minhas irmãs.
Carlos Novais contou as despedidas:
- Eh! Falta uma.
- Sim, a Nevita, ela também te manda um beijo. Só vem amanhã.
Carlos Novais desligou o computador, abriu as malas, tirou uns calções, uma camisola e roupa interior.
Completamente suado, sentiu a água fria do chuveiro como bênção. 
Limpou-se.
Sentiu-se húmido, incómodo, e deu-se conta que estava suado outra vez.
Entrou novamente no chuveiro.
Saiu e meteu-se debaixo do ar condicionado.
Foi assim que Carlos Novais apanhou a primeira constipação na Ásia.
(...)


In O Que Foste lá Fazer?
... em construção...

martes, 12 de septiembre de 2017

A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL - Mais um cheirinho mensal. Nas bancas antes do natal.



 XLI. Patry e Bahamonde

A avioneta passou sobre El Pueblo.
As mulheres e as crianças meteram-se em casa enquanto os velhos se encaixavam na taberna.
A Guarda Civil saiu para a praça.
Todos olhavam o céu enquanto sobrevoava a aldeia, cada vez mais baixa procurando nitidamente um sitio para aterrar.
Correram os militares de tricórnio para a estrada poeirenta que ligava a aldeia ao montado, “dehesa”, doada ao povo por uma herança de uma condessa sem descendência, e que antes da guerra, era lugar de romaria, especialmente em maio, dia quinze, quando todas as famílias aí se reuniam com música, cantares e sol, num enorme festim, celebrando o padroeiro de El Pueblo, Santo Isidro, patrono dos lavradores.
Quando o pequeno avião aterrou, os guardas correram para ele, mãos sobre os olhos e sobre a boca, vultos com espingarda no meio do pó. Cercaram a aeronave e apontaram as armas enquanto a hélice ia morrendo com a nuvem amarelada de partículas infinitas, que baixavam caindo lentamente, nos tricórnios e nas baionetas levantadas.
Perfilaram-se, direitíssimos, coronha na terra e saudação de continência, quando se levantou o piloto, baixou para a asa e saltou para o chão, com a sua farda de graduado da Força Aérea.
- Onde está o oficial de mando?
- Siga-me meu tenente.
O piloto aviador seguiu o guarda civil, montou-se no jipe e ordenou:
- Quero dois homens sempre ao pé do avião.
Não corria perigo de atentado a avioneta, pois o único atentado de que foi vitima, foi o da curiosidade de velhos, mulheres e crianças que meia hora mais tarde a circundavam, nessa oportunidade única de verem aquele pássaro grande, ali, no chão, inofensivo como uma varejeira em descanso.
Pediu o tenente no posto, que fossem buscar Patry a casa.
E foram.
Assustados, os pais de Salustiano seguiram-nos de longe. Ascensión também. Apenas descansaram quando as duas mulheres saltaram para os braços do tenente Bahamonde.
- Venho buscar-te Patry. Não posso levar-te a Portugal, não consegui autorização de voo, mas deixo-te em Talavera la Real, na Escola de Reatores e daí, alguém te levará à fronteira. Salustiano espera-te em Portugal. Tardará meia dúzia de dias a chegar...
- E vamos de avião?
- Sim, de avião, é o mais seguro, depois tenho um amigo que te levará para Portugal, confia em mim. É o máximo que posso fazer por vós.
Apresentou as cortesias ao “alcalde” de El Pueblo, merendou com os pais de Salu, com Patry e com a pequena Ascensíon, ternurenta, enrolada no seu braço.
Exatamente às dezasseis horas e trinta e cinco minutos, a enorme hélice começou a girar acompanhando um roncar enorme vindo das entranhas do aparelho. Bahamonde gostava de aproveitar a luz do sol e sentia certo prazer por ser reconhecido como herói. No fundo tinha razão para se sentir orgulhoso, tinha sido o primeiro homem a fazer a travessia do Atlântico Sul, no seu, hoje no Museu Militar, Plus Ultra, um hidroavião de passageiro único.
- Que levo?
- Nada, rigorosamente nada. Não temos tempo nem espaço.
O avião começou a percorrer a pista, asa de um lado e do outro ganhando ponto de equilíbrio, o focinho a tentar erguer-se em esforço, uma, duas, três vezes como locomotora de todo o corpo que rodava a metros do chão, e mais metros, e uns quantos mais, deixando atrás uma nuvem de poeira e a gritaria de cem meninos descalços correndo com os braços abertos.
As pontas do cachecol de Bahamonde, quase tocavam o rosto de Patry, sentada atrás, e estranhamente, começou a perder o medo.
- Gostas?
 Gritou-lhe Bahamonde...
- Estou beemmm...
No lugar detrás, havia duplos instrumentos de voo:
- Pega nos comandos e leva-o tu.
Patry agarrou, puxou para si por instinto, o focinho empinou e nesta posição de mando, virou um pouco à direita, depois à esquerda... Bahamonde levantou ambos os braços:
- Estás a voar Patry.
Como o não sentira há muito tempo, um travo agudo de adrenalina, percorreu-lhe o corpo. Adrenalina ou liberdade. Não sabia, porque as lágrimas lhe molharam a parte interior dos grandes óculos de vidro encaixados em borracha negra. Apenas sabia que naquele instante poderia desaparecer que não se importava, poderia morrer porque nada lhe pesava e era, entre as nuvens e o pôr do sol que se começava a ver, imensamente feliz.
Bahamonde, apenas mantinha o rumo e só pegou nos comandos, quando começou a descer.
- Onde estamos?
- Vigo!
Saltaram e espreguiçaram pernas e braços.
- Quero que te vistas de perfume. Tenho saudades da Patry de Madrid. Esta parte está controlada por nós, a Madrid não poderemos ir nem para comprar as roupas que gostaria para ti. Quero que leves tudo do melhor para Portugal mereces e quero ter de ti a imagem que deixei na “Plaza del Sol”, na Castelhana, na Ópera...
- Mas falaste-me em Talavera la Real...
- Iremos amanhã. Deixa-me entregar-te como uma princesa.
Nessa noite passearam de mãos dadas, numa Galiza onde o vestígio da guerra lhes serviu de cenário, mas onde as estrelas não acusavam qualquer alteração desta discórdia entre os homens.
Não me perguntem se dormiram juntos, se se amaram, se se perderam ou encontraram, sei apenas que se despediram, num encontro que sentiram ser o último.
Na guerra, só importa o dia.
Aterraram em Talavera, onde o conhecido de Bahamonde os esperava.
- Cuida dela, Romão.
Entraram num carro negro, cujas portas lhes foram abertas por um cigano português forte e fiel.
- Ainda esta noite, estará a salvo na minha propriedade.
Gostaria Patry, de lhe ter perguntado por que mudara de bando.
Anos mais tarde, com a guerra terminada, a Grande Enciclopédia Universal, quando a república já era história e passado, referia:

FRANCO BAHAMONDE, RAMÓN Aviador militar español (El Ferrol, 1896- costa de Mallorca, 1938). Hermano de Francisco Franco, realizó la travesía del Atlántico Sur, a bordo del hidroavión Plus Ultra, del 22 de enero al 10 de febrero de 1926. Aunque conspiró contra la monarquía y fue elegido diputado por Ezquerra Republicana en 1931, secundó el alzamiento militar de 1936.

Era o irmão do Generalíssimo.
(...)
in A Mulher do Sargento Espanhol
...no prelo...

jueves, 3 de agosto de 2017

A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL (Um cheirinho)



(...)

3.  A  Chegada  do  Professor  Primário

Chegou à aldeia com uma mala, em 1970. Pousou-a no chão do café da Josefa quando ainda estavam vivos e faziam parte do pulso da aldeia, o marido de um lado e o Esteves do outro da estrada. Nesse ano, era o Costa um rapaz que caçava ninhos, a filha da Josefa ajudava no café quando saía da escola, a Mariana nem sonhava vir a casar-se com o Fagundes Fonseca e a Glorieta ainda fazia os petiscos da taberna.
Tal como o leite que começa a ferver, nada estava mudado, mas tudo estava em mudança.
África continuava a ter províncias portuguesas. A guerra estava assumida como quem tem que vestir um casaco quando faz frio. As previsões eram meteorológicas, e as gentes, acostumadas aos enganos dos boletins da televisão, sabiam que se dissessem que iria fazer sol, poderia chover, ou se dissessem que as trovoadas ameaçariam, poderia sair um dia de céu azul e limpo. Pelo sim pelo não, saía-se sempre com o guarda-chuva, pois os barcos iam e vinham e os homens iam sem saber se voltavam.  
O Eusébio aterrorizava o Sporting, mas não o suficiente para que o Benfica não perdesse o campeonato nesse ano. Lembram-se do Dinis? Foi ele quem marcou o golo que derrotou o Benfica. Ana Maria Lucas ganhou o concurso de Misse Portugal, Joaquim Agostinho a Volta e tudo era mexido, e dado a dedo, a quem via a RTP 1 com menos de 12 horas por dia de emissão e pela RTP 2 que não chegava às 3 horas diárias, com a grande antena de ferro no início e a bandeira mais hino no final.
Começava, no entanto a sentir-se a fervura, pois a licença de isqueiro acabou em maio, Simone de Oliveira apesar de insultada, continuava a cantar “a desfolhada”, fazendo filhos por gosto na exaltação do vermelho milho rei, e Salazar, depois de dois dias no Mosteiro dos Jerónimos em câmara-ardente, partiu para Santa Comba Dão em retiro perpétuo, depois de grande passeio numa carrinha, dessas dos hippies, Volkswagen, cortada a partir da cabina para a urna ser visível e despedir-se do país em caixa aberta.
A mala do viajante chegado ao café da Josefa tinha os cantos cobertos com metal, cantoneiras que reforçavam a proteção do cartão. Era castanha escura, e os dois fechos dourados com buraquinho para a chave fazia adivinhar o grande diário que em si mesma continha.
Colocou o chapéu de feltro no balcão como quem coloca uma pedra de damas em tabuleiro de mármore. Agarrado por cima, com cuidado e precisão. O homem procurava uma pensão. Depressa correu pela aldeia que o novo professor tinha chegado.
Fernando António Figueiredo Mata, seu nome completo, Fernando Mata, o que utilizava, só Fernando para amigos íntimos e família, e o Batalha, como era conhecido na tropa, não por ter participado em alguma de referência, mas porque tinha nascido no local, perto de Leiria, onde D. João I mandou construir o Mosteiro que embora tenha o nome de Santa Maria da Vitória é conhecido apenas por Mosteiro da Batalha, esse sim em homenagem à sessão de pancadaria entre Portugal e Castela e que como um foguete de lágrimas deixou pinceladas de cor nas lendas de um povo que queria ser país: a Padeira de Aljubarrota, a Ala dos Namorados, a grande ideia da colocação das tropas em quadrado, com os cavalinhos espetados nas lanças das valas e a castelhanada, com as pesadas e lustrosas armaduras, no chão, sem se levantarem do peso e com as gargantas, os sovacos e as partes baixas ao alcance das lendárias espadas Alfagemanas de Santarém, e por aí fora, porque país sem história é apenas povo, e esse é sempre anónimo, herói sem nome, acabando sempre num só símbolo de soldado desconhecido, em campa rasa.
A gaiatagem depressa se dedicou a espiar o novo professor que dentro de dias iria partilhar o mesmo espaço na escola, mais os rapazes do que as raparigas, pois as meninas eram todas alunas da Dona Antónia Tavares, que fazia já parte da aldeia como o coreto, o mesmo que seria responsável, anos mais tarde, pelos falsos gases da filha da Josefa.
Da primeira à quarta classe. Duas salas. Rapazes e raparigas, um professor a quem chamavam Senhor Professor e uma professora a quem chamavam Minha Senhora.
-Já avisámos a Alzira, Senhor Professor, o melhor quarto da Pensão Luz está a ser preparado para si.
Fernando Mata sorveu o café.
- A escola não tem casa?
- Ter tem Senhor Professor, a Dona Antónia ainda aí morou, mas já lá vão muitos anos, está a ver, o filho mais velho dela está agora na tropa e era pequenino quando vieram para a aldeia...
Novo sorvo.
- Está suja?
- Suja? A cair de podre Senhor Professor e cheia de pombos, autorizados pela Junta à Sociedade Columbófila da terra.
Último sorvo. Chávena solta no pires, chapéu na cabeça e mala na mão.
- Bem, vamos lá então conhecer a Alzira, casa de pombos, casa de tombos – e riu-se, pelo que todos se sentiram na obrigação de rir também.
Uma lambreta cinzenta parou na rua. Duas referências brancas, os dentes e o colarinho, estenderam a mão num cumprimento de cumplicidade. A igreja e a escola encontraram-se na rua principal.
-Sou o padre Cabral, dou-lhe as boas-vindas.
O professor tirou o chapéu e soltou o nome Fernando. Trazia o convite para o chá em casa da Dona Antónia, às dezassete horas, estaria também o farmacêutico. Chá ou vinho enrolou com palmadinha nas costas o padre Cabral.
A Pensão Luz era uma casa de família, com quintal e cão na frente. Uma escada com grade de ferro pintada de branco levava à porta principal. Duas laranjeiras de laranjas no Natal e um limoeiro de limões todo o ano eram vistas de cima na porta de casa. Alzira alugava quartos, e tinha hóspedes certos como o Chefe dos Correios, o Gerente do Banco Nacional Ultramarino e agora o professor. O quarto era limpo, sem luxos, pequena mesa com candeeiro de bicha metalizado e com uma janela como um olho gigante sobre a planície.
Alzira era filha de Dona Francisca, a fundadora da pensão, e de Luís Pinheiro, hoje já na casa dos que Deus tem. Foram os pais que depois de anos emigrados em França, trouxeram as poupanças e construíram a casa. Deixaram de fazer camas lá, para as fazerem cá, de jardinarem lá, para jardinarem cá, de cozinharem lá, para cozinharem cá, no que era deles. Os sacrifícios que passaram muitas vezes com as estrelas a servirem-lhes de teto, levaram-nos a chamar Luz à pensão.
A sua estrela arrancada aos céus franceses, a sua luz colocada na sua aldeia.
Hoje era Alzira que fazia as camas, lavava as toalhas, fazia as comidas e regava o jardim, onde duas santinhas de pedra estavam colocadas lado a lado, a Virgem de Lourdes e a Virgem de Fátima. Quando o pai era vivo, chegaram a ter sempre duas bandeiras desfraldando com o vento ou adormecendo-se nele, a tricolor francesa e a bicolor portuguesa com a sua esfera armilar, cujos caminhos também tinham ensaiado. Alzira tinha um irmão, mas esse, como todos os irmãos da mesma idade, estava para África, forçando a que a bandeira das quinas se mantivesse noutro mar, mesmo com mortes no capim.
Pelas dezassete horas, o professor Fernando Mata, estava a ser recebido em casa da colega Antónia, onde já estava o padre Cabral e o farmacêutico Luís de Sousa. Uma serviçal com avental branco trazia a bandeja de prata com o bule a fumegar. Falou-se do tempo no início e em política no final, sem discussões, todos os presentes eram defensores do hino, da bandeira e do patriotismo. Como veio para professor? Por vocação. E você Padre? Por vocação. E você Doutor? O farmacêutico sem mexer um músculo, mas também sem modificar uma letra ou entoação, disse também, por vocação.
Mentiam todos.
A única acariciada pela vocação era a Dona Antónia, que desde pequena, brincava às escolas e aos puxões de orelhas.
O Padre Cabral, nascera em Alcaria, uma aldeia da margem do Zêzere já crescidinho pelos degelos da Serra da Estrela, mas onde a pobreza era escura como a broa e onde o chão, rochoso, era inimigo da fartura. Na escola, o menino Cabral filho do coveiro da aldeia era esperto para as letras e quando chegou a altura de decidir sobre emigrar ou seminário, optou pelo seminário e acomodado por lá ficou.
O farmacêutico, bem que gostaria mais de se ter dedicado às letras, especialmente à poesia, mas a farmácia acompanhava a família desde os avós e era um destino. Foi para Lisboa a mando do pai onde foi um aluno medíocre na Faculdade de Farmácia e acabou o curso a pago de perus no Natal, borregos na Páscoa e fruta fresca todo o ano, acompanhado de imensos pedidos e recomendações de um primo da mãe que era ministro.
Fernando Mata acabou professor por amor. Com quinze anos, viveu o seu primeiro romance de borboletas e água das pedras com a filha de um funcionário público. Com dois anos de mãos dadas escondidos nos jardins públicos, ou descendo e subindo as ruas lado a lado, confessaram um ao outro futuro eterno. Quando a escola do Magistério Primário se estendeu da capital de província para a capital do distrito, o sonho de ser professor mostrou-se fácil à carteira do pai que assim pôde mandar estudar os filhos sem necessidade de deslocá-los. Maria Catarina passou assim a usar bata branca e a juntar-se às cinquenta meninas que iriam dois anos depois ser espalhadas pelas escolas públicas do regime. Bastava-lhes naquele tempo ter um sentido rigoroso da moral, acreditar na trilogia Deus, Pátria e Família, usar meias de vidro e saias dois dedos abaixo dos joelhos. Calças nunca. O diretor tinha até o chefe dos contínuos autorizado, a que ao subir as escadas que levavam às salas de aula, pudesse beliscar as pernas das futuras senhoras professoras, com o objetivo de ver se tinham ou não meias e de imediato, caso tocasse as pernas nuas e firmes, comunicar à Direção, que neste caso era ele, o Diretor, nomeado por Diário do Governo em cargo perpétuo.
As meninas com namorado tinham-nos todos em fila, de casaco, gravata e lenço no bolso, esperando a saída da escola a trezentos metros daí, numa linha de meta imaginária, frente à tasca do Capote na rua que baixava para o Café Alentejano, a sala de espera. As namoradas chegavam, e eles ali, sem dar um passo, que encurtasse a distância fixada. Uma ou duas com mais idade, já com casamento autorizado para os poucos meses que faltavam para a queima das fitas e a missa da praxe, podiam ser levantadas na porta como encomendas desde que os destinatários nunca entrassem no edifício, e sempre depois de uma autorização escrita do pai da menina entregue ao diretor, em papel azul, de vinte e cinco linhas, selado e começado sempre da mesma maneira: Eu… abaixo assinado – e acabado também formatado, assinatura e data depois do: Pede deferimento.
Aqui começaram os problemas de Fernando Mata.
O governo de Salazar, pai exemplar, acima de cada pai, foi quem criou a lei sobre as autorizações de casamento das senhoras professoras. Se lhes pagara a formação, e lhe pagava um ordenado sentia-se na obrigação e o pior era que no direito também, de protegê-las, como pastor de ovelhas com dono. Havia que evitar a todo o custo a figura parasitária do marido da professora, que corrompia a moral e sem trabalho vivia de um ordenado que não era seu. Então, naquela ânsia de tudo ter bem atado, num novelo cuja ponta estava sempre nos seus dedos, o governo da nação proibiu o casamento das senhoras professoras com quem não tivesse um emprego digno, como, para eles, empregado de banco, funcionário público ou empresário com provas dadas e salários superiores e onde o casamento entre professores, senhor professor e minha senhora, era o mais autorizado, como também o era o de minha senhora e funcionário das finanças.
Viu-se assim, Fernando Mata, por amor a Maria Catarina a apresentar-se ao exame de admissão da Escola de Magistério, onde os homens tinham privilégios especiais de entrada, vá-se lá saber porquê, pelo menos com professores não se colocava a questão de autorizar casamentos.
O melhor tempo do seu amor com Maria Catarina foi o do seu primeiro ano como aluno da escola, aluno único, com namoro autorizado com a menina da bata branca que estava no segundo e quase a sair como professora, quase pronta para escrever nessas almas infantis, como dizia Junqueiro, gravado no parque infantil da Cidade, essas almas virginais onde tudo quanto nelas se grava não se apaga mais, quase preparada para escrever e gravar, nessas almas brancas como a neve, nessas pérolas de leite, o cunho como ferrete de um país cinzento que usava as senhoras de bata branca, para unificar o pensamento eternamente.
Maria Catarina começou a sua carreira de professora primária na escola de Monte Sete, uma herdade com um casarão com oitenta quartos vazios, lareiras apagadas, biblioteca sem ser lida e cabeças de javalis e veados, dentes de javalis, cornos de veado, javalis e veados e mais javalis e veados a forrarem os corredores e os salões. Fechados todo o ano. A família proprietária vivia em Lisboa e apenas abriam a casa uma ou duas vezes no outono onde faziam festas após as caçarias com dezenas de carros de marca parados no pátio. A mulher do pastor tinha a chave, a senhora Conceição, e abria as janelas uma vez por semana para que a humidade não embolorasse a pele dos cadáveres e os tapetes de Arraiolos. Dona Conceição tinha sete filhos e vivia com o marido numa choça de pedra e telhado lusalite todo o ano. A bondade dos senhores era tanta, que construíram uma escola, com mesas, cadeiras e quadro preto, onde o vento entrava pelas frinchas e os pardais cagavam no chão. Sete alunos tinha a escola. Os filhos do pastor e da senhora Conceição. Colaborava o Ministério com a bondade desta ilustre família, motor de desenvolvimento, empregando logo nas tarefas do campo os alunos a partir dos dez anos, mas ensinando o ofício, tarefa dos pais, bem mais cedo. Dar de comer ao gado, ajudar no pastoreio, ordenhar as ovelhas, alimentar as galinhas, cuidar dos cães, soltar as perdizes e bater os javalis nos dias de caçaria. Por isso mesmo o Ministério de Educação agradecia o esforço colocando anualmente um professor presente de outubro a julho, todos os dias, desde que a ribeira não enchesse e impossibilitasse o acesso. Quando as professoras eram insuficientes, colocavam o que designavam como Regentes Escolares, que sabiam ler, escrever e contar, eram normalmente solteironas e algumas vezes, antes ou depois, acabavam como amantes escondidas, dos donos das herdades, não todas, obviamente, algumas havia que colocavam um gosto nas tabuadas, nos mapas, nas réguas de medir e de esfolar, e beatas quase todas, levantavam o dedo aos patrões e ameaçavam-nos com o Bispo.
Nesta escola começou Maria Catarina a trabalhar, alojada num quarto da aldeia mais próxima, indo a casa nas sextas-feiras à tarde onde lavava as roupas da cama e enchia as marmitas que levava com comida feita aos domingos, para aquecer em banho-maria durante o resto da semana, enquanto falava de barcos a quem nunca tinha visto o mar, de estações de caminhos-de-ferro a quem nunca tinha visto um comboio, de aviões que sabiam ser pequeninos lá no ar, viam-nos às vezes quando passavam nos dias sem nuvens, embora as abetardas fossem muito maiores e nunca voassem isoladas, e de rios, grandes, dizia a Senhora, e compridos, de norte a sul do mapa de Portugal, maiores, muito maiores do que a ribeira da aldeia no inverno, embora fossem pequenas linhas azuis que a Senhora dizia serem grandes e se a Senhora dizia era porque sabia... e de um outro mapa com pretinhos nus que cantavam o hino nacional com as bandeirinhas de Portugal nas mãos.
Foi difícil o primeiro ano de trabalho de Maria Catarina e o último de Fernando Mateus na Escola de Magistério. Viam-se pouco. Ele, assediado por quarenta e nove batas brancas, ela rejeitando os presentes que o filho do patrão, o Senhorito, como lhe chamava a senhora Conceição, insistia em trazer-lhe de Lisboa, nas visitas que aumentaram da sua parte à herdade nesse ano.
Estiveram no verão, já professores os dois, com os pais dela, numa residencial em Setúbal, na Avenida Luísa Tody. Da janela do quarto dele viam o Sado e o movimento dos barcos de pesca fronteirando com Tróia. Aí passaram horas com planos e beijos, pois à noite, Catarina voltava ao outro quarto onde dormia com os pais, não fosse o diabo tecê-las, que nessa altura o biltre, ao contrário dos dias de hoje, era adverso do prazer.
Foi a última vez que estiveram juntos.
Fernando Mateus recebeu a guia de marcha para se apresentar no Centro de Recrutamento Militar de Leiria, daí para Santa Margarida e de Santa Margarida para Santarém, último quartel antes de desembarcar em Moçambique.
- Tens que mudar de escola, Maria, não te quero aí sozinha.
Partiu como furriel e juras de se casar por procuração. Fotografia de um e do outro, nos dois lados do mar, frente a frente, só um coração de cada lado, ela com o pai como padrinho, ele com alguém de confiança que poderia vir a conhecer e em último caso, um oficial do seu batalhão que convidaria se necessário, com dois notários a perguntarem se sim, se para toda a vida.
Os aerogramas começaram a voar entre oceanos, primeiro muitos, depois menos, até se estabilizarem num por mês, às vezes dois, até passarem a um de dois em dois, o que significava por ano, seis para lá, seis para cá, se o tempo se prolongasse para além da estação das chuvas e do regresso definitivo.
O furriel Batalha tinha para além de participar nas colunas mato dentro, que ensinar a ler os companheiros, muitos, que o não sabiam fazer, pois trocaram cedo o giz pela enxada, pelo cajado, e estes pelas G3 que os acompanhavam a diário e com quem dormiam como esposas. Maria Catarina mudou para nova escola, desta vez para o Gavião, onde conheceu a Alierta, uma açoriana desinibida que a convenceu a concorrer para os Açores no ano seguinte. E foi, TAP primeiro e SATA depois até às ilhas, onde se sentia útil cuidando meninos ranhosos e com a cabeça compartindo os piolhos com o sonho, o sonho de embarcar, acenando com lenço branco na proa de qualquer barco que os levasse dali.
Enquanto o furriel Batalha pensava diariamente sobreviver, Maria Catarina pensava em viver. Foi assim, que pisou os telhados do vulcão dos Capelinhos, que se molhou nas águas quentes das praias de São Miguel, com os pés enterrados na areia preta que fazia com que os corpos em calções parecessem andar todos de peúgas, comeu o cozido à portuguesa feito nos buracos das furnas com o calor da terra, comeu figos no Pico das figueiras rastejantes que saltavam os muros, bebeu vinho de cheiro, comeu ananás e polvo cozido, cavacos e lapas, fotografaram as lagoas, provou a aguardente amarela de São Jorge, respirou as hortênsias que dividiam as propriedades nas Flores, assistiu à captura solidária das últimas baleias, provou o gin tónico do Peter na Horta e até um dia, no Cais, embarcou num navio de carga, o Ponta Delgada, e visitou o Corvo, onde o barco ficava fora por falta de porto e os passageiros desembarcavam na praia a remos como no cinema. Cem habitantes tinha a ilha e moravam na mesma rua em casas sem chaves nem fechaduras e onde existia apenas um veículo motorizado, concretamente um trator que puxava uma zorra e onde os aventureiros turistas pagavam trezentos escudos, para de pé e agarrados uns aos outros, subirem até à cratera do vulcão.
O furriel Batalha, exatamente onze meses depois de ter sido engolido por África e quando lhe faltavam sete para terminar a comissão de serviço, pediu ao alferes Faial, com ordem de marcha para férias merecidas, que mandasse saudades para a sua terra e deu-lhe a morada de Maria Catarina para que lhe entregasse em mão uma carta, com fotografias suas barbudas e de camuflado, ora encostado a um tanque, ora na asa de um avião parado com focinho de tigre pintado, ora com um pretinho ao colo com a mãe ao lado, de boas carnes e mamas de fora, ora afagando uma macaquinha com correia ao pescoço, que acabou por trazer do Continente Africano e já na aldeia, anos mais tarde e já crescidita, foi levada para a quinta do Papafina, onde muitas vezes os meninos da escola iam ver África, o nome que tinha a macaca e que era conhecido por todos.
Tudo lhe foi devolvido quando o alferes Faial regressou dos Açores para se incorporar à guerra.
- Temos que falar.
Sentaram-se debaixo de um embondeiro, duas grades vazias de cerveja, de madeira húmida, como bancos, uma garrafa de VAT 69 a beber sem copo.
- Não a vi. Já lá não está. Não cheguei a dar-lhe nada. Toma.
Tirou o envelope dobrado do bolso chapado das calças.
- E não sabes nada?
- Sim pá, é melhor que bebas e esqueças - e estendeu a garrafa depois de lhe limpar o gargalo.
Maria Catarina tinha partido para os Estados Unidos, grávida de três meses, deixando os alunos sonhando com barcos, e acompanhada pelo açoriano que conhecera na Horta e com quem combinou passar o resto da vida.
Fernando Mata nunca mais soube nada dela.
Começou a esquecê-la naquela primeira garrafa e apenas ficou com a profissão, da qual passou a viver quando foi desmobilizado e que o levara até a casa da Dona Antónia, para tomar chá com o farmacêutico e com o Padre Cabral.


In A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL
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