lunes, 28 de junio de 2021

CONTINUO A COLABORAR COM A REVISTA LUSITANO DE ZURIQUE

 Esta é a minha colaboração de junho. A Amelia (felizmente) está agora assoberbada de trabalho. Será obviamente colocada no site de Filigrana Editora, mas para já, decidi colocá-la ao serviço dos meus leitores, ela apresentará toda a revista a seu tempo.



No site da Filigrana Editora sairá a notícia completa.

Estou vivo, mas ainda não reformado da escola.

Cá vai.


VOLTEI E PERCEBI O AVISO

Era um dia normal. Acordei e sentei-me na cama, esforçando-me por despertar completamente como o fazia há muito tempo e com tempo. Por alguma razão, com a escola ao lado de casa, me levantava às seis e trinta da manhã para começar a trabalhar às oito e quinze. Tempo suficiente para ir ao “careca”, depois do duche rápido, comer a bifana com mostarda que se tornara num ritual. Depois, às sete e trinta, acordava as gaiatas e as brigas pois só tenho uma casa de banho.

Mas dizia eu que estava sentado na cama, aqueles sagrados minutos que me ajudavam a despertar. Estive a olhar para baixo, ganhando coragem, analisando as unhas dos pés naqueles movimentos de dedos a quem mentalmente dizia:

- Está na hora.

Também como rotina, deixar-me dormir com a televisão do quarto acesa, era normal. Apagava sozinha programada para desligar duas horas depois de ligada. O comando acabava sempre enrolado nos lençóis, mas naquele dia, sentado na cama e movimentando os pés, vi que estava no chão, metade escondido debaixo da cama. Dobrei-me e estiquei o braço direito para o apanhar e colocar na banquinha. Fui incapaz de agarrá-lo e naquele momento, pensei que tinha dormido sobre ele e estivesse adormecido. Embora não sentisse qualquer “formigueiro”, decidi abaná-lo e foi só nesse momento que me apercebi que estava paralisado, do ombro até à ponta dos dedos, inerte, morto, sensação de impotência. Nesse instante, começou a invadir-me o medo e acordei a minha mulher:

- Tenho o braço e a mão paralisados.

Acordou e sentou-se num repente, corpo em ângulo de noventa graus:

- Meu Deus, tens a boca torta.

Foi o sinal para sairmos rápido de casa a caminho do Centro de Saúde de Campo Maior. Pouco tempo aí estive, apenas o suficiente para a chegada de uma ambulância amarela, me estenderem numa maca, de ter passado a estar atado e a olhar apena para cima, ouvindo ainda dizer:

- A Senhora não pode ir, apenas o doente.

- E para onde o levam?

- Não sabemos, receberemos ordens pelo caminho, irá para o primeiro sítio onde tiver lugar para ser atendido de urgência.

Vivíamos uma situação de Covid extrema e os hospitais, inchavam como vacas prenhas.

Desde que de barriga para o ar deixei de ver o céu azul e apenas o tecto branco da ambulância com o reflexo das luzes pelas janelas opacas e o som da sirene que gritava a todos “fujam da frente”, toda a minha vida passou como uma curta metragem onde me vi pequenino, os meus pais, os meus avós, os amigos da escola primária, as namoradas, as minhas filhas, o correr apressado de uma vida que naquele momento descobri pobre, inútil, desperdiçada.

Ouvi o motorista dizer ao companheiro:

- Para Elvas já não vamos, está cheio, mandaram-nos para Portalegre.

O companheiro disse-lhe:

- Se não chegarmos aí e nos mandarem para Évora...

Eu ali, longe da família, olhar no tecto da ambulância, impotente, entregue a duas pessoas que nunca tinha visto e que devido às máscaras, apenas tinham olhos.

- Ficamos aqui, Portalegre, estão já à nossa espera.

Estavam, baixaram-me a maca e começaram a correr com ela corredores dentro, lembro-me de muitas vozes e do tecto passar sobre mim à velocidade das árvores quando andamos de comboio. Meteram-me em várias salas onde me faziam exames, acho que todos, e de uma correria para outras salas e outros todos.

Se vos escrevo é porque o susto passou e eu, mais do que um defensor do Serviço Nacional de Saúde, tornei-me seu admirador.

Agora que apenas estou pendente de alguma fisioterapia, sinto-me na obrigação de vos contar que depois deste tempo já sem risco e em família, levei duas vacinas, a da Astrazeneca e a da noção de que os nossos “grandes” problemas, são gotinhas não de chuva, mas de neblina.

A vida há que vivê-la sem estar numa panela de pressão onde a ambição, a inveja, o medo e tantos outros vírus, são para quem alimenta a panela, a mais perigosa das pandemias, e o curioso é que estes vírus também matam.

A primeira coisa que fiz quando saí do hospital, foi as pazes com o meu vizinho, que parava sempre o carro em frente à minha porta.

Assim continuo, agradecendo o aviso que recebi.

Sejam felizes!

                                                                              Aragonez Marques