sábado, 20 de enero de 2018

UM CONTO CHAMADO 115


Este espelho é tão velho como eu.

Não se lhe nota o passar do tempo, como eu também não vi o seu passar. 

Faço diante dele a barba todos os dias, ano após ano, e não me vi envelhecer.

Os retratos sim, esses param o tempo.

Sou mesmo aquele da fotografia da festa de anos da minha filha?

O bolo tem quatro velas.

Ela sim está diferente. 

Muito mais diferente do que eu.

Ainda me identifico com a fotografia reconhecendo-me. 

Ela não. 

Com vinte e dois anos, hoje, não tem fisicamente qualquer semelhança.

Estes anos também passaram sobre mim... só que o meu espelho me tem iludido.

Senti saudades, não do tempo, mas dela naquele tempo.

Agora reparo que tenho uns pelos brancos na barba.

Não é grave.

Grave, muito grave é o sentir-me tão branco por dentro.

Branco, não de puro, mas de vazio.

Vazio de amor.

A minha mulher, a quem há longos tempos escrevia longos poemas, fazia longas promessas e me auxiliava a desenhar longas esperanças de futuros, passou simplesmente a ser mãe e longamente dona de casa.

Mulher apenas, deixou cair frivolamente a minha, e eu, aos poucos, também deixei de ser dela.

Somos assim dois adultos que fingem sermos pertença um do outro ao pé dos outros.

Refugiados no trabalho, usamos para o seu escrupuloso desempenho o pretexto das filhas, e transformámo-nos em irmãos, às vezes amigos, defendendo espaços, mas culpando-nos mutuamente, ferozmente também, por termos deixado fugir o amor, e termos tido a infelicidade de que o destino nos tenha escolhido para enfrentar o medo do futuro.

Tratámos o nosso amor como algo que uma vez adquirido pensamos ser eterno, em vez de o tratarmos como um frágil bonsai que se tem que cuidar dia a dia.

Não trocamos as mãos nem as ideias há muito, nem os lábios em saudação, muito menos os corpos em prazer.

Houve tempos em que o fazíamos por gozo, depois por rotina, mais tarde por obrigação, obviamente amadurecidos pelo tempo e entrincheirados pelos problemas diários, deixámo-nos disso.

Passou a ser quando calha e menos apetece, normalmente após uma festa com amigos onde o álcool supera, ou esconde, a realidade.

Agora, já nem assim, e sentimos, angustiosamente que é a menoridade da filha mais nova que nos empurra a partilhar a casa e o desconforto de se ver passar os dias sem planos.

Mãos suadas nos bolsos, pensamentos em torvelinho de tentativas de fuga, Carlos Santiago abriu o porta-chaves, escolheu uma e meteu-a no carro.

A porta abriu-se e sentou-se nele. Fechou-a, ligou o rádio e recostou a cabeça no encosto do banco. 

Metade de uma vida perdida, tantas coisas que gostava ainda de fazer...

O Paco cantou-lhe por rádio "a ternura dos quarenta".

Levantou o som.
Meteu a primeira e arrancou.

Apetecia-lhe beber algo.

As luzes da discoteca confundiram-lhe o humor.

Entrou e pediu um whisky com duas pedras de gelo.

Uma mão tocou-lhe no ombro, era o Luís:

- Anda, vens mesmo a calhar, tenho aqui uma surpresa para ti.

Levou-o para uma mesa, onde lhe apresentou duas jovens, com vida e sonhos.

Enquanto o Luís saltou para a pista, ficou sentado com a que restou.

Apetecia-lhe conversar.

- Que fazes?
- Sou psicóloga.

Falou-lhe do eu, dos desenvolvimentos cognitivos, dos estádios onde se agrupam as resoluções de conflitos, da adolescência, da sexualidade, da sida, dos preservativos...

E o Luís dançava, dançava, dançava e bebia... e nunca mais vinha.

Chegou finalmente.

- Está tudo pago. Vamos embora daqui. Trouxeste carro? Óptimo, ela vai contigo e vens sempre atrás de nós.

Ordens consecutivas, que se cumpriram sem perguntas.

Encontrou-se no carro em plena noite com uma adolescente tardia a seu lado, à frente seguia o Luís noutra viatura com outra adolescente de quem ele nunca haveria de saber o nome.

Cruzaram a cidade, parando e arrancando ao ritmo dos semáforos.

O Luís parou à porta de um hotel grande. 

Catorze, quinze andares, garagem por baixo.

Saiu do carro, entrou na recepção e tornou a sair.

Trazia duas chaves nas mãos.

- Um quarto para cada um. Vou meter o carro na garagem. Venham atrás de mim.

Santiago olhou a companhia nos olhos.

Vestida de preto tentava aparentar mais idade, puxando conversas que tentassem comprovar o alto conhecimento que tinha da vida, mas que os poucos anos atraiçoavam.

Santiago olhou para ela:

-É uma situação inesperada. Queres mesmo subir?

Fez-se silêncio.

- E tu queres?
- Eu por mim...
- Mete o carro na garagem.

Carlos Santiago assim fez. Estacionou, chamou o elevador e ela deu-lhe a mão.

O pedaço grande de chapa presa à chave marcava o número 115.

Parou no 1º andar.

O Luís já lá estava, eufórico, macho e feliz, os filhos pequenos em casa da avó que a mulher, enfermeira, estava de turno naquela noite deixando-lha toda, inteirinha para ele.

- Mostra o teu quarto pá, é igual ao nosso. Amanhã o primeiro a acordar chama o outro. Divirtam-se.

E trancou-se no 116.

No 115, a história estava diferente. Santiago sentou-se na cama, enquanto a jovem despia a saia com cuidado e começava a desabotoar as mangas da camisa.

- Que se passa? Não te despes?

Santiago levantou-se, lembrou-se dos pelos brancos da barba e do branco do seu vazio, do espelho, da sua vida.

Colocou-lhe as mãos na cintura e perguntou-lhe:

- Acabaste o curso há muito tempo?
- Não, ainda estou a estagiar...
- Que idade tens?
- Vinte e dois anos.

Santiago afagou-lhe os cabelos, olhou-a com ternura nos olhos e disse-lhe:

- Não se vai passar nada entre nós.

Ela sorriu, apenas exclamou:

- Eu sabia...
- Onde queres que te leve?
- Fico em casa dela este fim de semana, foi o que disse aos meus pais...
- Bebeste muito, deita-te e tenta descansar.

Deixou-se dormir num repente.

Santiago puxou um cobertor e tapou-a. Parecia uma criança dormindo. O álcool tinha-a afectado bastante. Lembrou-se das suas filhas, e enquanto a via dormir, afagava-lhe a testa e aconchegava-lhe a roupa.

Estava a amanhecer depressa.

Santiago foi para a varanda do quarto e fumou, um, dois, três, muitos cigarros.

As luzes da cidade foram-se desmaiando com a claridade do dia.

Eram 5 horas da manhã.

No 116 tudo estava tranquilo. Mesmo assim arriscou-se a bater.

- Luís, abre.

Olhos de sono e muita bebida abriram-lhe a porta.

- Olha, a amiga da tua amiga está a dormir no quarto. Depois leva-as. Eu vou-me embora.
- Passou-se alguma coisa?
- Nada, absolutamente nada.

Desceu o elevador, meteu-se no carro e foi direito a casa.

Meteu a chave na porta e subiu ao quarto das filhas. Beijou-as, tapou-as e foi para o seu.

Despiu-se devagar para não acordar a mulher, embora adorasse que ela despertasse, e o amasse, e o acariciasse, e lhe deixasse pelo menos descansar entre os seus braços.

Deitou-se.

A mulher ao senti-lo disse-lhe meio a dormir:
- Cheiras mal da boca, vira para lá a cara.

Santiago olhou o tecto ainda meia hora. Quando sentiu que as lágrimas estavam a rebentar nos olhos, levantou-se, vestiu-se, saiu sem ruído, meteu-se no carro e avançou precipitadamente para a auto-estrada. 

As faixas de rodagem eram dele àquela hora. 

Cento e vinte, cento e trinta, abriu a janela e o vento da manhã lavou-lhe a cara e soltou-lhe o cabelo colando-lho e retirando-lho do rosto, cento e quarenta...

Ligou o rádio, novamente o Paco Bandeira cantando, outra vez,  "... a ternura dos quarenta...", cento e cinquenta...

Duas horas mais tarde o telefone tocou na sua casa.

O 115, o seu número da noite, tinha ligado para a policia, e a polícia para a sua residência.

A mulher atendeu. Subiu ao quarto das filhas e agarrou-se a elas em pranto:

- Meninas, meninas o papá está muito mal no hospital, teve um acidente e dizem que é grave.

Não teve coragem de lhes dizer nada mais.

A essa hora, Carlos Santiago já estava morto.


A.M.
1996


in- Retratos Esquecidos de uma Velha Gaveta ( na gaveta ).


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