(...)
António Fagundes Fonseca deitou-se de papo
para o ar, colocou os braços por detrás da cabeça e viu como Mariana, robe
vestido, andava de um lado para outro. Fazia-o sempre que se sentia insegura. Agora faltava a mala. António sabia que a mulher, acabaria por trazer a mala
para o toucador, colocaria um saco plástico no chão, e começaria a rasgar
papéis e a desfazer-se da tralha. Era sempre assim, fora sempre assim. Quando
estava intranquila, Mariana arrumava desarrumando o saco fundo das surpresas
que a acompanhava sempre. Aquele poço sem fim, das coisinhas, dos restos e das
necessidades na hora, enchia todos os meses, e na hora que menos se esperava,
mas coincidindo sempre com as insónias de Mariana, era esvaziado e separado das
inutilidades e exageros. Era como se ao arrumar a mala, se arrumasse a si própria e num ritual, que ele conhecia de muitos anos de cumplicidade,
despejava-a e despojava-se, terminando sempre pela carteira que guardava para
último, atafulhada de papéis e papelinhos que eram vistos e rasgados,
emagrecendo-a e reduzindo-a até ficar apenas com as fotografias dos netos, do
marido e dos trocos. A carteira era o coração da mala, e se libertava o corpo,
acabava sempre por libertar a alma.
- Já está!
Pensou António Fagundes Fonseca quando a viu
colocar o saco de plástico no chão e a mala volumosa, castanha e com alça a
tiracolo, sobre o tampo de mármore do toucador.
Apenas se ouviu de início o ruído metálico do
correr do fecho, depois multiplicaram-se sons de fundo, arrastados, abafados,
embrulhados. – Onde está o leque?- pensou António depois de ter visto sair a
escova do cabelo, um espelho redondo, umas chaves, outras chaves, um lenço
branco amarrotado, outro lenço maior e colorido, uns óculos de sol, batom,
lápis dos olhos, rímel, tudo por separado e espalhado, uma bandolete, uma
tesoura, uma fita métrica desenrolada, um pacote encetado com três bolachas
Maria esquecidas, uma chupeta da neta, o missal e o véu, a última imagem
impressa de Santa Glorieta (que colocou dentro do missal), a caixinha redonda
com o terço dentro comprado em Fátima, um corta-unhas, um frasquinho de
perfume, falta o leque, falta o leque, António continuava a olhar e o leque
passou a ser uma obsessão, umas cuequinhas dobradas preventivas de eventual
incontinência, uma lima, duas castanhas piladas, a caixinha das aspirinas, e o
leque? Suspirava mentalmente António, dois pensos rápidos e um urgente, um
embrulhinho em papel de prata que desembrulhado mostrou o resto de uma banana
(acabaram ambos no saco de plástico), um carrinho de linhas com uma agulha
enlaçadamente espetada, umas luvas de pele fina, António olhava-a como se olha
um mágico tirando mundos da cartola, e o leque?... tirou a carteira do dinheiro
e das fotografias, o coração, esvaziou-a, colocou-a sobre a cama, rasga ali,
rasga aqui, bolinha, papelinho e mais papelinho, saco plástico…
Agarrou a boca da mala, espreitou lá para
dentro como quem espreita um precipício profundo e escuro, virou-a, abanou-a e
nada mais, estava limpa, esventrada, vazia, desinflada:
- António, perdi o leque!
- Eu sei.
Mariana sentiu-se também melhor, despejada,
mais leve e tranquila.
- Anda para a cama, anda.
Mariana soltou o cabelo, despiu o roupão,
puxou um pouco a camisa de dormir para poder dobrar os joelhos, beijou o marido
e meteu-se na cama, sobre ele. O coração da mala caiu para o chão, aberta no
retrato dos netos, e ai ficou até que amanheceu.
(...)
in a Mulher do Sargento Espanhol
(em breve nas livrarias)
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