Para todos os amigos/as, leitores e leitoras
o primeiro capítulo da
Mulher do Sargento Espanhol,
para todos vós.
Em breve, muito em breve,
o livro estará nas bancas.
Esperemos que seja do vosso agrado.
Um abraço e
BOAS FESTAS.
1. A Mota de António Fagundes Fonseca
António Carlos Fagundes Fonseca tinha uma oficina de bicicletas numa
aldeia com mil e duzentos habitantes. Mudava correntes, afinava travões e
remendava câmaras de ar, e às vezes o ar faltava-lhe no passar dos dias iguais
entre encher pneus e limpar raios.
Na cidade estava a mota.
Tinha-a visto no feriado do 1º de Dezembro em que saíra, aproveitando o
descanso da oficina fechada, para visitar a prima Rita Fonseca da Silva que
tinha sido internada no hospital regional, com um fartão de azeitonas pisadas,
compradas na feira de Borba, que comera numa só refeição.
A hora da visita, das quinze às
dezasseis, dera-lhe tempo suficiente para meter o nariz e o olho no que a
cidade grande, borbulhenta de diferença, tinha para mostrar.
E mostrou.
Na montra, entre capacetes integrais e por integrar, estava ela, farol
polido, motor prateado, assentos de napa negra e sonhos de viagem, caminhos sem limite.
Um só dono, vende-se, bom preço, foi o que o prendeu definitivamente ao
sonho que o levou a tomar a decisão.
Vou comprá-la.
Exatamente oito semanas depois, após dias sobre dias de remendos sobre
remendos, de afinação sobre afinação e de uma bicicleta com rodinhas, nova,
para a neta do farmacêutico e uma de cesta atrás para o filho do Zé da Costa,
que casou com a Irene do café depois de meses de sofrimento com a barriga
inchada, que a mãe, a Josefa, julgava serem gases, prontamente desmentidos pelo
médico Pereira, que acertou tanto no diagnóstico como no sexo do bébé.
Uma menina.
Fabricada detrás do coreto da banda, num dos bailes de verão em que o
Trio Odemira cantava e tocava no palco de madeira emprestado pelo Presidente da
Junta da Freguesia vizinha, cujas festas eram só em setembro.
Colocou-lhe as notas uma a uma nas mãos, contando em voz alta e passando
o dedo pela língua, evitando as colagens. Mil e duzentos escudos, um por cada
habitante da aldeia, mais sessenta e quatro do capacete e já agora, porque não,
mais cinquenta e oito pelas luvas e um casacão de couro com fecho e uma caveira
estampada nas costas.
Na Previdente S.A., onde tinha o seguro das ferramentas e do lixo da
oficina, não fosse o diabo tecê-las, pagou por seis meses adiantado o seguro
obrigatório contra terceiros.
Agora sim, primeira, segunda, terceira... a estrada era sua, o vento na
sua cara e a aldeia esperando que chegasse.
A não ser na oficina, sentado ou com o joelho no chão, nunca mais
ninguém o viu sem ser em cima da mota, embora, verdade seja dita, todos
passaram a vê-lo a diário, para baixo e para cima, e também porque o seu espaço
crescera, de aldeia em aldeia, de segunda a domingo.
Mariana Esteves, era a filha mais velha do Esteves da Taberna, onde se
batiam as pedras do dominó com força na mesa e se escrevia a lápis os pontos do
rebenta, que originava o pagamento de mais uma rodada de imperiais.
A taberna ficava na margem direita da estrada que ligava as duas
principais cidades do distrito e atravessava como um rio de alcatrão a aldeia,
em frente ao Café Costa, a quem o Costa, após a morte do sogro, mudou o nome e
transformou também em restaurante, na outra margem.
De um lado, o café estava preparado para os forasteiros, que paravam e
seguiam, do outro, a taberna era para os da terra, que paravam e ficavam
sempre.
Ao contrário do Café Costa, de pintura nova e cara lavada, desde que
morrera o marido da Josefa e o genro assumira o mando, a tasca do Esteves
estava exatamente igual ao tempo do avô de Mariana.
Salitre na parede, balcão de pedra mármore, rádio de caixa de madeira
com a águia de barro do Benfica em cima, e até a gaiola do canário era a mesma
e o amarelo das penas do pássaro também, substituído por outro de belo canto
quando a velhice deixava o anterior esticado, entre os bebedouros e por baixo
do poleiro, deixando-se de ouvir cantar.
A taberna do Esteves tinha um quintal atrás onde estava a retrete e por
cima, um primeiro andar onde vivia a Glorieta Malpica com as três filhas. Dois
quartos, uma sala, cozinha e uma janela, onde Mariana Esteves olhava a estrada
numa cadeira de palhinha que tinha ao lado as lãs e as agulhas.
Nenhuma das três filhas do Esteves e da Glorieta se parecia com os pais,
e ainda bem. Glorieta engordava no primeiro andar há mais de quarenta anos e há
muito que deixara de fazer as omeletas de espargos, as tortilhas de batata e os
tortulhos, com molho ou com ovos, os peixinhos da horta, a dobrada com feijão,
rissóis, croquetes e empadas, que antigamente trazia para baixo para petisco
dos clientes. Levava o tempo sentada numa cadeira de balouço reforçada com
almofadas soltas, que a custo, ajeitava às costas e à cabeça. Pensava muito no
primo Júlio, que um dia, num sorteio das festas da Senhora da Penha, teve a
imensa ventura de ganhar o prémio principal. Uma vitela oferecida pelo lavrador
Papafina de Jesus, dono do montado e empregador de meia aldeia a prazos, conforme
as culturas do ano. O primo Júlio, feliz com a sua sorte levou a vitelinha para
casa ao colo e depois de comprar na farmácia umas luvas de borracha,
cortou-lhes um dos dedos que atarraxou numa garrafa vazia de anis escarchado,
que enchia de leite em pó e metia na boca da bezerra.
Foi rápido assim passar do leite à farinha Falcão, fabricada em Ponte de
Sôr e comprada em sacos de vinte e cinco quilos, no armazém do Procópio, que
vendia também o granulado dos coelhos, o farelo das galinhas e na altura das matanças,
exercia de magarefe.
Quando a porta do armazém estava fechada, o Procópio pendurava num prego
o letreiro que lhe escrevera a pedido, o professor primário Fernando Mata e que
dizia, FUI CAPAR, pois o magarefe era
também capador, levando depois os troféus à taberna do Esteves, onde eram
fatiados e metidos em vinha d’ alhos para em quarenta e oito horas mudarem o
nome de testículos para túberos, uma especialidade do Esteves.
Quando o primo Júlio tinha já gasto sete sacas de farinha, achou por bem
trazer a vaca para o quintal, mas era tarde, e teve que chamar o Matias
Pedreiro, e ordenar o escavacar da porta para o bicho poder sair. Era por isso
que Glorieta Malpica Esteves, dia sim, dia não, se lembrava do primo e olhava a
porta da sala, adivinhando o dia em que não poderia mais sonhar com a rua, a
não ser que tivesse que chamar o Matias e a picareta. Já a irmã Rosa, que Deus
tem, quando se finou, teve que ser baixa da sua casa, com cordas atadas a um
lençol de flanela, pela varanda.
As mulheres da sua família sofriam do mal da angústia, que as fazia a
pouco e pouco limitar os movimentos e terminar, como ela agora, sentada todo o
dia, esperando que lhe levassem a comida à boca e o pior, a obrigar a filha a
meter-lhe a arrastadeira fria, de metal, debaixo do corpo, e despejá-la depois
na retrete do quintal.
A arrastadeira tinha sido roubada pela prima Julieta, quando esteve de
acompanhante do pai no hospital distrital, antes que este fugisse daí para a
aldeia dizendo que estar tanto tempo deitado não era para um homem como ele,
ainda por cima deitado sem companhia.
A arrastadeira tinha já sido rodada várias vezes pelos membros
familiares necessitados, como as Sagradas Famílias de casa em casa, estando
agora ao serviço de Glorieta Malpica Esteves.
As filhas, Mariana e as irmãs, eram bonitas e por enquanto tão
desengonçadas como cobiçadas, mais parecidas à tia Rita Gil que contrariada
pelo pai em amores desejados, fugira com o namorado, hoje marido, a salto para
terras de França, onde se dizia que tinham nascido o amor e as oportunidades,
com trovadores nas cortes que reinventaram a poesia destroçando muitos
casamentos impostos pelas famílias nobres.
A tia Rita Gil, vinha todos os
anos no verão com o marido e os filhos, fumava Porto, e durante o mês de
agosto, havia uma mulher que fumava na aldeia.
Foi num desses verões em que Rita Gil estava sentada na esplanada do
Café Costa, cheio de folgazões de fora, que Mariana se deu conta, depois dum
berro do pai do fundo das escadas - é p’ra hoje? - que estava a desperdiçar a
sua vida.
Travessa de batatas com carne na mão desceu as escadas, e o Esteves, sem
um agradecimento ou um sorriso, tirou-lha e meteu-a sobre o balcão.
- Para cima. Vamos. Isto não é lugar para mulheres!
Subiu as escadas, olhou a mãe
Glorieta atafulhada nas almofadas, e da janela, olhou a tia, perna cruzada e
sorriso na boca.
As irmãs mais novas andavam na rua. A ela lhe cabia em sorte, de
primeira a nascer, substituir a mãe.
Naquele olhar comparador entre a cadeira de balouço da mãe e as suas pernas
elefantadas e a mesa da tia, com as suas pernas torneadas e sem meias de vidro,
sentiu perfeitamente que preferia a esplanada.
Estrada abaixo, estrada acima, António Fagundes Fonseca cavalgava a
mota, sem o casaco da caveira, que o calor apertava, sem capacete que o fazia
suar empapando-lhe os cabelos fortes, e apenas com a camisola interior branca
de alças, de onde um tufo de pêlos negros atracavam a medalhinha da Virgem das
Dores e a cruz do Senhor Jesus da Piedade, que usava sempre preso ao fio de
ouro que colocara no pescoço há muitos anos e nunca mais tirara, fosse inverno
ou verão. Na mão esquerda o relógio de pulso que o pai lhe dera e sobrevivera,
quando fez a quarta classe e se despediu para sempre da escola. Na direita, uma
pulseira grossa de prata, com uma placa grande que dizia de um lado António
Carlos e do outro, em números romanos, MCMLVII. Não os sabia ler. A numeração
já a trazia quando a comprou em segunda mão e apenas mandou raspar a parte
visível onde escreveu o seu nome, na ourivesaria do Cabecinha, a quem nunca
tinha comprado nada embora vendesse tudo o que tinha. Mas de todos os adornos
que usava como amuletos, o que mais sentia como proteção era o alfinete de
dama, com muitas medalhinhas de prata, que usava na camisola interior no lado
esquerdo, o lado do coração. Metera-lho a avó ainda criança, a mesma que nas
noites das doenças infantis, da papeira às bexigas, que as teve todas, lhe
metia nas costas papas de linhaça e ventosas como braços de polvo quente e lhe
fazia cruzes no peito com azeite morno enquanto recitava ladainhas que já a sua
avó lhe ensinara.
António Fagundes Fonseca olhava sempre a janela por cima da porta da
taberna do Esteves.
Mariana passou a estar sempre visível por detrás da vidraça, pois
conhecia o ronronar da mota muito mais agora que António a tinha afinado e
posto a rodar em escape livre, depois de ter olhado ao mesmo tempo a cadeira de
balouço da mãe e a esplanada, onde a tia Rita Gil estava sentada com um maço de
Porto sobre a mesa.
Desde que tomara a decisão, passou a estar sempre por detrás dos vidros
logo que ouvia o motor e atraindo, com arte sedutora de flor estática, foi
conseguindo que António Fagundes Fonseca fosse cada vez mais reduzindo o
circuito, até praticamente o ter encostado às boxes, que tinha definido entre o
Café do Costa e a taberna do Esteves.
Parava no Costa, perna sobre a napa do assento e o Zé Ventoinha,
empregado do Café, levava-lhe a Cuca espumosa que bebia ali, boca no copo, olho
na janela, enquanto os rapazes mais novos o rodeavam vendo a mota, tocando-lhe
e fazendo-lhe perguntas sobre velocidades e cilindradas.
Passar do Café Costa ao outro lado da estrada foi rápido e António
Fagundes Fonseca, à falta do Ventoinha que lhe levava as cervejas, passou a
contar com a simpatia do Esteves, largos momentos, cada vez maiores em que conversavam a sério ou com risos, às vezes
gargalhadas à porta da taberna onde colocava um banco de quatro patas e buraco
no meio para meter o dedo, e alimentava a conversação com Fagundes Fonseca que
não necessitava de banquinho de quatro patas e buraco no meio para levantar com
o dedo, pois tinha a mota como assento, perna esquerda esticada no chão e a
outra em descanso cobrindo-a e registando a possessão.
Passara assim Mariana a olhar para baixo, vendo-o de cima. Os tufos de
pêlo que lhe rebentavam a camisola interior branca de alças, e aquele alçar de
perna cobrindo os cinquenta centímetros cúbicos, dava-lhe calor, só arrefecendo
com o respeito dos santinhos do fio de ouro de António Carlos, assim passou a
chamar-lhe para si mesma, e as medalhinhas do alfinete de dama no lugar do
coração.
Os olhos dele levantavam-lhe a cabeça de centauro motorizado e
atravessavam a janela cravando-se nos dela.
Não estranhou assim, que o pai, no final do verão lhe dissesse que
António Carlos Fagundes Fonseca lhe pedira autorização para passar a falar com
a filha.
Encolheu os ombros, escondendo o interesse e foi assim que a janela
passou a estar aberta pelas noites, ela com o corpo no peitoril deixando cair
sorrisos, ele sentado e fumando, deixando quando partia, mota acelerada ao
máximo em baile nupcial, o chão repleto de beatas, que o Esteves varria pelas
manhãs sem um protesto.
Afinal, gostava do namorado da filha, e desejava que se arrumassem de
vez. Trabalhador como era, seria mais um par de braços para ajudar na taberna.
Enganava-se redondamente o Esteves, porque Mariana queria o motorista e
a mota não para ficar, mas para partir.
Oito meses depois, a tia Rita Gil e o marido estavam designados como
padrinhos e revolteavam com Mariana os Preciados em Badajoz para comprar o
vestido, os sapatos, o ramo e as ligas, que com sorte, no dia da boda seriam
cortadas em tirinhas, sorteadas pelos convidados, o que sempre daria, pelo
menos, para amortizar os sapatos.
Foi marcado o casamento para setembro.
Mariana sempre pensou em casar na Capela da Senhora da Penha em
Portalegre, coisas de criança, com aquelas centenas de degraus de pedra, serra
acima, entrando na capela revestida de azulejos, todos diferentes uns dos
outros, naquele azul e branco típico da azulejaria portuguesa, mas dois
problemas tornaram-no difícil, incompatível mesmo, com a Glorieta que saíria de
casa numa cadeira de rodas emprestada pela Santa Casa da Misericórdia, mas não
preparada para enfrentar os duzentos e pico degraus da capela e por outro lado,
há muito tempo que aí se não celebrava nenhum casamento, devido à quantidade de
viúvas que o povo atribuía a uma qualquer má sorte, não da Virgem mas da
própria capela. A última viúva foi a Amália, que poucos meses depois de aí ter
casado viu o marido morrer estupidamente com os dedos enfiados num casquilho de
lâmpada do teto. Já antes a Balbina enviuvou quando o marido que usava um
berbequim para furar a parede do quarto do filhote que dormia no barrigão da
mulher, enganchou a broca no fio de ouro do pescoço fazendo-a girar na garganta
em borbotões de sangue que o berbequim, por preguiça, estava no automático e
com o martelar unido ao girar, que a parede era de pedra, como de pedra ficou a
Balbina, viúva e com um rapagão na barriga para ser criado pelos avós. Isto
diziam...
- Porra, nem penses!
Reagiu o Fagundes Fonseca, sentado na sua mota, onde as proximidades da
boda tinham já trazido autorização para que Mariana baixasse da janela à porta.
Agora, para além dos olhares, passaram também a intimidar com as mãos, até que
a mota partia acelerada deixando para trás a porta que se fechava depois das
beatas serem apanhadas do chão pela Mariana, que passou a substituir o pai
nesse serviço.
- Casamos aqui que também há igreja!
Foi assim que, no Domingo
combinado, a aldeia encheu de flores o altar.
Rosa Benitez, casada com o
Espanhol, tocava o órgão todos os domingos acompanhando o coro e naquele
dia tinha como missão pisar as teclas até sair a marcha nupcial, que tocaria na
entrada da noiva no templo, competindo com os sinos que tocariam também nessa
hora, com os vinte escudos dados ao sacristão para puxar a corda.
Rosa, tinha ganho aquela paixão da música com o pai, cego, a quem ouvia
desde muito pequena o som do acordeão, e a quem o marido tinha dado o desgosto
de a emprenhar, ao ponto de não ter querido levar a filha pelo braço até ao
altar.
Benitez, o Espanhol como era
conhecido, era um especialista em despir sobreiros, agasalhados de cortiça
farta de nove em nove anos ou não fosse Portugal o maior produtor nesse tempo.
Ele era um espanhol que sempre falou um castelhano cerrado, nascido em La Nava
de Santiago, na Extremadura, com xis, no outro lado do Guadiana. Tinha ido à
aldeia, catorze anos atrás, não para emprenhar a Rosa sem a despir, mas para
despir os sobreiros do Papafina de Jesus, o tal que dava trabalho a prazo a
muitas bocas com fome.
Aos calores da Rosa, nem os santinhos impunham respeito, pelo que
naquele dia, o Espanhol encostou o
machado da cortiça e a Rosa à parede interior do palheiro do irmão do cego,
onde dormia, por favor, junto das alfaias agrícolas. Só lhe levantou as saias
uma vez, aquela, e Rosa permitiu que lhe baixasse os calores entre a novidade,
o prazer e o medo. Uma só vez que lhes uniu o destino para sempre. Casaram em
Portugal, Rosa de branco como as outras, apenas um ramo de jarros substituíam o
ramo de flor de laranjeira, e apenas a falta do braço do pai naquele dia, ao
contrário do seu braço que lhe era emprestado a diário para que ele se movesse
tanto dentro como fora de casa, lhe tinha escurecido um pouco a felicidade. Mas
se casaram em Portugal não foi por acaso, porque escuro, escuro mesmo, teria
sido se tivessem casado em Espanha, onde as noivas que o faziam com vida dentro
eram consideradas em pecado, ao ponto de apenas serem autorizadas as
cerimónias, entrando de noite nas igrejas e vestidas de negro. As fotografias
daqueles fatos de noiva pretos permaneciam escondidas pela vergonha que
representavam e só hoje, cinquenta anos depois, são mostradas de forma normal a
filhos e netos.
– Casarmos em Espanha, nunca - disse-lhe Benítez - enquanto houver
tantos padres sentenciando ao céu ou ao inferno. Não quero que te sentenciem a
ti. Não quero que te envergonhem. Casarás de branco. Casaremos aqui.
Benítez passara a gostar de Rosa muito para além das suas carnes e
rubores. Pena, que passasse tanto tempo fora, estando onde havia trabalho.
Agora por exemplo, com a aldeia em festa pelo casamento de Mariana, não
estava. Andava pela Roca de la Sierra, entre Badajoz e Cáceres, fazendo carvão.
O tempo livre ocupava-o entre a choça redonda com telhado de vime onde dormia,
junto dos fornos, e a taberna de Santiago Vadillo Carrasco, onde adormecia as
saudades de Rosa com vinho rosado.
Quando o trabalho acabasse, regressaria ao que era e já sentia como a
sua casa e o seu lugar, a oitenta e dois quilómetros, sempre de bicicleta, que
António Carlos Fagundes Fonseca, lubrificaria na sua oficina até que outro
trabalho lhe saísse de novo, perto ou longe.
Com Rosa tocando a marcha, o sacristão puxando a corda e António Carlos
Fagundes Fonseca de pé, no altar junto ao padre, dentro do seu fato cinzento
com riscas brancas e flor creme na lapela, Mariana entrou na igreja pelo braço
do Esteves. Ao ver o noivo ao fundo, o homem para toda a sua vida, cavaleiro e
príncipe, que a arrancara de casa, Mariana pensou ser mais baixo do que
aparentava. Sempre em cima da mota, só agora lhe tirava as medidas e
descontando o estrado, onde se encontrava com o padre, fazia contas, cujo
produto lhe dava que era mais baixo do que ela, pelo menos vinte centímetros.
Mas que importava se fora a ele que escolhera para o resto da sua vida? E
continuava a andar pelo braço do pai,
debaixo do ruído do sino e do desafinar do órgão da Rosa, até ao altar.
António Carlos via-a aproximar-se e apenas jurava a si próprio que nada
beberia naquele dia, desejando e quase lhe parecendo ser mentira que nessa
noite a tivesse na sua cama, sua a cama e sua ela, para lhe fazer tudo quanto a
sua cabeça tinha imaginado nos últimos meses.
Mariana, aceitas como esposo António... e tu António aceitas por
esposa...sim, sim...na saúde e na doença até que a morte nos separe...sim,
sim...para sempre...se há alguém que...silêncio, não havia ninguém......para
sempre, na saúde, na doença, para sempre, para sempre, até que a morte nos
separe...sim, sim...declara-vos marido e mulher.
Glorieta secava as lágrimas na cadeira de rodas, Esteves imaginava a
segunda-feira, a filha a cozinhar, o genro com ele no balcão, a tia Rita Gil
sorrindo, imaginando já o melhor que eles desconheciam, a Rosa recordando o seu
já passado dia de branco, lindo, com Benítez que não estava, Júlio o primo da
vitela, eterno solteirão, julgando que tal nunca seria possível com ele,
Papafina de Jesus pensando no belo presente que iria oferecer aos noivos, o
sacristão novamente puxando a corda do sino e até o Ventoinha, apenas sentia
faltar-lhe uma namorada para um dia poder casar-se assim, tal como lhe faltara
sempre pai e mãe, o que o transformava num membro mais dos órfãos que se
fizeram a si mesmos.
António Carlos Fagundes Fonseca beijou finalmente a noiva, ambos
fecharam os olhos.
Ela, sentindo o pecado de estar dentro da igreja, lábios colados
imaginando como dentro de poucas horas o seu nariz, a língua e mesmo os dentes
poderiam misturar-se naquele tufo de pêlos negros, seus agora, competindo com o
Cristo da Piedade e a medalhinha da Senhora das Dores, vermelha, corada, de
imaginar tudo isso dentro da igreja.
António Carlos Fagundes Fonseca, sentindo um aperto das calças abaixo do
cinto, apenas pensava como resistir a não beber nada, nada mesmo, que lhe
pudesse diminuir o desejo e a força que sentia enquanto a beijava e apertava
pela primeira vez.
Despertaram com as palmas, muitas, que os convidados ruidosamente faziam
ecoar, na altura do teto da igreja.
Cá fora, as crianças e a vizinhança preparavam o arroz, símbolo da
fertilidade, para atirarem aos noivos na saída, desconhecendo que ambos não
necessitariam de arroz nessa noite que se adivinhava e que ambos sabiam ir
existir.
Já pelo braço do marido, começaram a andar pela coxia central até à
porta da rua e foi então que Mariana se sentiu balouçar da esquerda para a
direita e da direita para a esquerda a cada passo que dava com o seu António
Carlos.
- Magoaste-te? Que tens na perna? Estás coxo.
O marido acenava aos convidados, feliz como o mais feliz dos mortais,
com vinte centímetros a menos da mulherona que tinha jurado no altar ser sua
para toda a vida.
- Que tens António? Porque coxeias? Caíste da mota? Que tens na perna?
- andava braço no dele passos
bamboleantes de lado a lado - Estás coxo?
Foi então que António Carlos Fagundes Fonseca, sem deixar de saudar os
presentes, braço no ar e sorriso de felicidade na boca, nos olhos, fazendo
mesmo peito de peru vaidoso, pequenino e subido junto da mulher de carnes vivas
que começaria a desfrutar nessa mesma noite, e até sempre, auto estima elevada
ao quadrado, com o setenta vezes sete retratado pela Bíblia na paciência do
perdão, lhe contestou:
- Não estou, sou. A perna direita tem menos doze centímetros que a
esquerda. Já nasci assim.
Mariana, enquanto sorria aos convidados, ainda se atreveu baixinho:
- Nunca me disseste - ao que o marido lhe respondeu, cara no seu lado
inverso, olhando e sorrindo para os convidados:
- Pensava que sabias, também... nunca me perguntaste!
Nunca mais falaram do tema, embora Mariana entendesse agora aquele
centauro motorizado por quem apostara.
Quarenta e dois anos depois, Mariana gostava de contar esta história aos
netos e enquanto os acariciava dizia-lhes sempre:
- Sem a mota do vosso avô, vocês não existiriam e a avó não era tão
feliz por vos ter aqui, ao meu lado, tão bonitos. Sois a minha alegria.
A mota de António Carlos Fagundes Fonseca continuava na garagem, hoje já
de coleção, com um plástico de pintura, desses muito grandes a protegê-la. Já
não era necessária, embora ele sentisse que por respeito, deveria conservá-la.
Em alturas difíceis, em que o dinheiro lhes fazia falta e alguém lhes
propunha a sua compra, olhavam um para o outro e num sorriso cúmplice, não eram
necessárias palavras para que dissessem um a outro num só olhar:
- Que se venda tudo, se necessário, mas a mota, nunca!
in A Mulher do Sargento Espanhol