(…)
A língua cinzenta e poeirenta enrola-se no “Subão” acima e
abaixo.
Nela misturam-se cores, ócio e trabalho.
“Biscotas” carregadas de tudo e de gente apertam-se, e passam
encolhidas nas curvas, centímetros às vezes, sobre falésias que dominam o mar.
Carlos Novais saltava no assento enquanto o motorista,
cigarro na mão do volante, repousava a outra que recebia o vento pendurada e
solta do braço, fora da janela.
Lá encima, no tejadilho, adolescentes, agarrados uns aos outros,
com patos, porcos, panelas, colchões e um frigorífico novo, cerram os olhos e
os dentes nos momentos de aperto, que da sua posição privilegiada, como vigias
nos mastros das caravelas, podem gritar por antecipação.
Dentro, a música muito alta, mascara o ritmo da viagem em
engano de festa e normalidade.
Um grande e invisível manto protetor, há quem o tenha por
divino, cobre os viajantes.
Passada a ponte de ferro, que salta a larga ribeira, pégada
de outras gentes que tocaram a ilha, a língua segue, agora com casinhas de
madeira, tectos de palmeira, crianças nuas em folia, mulheres labutando e homens
deitados, pais e irmãos de uma geração parada, porque o que resta da anterior,
corre já pelas veredas da localidade, sobre os anos o peso do pau, onde em cada
ponta, peixe, verduras ou frutas baloiçam esmolando centavos, e a posterior,
fardas multicolores, rapazes e raparigas na tradição do toque protector, dão as
mãos, dois a dois, duas a duas, às centenas, caminhando entre a casa e a escola
para o futuro que se lhes exige.
Segue a língua lambendo os arrozais, afastando cabras,
galinhas, agora sedenta de paragem como a dos búfalos estáticos que a olham,
interrompendo a festa da lama.
Vai até ao mar, que deixa de ser o companheiro presente,
sempre à esquerda, e aparece, na frente, enorme e manso, quadro vivo salpicado
de barcos finos, muitos, pescadores em equilíbrio, pequeninos, acompanhando o
traço amarelado, contorno da mancha creme que se vai alastrando no azul porque
choveu em Aileu, dizem, e a montanha deposita a sua dádiva pincelando a calmaria,
lentamente, muito lentamente.
Em breve, questão de uma, duas horas, o mar muda de cor, fica
opaco e o peixe sobe, precisa de luz, e os pescadores aguardam-no, precisam de
peixe.
O mar de Manatuto é um gigantesco camaleão.
Que se esqueçam os depressivos de o utilizar de cura, como no
Guincho.
Não há Boca do Inferno por estas bandas, a boca é tranquila,
de céu, e perante este enorme lago a que os locais chamam “tasi feto” (mar de
mulher), mais pela influência dos marinheiros portugueses que chamam ao mar
chão, mar de senhoras, do que ao carácter da mulher timorense agitado pela
força dos anos da resistência, os depressivos podem morrer da cura e ser
atirados para o suicídio pacífico, tal a calma sonolenta das águas que
conseguem adormecer a rotina.
É um mar que junta ao seu silêncio e quietude, a observação.
Tanto que viu durante séculos, ali, sempre ali, tentando até
avançar sobre a ilha, a razão dada para a colocação de pés de galo em cimento,
inestéticos, em tudo o que é margem.
Um muro à volta do mar.
O povo não sabe o porquê, apenas que os barcos deixaram de
poder dormir na areia negra da praia.
_ É para evitar ataque “lafaek” (crocodilo).
- Não! É para proteger tsunami!
_ Não! É para parar o mar que comeu terra desde o tempo dos
portugueses.
Povo heróico, de guerras de David e Golias, atraído pelo
gigantismo do inimigo, ora frente à Indonésia, ora exigindo o seu mar de Timor
frente à Austrália, ou contra o mar, pois então, esse mar que come Timor desde
o tempo dos portugueses que aliás, tiveram um, chamado Dinis, que temendo o
mesmo diminuir do território português, plantou pinheiros, nas areias, frente às
ondas.
E tentam barrá-lo, sustê-lo, pés de galo, centenas, num muro
gigante com quilómetros de extensão.
Este mar já viu tudo, o timorense também e se pacifico como o
mar, não quer esquecer.
Assim o provam as ruínas frente ao largo, queimadas, um
“POLISI” azul, ainda na parede já desbotado, mas indicando que não há muito
tempo esta paz que se respira, custou muito, como custa hoje recordar os que
não estão porque teimaram em ser um País.
Sempre gostou Carlos Novais de países originais para o seu
tempo, por isso, também começava a estar enfeitiçado (chamam feiticeira à ilha) por aquela terra, julgo
única no mundo, com governos de coligação entre Bispos e Che Guevaras que
faziam sentido.
Tudo isto lhe passava pela cabeça, salto atrás de salto,
ladeio atrás de ladeio.
Em breve estaria na escola e matutava no que já fizera nos
últimos anos.
Estava preocupado, pensando na teoria de Peter, em que os
homens vão sendo promovidos até atingirem a incompetência, onde param, parando
os sistemas.
Tinha vindo como professor do primeiro ciclo e sem mais,
começou a leccionar no segundo.
Pediam-lhe agora que desse uma disciplina de 7° ano, Educação
Cívica e Direitos Humanos.
Coragem a deste povo de ter metido assim, toma e já está,
esta disciplina nos currículos de Timor, mostrando que não teme a liberdade
frente ao futuro.
Há muito que defendia em Portugal, esta disciplina na escola
portuguesa e tinha feito um CESE (Curso de Estudos Superiores Especializados)
essa trampa de complementos de formação com que enganaram os professores do
primeiro ciclo, por forma a escancararem as portas das escolas primárias a
todos os formados de outras áreas em troca de poderem meter um Dr. nos livros
de cheques e nas publicações que recebem da Deco.
Vinte anos depois, Carlos Novais teve uma oportunidade de dar
oportunidade ao bolor desses três anos e aceitou.
Bateu com a moeda no vidro da janela da Biscota, o sol tinha
ido para outras paragens e a noite cobria já Manatuto.
Estava a crescer de dia para dia, ele e o Município.
Reparou com gosto que nestes dias, tinha aberto o
supermercado dos chineses, o restaurante tinha sido pintado, os pés de galo
avançavam margem fora e já iam a caminho da igreja.
Encontrou o segurança da escola nova, em construção há três
anos, mas com uma das partes já pintada de cor-de-rosa, a outra, andando.
- Então colega (amigo)? Quando temos escola nova?
- Quase professor, quase, já vai ter vidro na janela. Chegaram, tão aí, e também veio mais tinta para pintar.
A nova escola era esperada por todos, até lá, usavam umas
instalações emprestadas que com muita imaginação e trabalho, faziam realçar
cores e vida, bons sintomas de alegria.
Pneus pintados, materiais feitos artesanalmente, programas
desdobrados em invenções diárias que substituíssem os manuais escolares que existem
mas não chegaram e por isso se usavam os telemóveis, os computadores
particulares e cada professor dava o máximo de si próprio.
Carlos Novais, tinha comprado um projector e com ele
pensava nessa nova disciplina que iria começar a leccionar.
Comprara-o em Bali, atraiçoando a filha pequenina que queria
um computador no natal e viu passar a promessa para o aniversário.
Levantou-se às seis e meia como habitualmente, com o sol,
comprou o pão, fez café, "matou o bicho", só depois tomou banho e se vestiu.
A carrinha chegou às sete horas e trinta, cinzenta.
Se fosse ele a mandar, há muito que seriam vermelhas, verdes,
azuis, cinzento? Cor mais feia para quem inicia uma semana de trabalho que se
quer de festa, porque ensinar e aprender, se não for uma festa, é uma chatice.
Os primeiros noventa minutos, correram bem, os nomes, os
sonhos, aquelas coisas das apresentações.
Não eram meninos, eram rapazes e raparigas, confusos como
todos os adolescentes, descobrindo respostas para depois procurar caminhos.
Da janela da escola via-se o mar.
A pedra bateu na jante de carro suspensa (o sino) e saíram
para o recreio.
Carlos ficou sentado no gosto do silêncio.
Nada é gostoso durante muito tempo.
De repente, ouviu-se um estrondo rompendo a calma, a seguir,
mil ruídos de mil estilhaços e por fim, outra calmaria, mas de destroços.
Uma bola, como uma bala, tinha rompido a janela da sala e os
vidros estavam espalhados por tudo o que era sítio.
Carlos Novais saiu e fez a pergunta rotineira:
- Quem foi?
Obviamente que não tinha sido ninguém.
Lembrou-se da sua nova disciplina.
É o medo que impede muitas vezes o assumir das
responsabilidades.
_ Não importa, eu também parti muitos vidros a jogar à bola,
temos é que assumir as responsabilidades, parti, pronto, está partido, fui eu,
já está.
_ Um rapagão repetiu:
_Fui eu, já está.
Carlos Novais, preparou-se para o brilho.
_ Tu tinhas uma equipa, não jogavas sozinho, quem era a tua
equipa?
Nada, o rapaz estava isolado, nem acusava, nem ninguém vinha
em seu auxílio.
Carlos explicou o que era ser uma equipa, a necessidade uns
dos outros, a camaradagem, um daqueles discursos pedagógicos
que marcam ou tentam marcar.
- Não há nenhum problema, a não ser que temos que colocar
outro vidro e limpar isto. Julgo que se uma equipa é tudo o que vos expliquei,
será melhor assumirem a responsabilidade. Tiro os nomes, aponto a equipa, reponho
o vidro e cada um paga uns centavos, quantos mais, melhor, não vai este pobre
que se enganou na baliza, pagar o vidro sozinho e limpar a sala, além disso,
esta escola não é nossa, foi-nos emprestada.
Vendo que o terreno estava macio, os rapazes da equipa de
futebol, acusaram-se, deram os nomes e para surpresa de Carlos Novais, um
perguntou:
_ E os da outra equipa também podem entrar no pagamento?
_ Se querem podem, mais barato fica a cada um.
Todos os rapazes do sétimo ano se prontificaram a pagar o
vidro que o professor iria comprar.
Carlos Novais estava satisfeito e mais satisfeito ficou,
quando depois do almoço, os rapazes lhe trouxeram um vidro para a janela,
resolvendo eles mesmo o problema.
Rejubilou.
Fez-lhes um elogio sentido, o valor do espírito de grupo.
Registou nas suas memórias para contar aos seus netos.
A sua auto-estima profissional disparou, subiu aos céus, acima
das nuvens.
Ah grande Piaget das montanhas, Freinet do suco, Kohlberg de
Manatuto e arredores, inchado, como só poderiam inchar os perus com êxito antes
do natal.
Tudo terminou quando o segurança das obras da escola nova
apareceu:
_ Professor Carlos, os meninos desta escola, ao almoço,
roubaram um vidro e fugiram para aqui.
(…)
in O Que Foste Lá Fazer?
( em elaboração )