(...)
3. A Chegada
do Professor Primário
Chegou à aldeia com uma mala, em 1970. Pousou-a no chão do café da
Josefa quando ainda estavam vivos e faziam parte do pulso da aldeia, o marido
de um lado e o Esteves do outro da estrada. Nesse ano, era o Costa um rapaz que
caçava ninhos, a filha da Josefa ajudava no café quando saía da escola, a
Mariana nem sonhava vir a casar-se com o Fagundes Fonseca e a Glorieta ainda
fazia os petiscos da taberna.
Tal como o leite que começa a ferver, nada estava mudado, mas tudo
estava em mudança.
África continuava a ter províncias portuguesas. A guerra estava assumida
como quem tem que vestir um casaco quando faz frio. As previsões eram
meteorológicas, e as gentes, acostumadas aos enganos dos boletins da televisão,
sabiam que se dissessem que iria fazer sol, poderia chover, ou se dissessem que
as trovoadas ameaçariam, poderia sair um dia de céu azul e limpo. Pelo sim pelo
não, saía-se sempre com o guarda-chuva, pois os barcos iam e vinham e os homens
iam sem saber se voltavam.
O Eusébio aterrorizava o Sporting, mas não o suficiente para que o
Benfica não perdesse o campeonato nesse ano. Lembram-se do Dinis? Foi ele quem
marcou o golo que derrotou o Benfica. Ana Maria Lucas ganhou o concurso de
Misse Portugal, Joaquim Agostinho a Volta e tudo era mexido, e dado a dedo, a
quem via a RTP 1 com menos de 12 horas por dia de emissão e pela RTP 2 que não
chegava às 3 horas diárias, com a grande antena de ferro no início e a bandeira
mais hino no final.
Começava, no entanto a sentir-se a fervura, pois a licença de isqueiro
acabou em maio, Simone de Oliveira apesar de insultada, continuava a cantar “a
desfolhada”, fazendo filhos por gosto na exaltação do vermelho milho rei, e
Salazar, depois de dois dias no Mosteiro dos Jerónimos em câmara-ardente,
partiu para Santa Comba Dão em retiro perpétuo, depois de grande passeio numa
carrinha, dessas dos hippies, Volkswagen, cortada a partir da cabina para a
urna ser visível e despedir-se do país em caixa aberta.
A mala do viajante chegado ao café da Josefa tinha os cantos cobertos
com metal, cantoneiras que reforçavam a proteção do cartão. Era castanha
escura, e os dois fechos dourados com buraquinho para a chave fazia adivinhar o
grande diário que em si mesma continha.
Colocou o chapéu de feltro no balcão como quem coloca uma pedra de damas
em tabuleiro de mármore. Agarrado por cima, com cuidado e precisão. O homem
procurava uma pensão. Depressa correu pela aldeia que o novo professor tinha
chegado.
Fernando António Figueiredo Mata, seu nome completo, Fernando Mata, o
que utilizava, só Fernando para amigos íntimos e família, e o Batalha, como era
conhecido na tropa, não por ter participado em alguma de referência, mas porque
tinha nascido no local, perto de Leiria, onde D. João I mandou construir o
Mosteiro que embora tenha o nome de Santa Maria da Vitória é conhecido apenas
por Mosteiro da Batalha, esse sim em homenagem à sessão de pancadaria entre
Portugal e Castela e que como um foguete de lágrimas deixou pinceladas de cor
nas lendas de um povo que queria ser país: a Padeira de Aljubarrota, a Ala dos
Namorados, a grande ideia da colocação das tropas em quadrado, com os
cavalinhos espetados nas lanças das valas e a castelhanada, com as pesadas e
lustrosas armaduras, no chão, sem se levantarem do peso e com as gargantas, os
sovacos e as partes baixas ao alcance das lendárias espadas Alfagemanas de
Santarém, e por aí fora, porque país sem história é apenas povo, e esse é
sempre anónimo, herói sem nome, acabando sempre num só símbolo de soldado
desconhecido, em campa rasa.
A gaiatagem depressa se dedicou a espiar o novo professor que dentro de
dias iria partilhar o mesmo espaço na escola, mais os rapazes do que as
raparigas, pois as meninas eram todas alunas da Dona Antónia Tavares, que fazia
já parte da aldeia como o coreto, o mesmo que seria responsável, anos mais
tarde, pelos falsos gases da filha da Josefa.
Da primeira à quarta classe. Duas salas. Rapazes e raparigas, um
professor a quem chamavam Senhor Professor e uma professora a quem chamavam
Minha Senhora.
-Já avisámos a Alzira, Senhor Professor, o melhor quarto da Pensão Luz
está a ser preparado para si.
Fernando Mata sorveu o café.
- A escola não tem casa?
- Ter tem Senhor Professor, a Dona Antónia ainda aí morou, mas já lá vão
muitos anos, está a ver, o filho mais velho dela está agora na tropa e era
pequenino quando vieram para a aldeia...
Novo sorvo.
- Está suja?
- Suja? A cair de podre Senhor Professor e cheia de pombos, autorizados
pela Junta à Sociedade Columbófila da terra.
Último sorvo. Chávena solta no pires, chapéu na cabeça e mala na mão.
- Bem, vamos lá então conhecer a Alzira, casa de pombos, casa de tombos
– e riu-se, pelo que todos se sentiram na obrigação de rir também.
Uma lambreta cinzenta parou na rua. Duas referências brancas, os dentes
e o colarinho, estenderam a mão num cumprimento de cumplicidade. A igreja e a
escola encontraram-se na rua principal.
-Sou o padre Cabral, dou-lhe as boas-vindas.
O professor tirou o chapéu e soltou o nome Fernando. Trazia o convite
para o chá em casa da Dona Antónia, às dezassete horas, estaria também o
farmacêutico. Chá ou vinho enrolou com palmadinha nas costas o padre Cabral.
A Pensão Luz era uma casa de família, com quintal e cão na frente. Uma
escada com grade de ferro pintada de branco levava à porta principal. Duas
laranjeiras de laranjas no Natal e um limoeiro de limões todo o ano eram vistas
de cima na porta de casa. Alzira alugava quartos, e tinha hóspedes certos como
o Chefe dos Correios, o Gerente do Banco Nacional Ultramarino e agora o
professor. O quarto era limpo, sem luxos, pequena mesa com candeeiro de bicha
metalizado e com uma janela como um olho gigante sobre a planície.
Alzira era filha de Dona Francisca, a fundadora da pensão, e de Luís
Pinheiro, hoje já na casa dos que Deus tem. Foram os pais que depois de anos
emigrados em França, trouxeram as poupanças e construíram a casa. Deixaram de
fazer camas lá, para as fazerem cá, de jardinarem lá, para jardinarem cá, de
cozinharem lá, para cozinharem cá, no que era deles. Os sacrifícios que
passaram muitas vezes com as estrelas a servirem-lhes de teto, levaram-nos a
chamar Luz à pensão.
A sua estrela arrancada aos céus franceses, a sua luz colocada na sua
aldeia.
Hoje era Alzira que fazia as camas, lavava as toalhas, fazia as comidas
e regava o jardim, onde duas santinhas de pedra estavam colocadas lado a lado,
a Virgem de Lourdes e a Virgem de Fátima. Quando o pai era vivo, chegaram a ter
sempre duas bandeiras desfraldando com o vento ou adormecendo-se nele, a
tricolor francesa e a bicolor portuguesa com a sua esfera armilar, cujos
caminhos também tinham ensaiado. Alzira tinha um irmão, mas esse, como todos os
irmãos da mesma idade, estava para África, forçando a que a bandeira das quinas
se mantivesse noutro mar, mesmo com mortes no capim.
Pelas dezassete horas, o professor Fernando Mata, estava a ser recebido
em casa da colega Antónia, onde já estava o padre Cabral e o farmacêutico Luís
de Sousa. Uma serviçal com avental branco trazia a bandeja de prata com o bule
a fumegar. Falou-se do tempo no início e em política no final, sem discussões,
todos os presentes eram defensores do hino, da bandeira e do patriotismo. Como
veio para professor? Por vocação. E você Padre? Por vocação. E você Doutor? O
farmacêutico sem mexer um músculo, mas também sem modificar uma letra ou
entoação, disse também, por vocação.
Mentiam todos.
A única acariciada pela vocação era a Dona Antónia, que desde pequena,
brincava às escolas e aos puxões de orelhas.
O Padre Cabral, nascera em Alcaria, uma aldeia da margem do Zêzere já
crescidinho pelos degelos da Serra da Estrela, mas onde a pobreza era escura
como a broa e onde o chão, rochoso, era inimigo da fartura. Na escola, o menino
Cabral filho do coveiro da aldeia era esperto para as letras e quando chegou a
altura de decidir sobre emigrar ou seminário, optou pelo seminário e acomodado
por lá ficou.
O farmacêutico, bem que gostaria mais de se ter dedicado às letras,
especialmente à poesia, mas a farmácia acompanhava a família desde os avós e
era um destino. Foi para Lisboa a mando do pai onde foi um aluno medíocre na
Faculdade de Farmácia e acabou o curso a pago de perus no Natal, borregos na
Páscoa e fruta fresca todo o ano, acompanhado de imensos pedidos e
recomendações de um primo da mãe que era ministro.
Fernando Mata acabou professor por amor. Com quinze anos, viveu o seu
primeiro romance de borboletas e água das pedras com a filha de um funcionário
público. Com dois anos de mãos dadas escondidos nos jardins públicos, ou
descendo e subindo as ruas lado a lado, confessaram um ao outro futuro eterno.
Quando a escola do Magistério Primário se estendeu da capital de província para
a capital do distrito, o sonho de ser professor mostrou-se fácil à carteira do
pai que assim pôde mandar estudar os filhos sem necessidade de deslocá-los.
Maria Catarina passou assim a usar bata branca e a juntar-se às cinquenta
meninas que iriam dois anos depois ser espalhadas pelas escolas públicas do
regime. Bastava-lhes naquele tempo ter um sentido rigoroso da moral, acreditar
na trilogia Deus, Pátria e Família, usar meias de vidro e saias dois dedos
abaixo dos joelhos. Calças nunca. O diretor tinha até o chefe dos contínuos
autorizado, a que ao subir as escadas que levavam às salas de aula, pudesse
beliscar as pernas das futuras senhoras professoras, com o objetivo de ver se
tinham ou não meias e de imediato, caso tocasse as pernas nuas e firmes,
comunicar à Direção, que neste caso era ele, o Diretor, nomeado por Diário do Governo em cargo perpétuo.
As meninas com namorado tinham-nos todos em fila, de casaco, gravata e
lenço no bolso, esperando a saída da escola a trezentos metros daí, numa linha
de meta imaginária, frente à tasca do Capote na rua que baixava para o Café
Alentejano, a sala de espera. As namoradas chegavam, e eles ali, sem dar um
passo, que encurtasse a distância fixada. Uma ou duas com mais idade, já com
casamento autorizado para os poucos meses que faltavam para a queima das fitas
e a missa da praxe, podiam ser levantadas na porta como encomendas desde que os
destinatários nunca entrassem no edifício, e sempre depois de uma autorização
escrita do pai da menina entregue ao diretor, em papel azul, de vinte e cinco
linhas, selado e começado sempre da mesma maneira: Eu… abaixo assinado – e
acabado também formatado, assinatura e data depois do: Pede deferimento.
Aqui começaram os problemas de Fernando Mata.
O governo de Salazar, pai exemplar, acima de cada pai, foi quem criou a
lei sobre as autorizações de casamento das senhoras professoras. Se lhes pagara
a formação, e lhe pagava um ordenado sentia-se na obrigação e o pior era que no
direito também, de protegê-las, como pastor de ovelhas com dono. Havia que
evitar a todo o custo a figura parasitária do marido da professora, que
corrompia a moral e sem trabalho vivia de um ordenado que não era seu. Então,
naquela ânsia de tudo ter bem atado, num novelo cuja ponta estava sempre nos
seus dedos, o governo da nação proibiu o casamento das senhoras professoras com
quem não tivesse um emprego digno, como, para eles, empregado de banco,
funcionário público ou empresário com provas dadas e salários superiores e onde
o casamento entre professores, senhor professor e minha senhora, era o mais
autorizado, como também o era o de minha senhora e funcionário das finanças.
Viu-se assim, Fernando Mata, por amor a Maria Catarina a apresentar-se
ao exame de admissão da Escola de Magistério, onde os homens tinham privilégios
especiais de entrada, vá-se lá saber porquê, pelo menos com professores não se
colocava a questão de autorizar casamentos.
O melhor tempo do seu amor com Maria Catarina foi o do seu primeiro ano
como aluno da escola, aluno único, com namoro autorizado com a menina da bata
branca que estava no segundo e quase a sair como professora, quase pronta para
escrever nessas almas infantis, como dizia Junqueiro, gravado no parque
infantil da Cidade, essas almas virginais onde tudo quanto nelas se grava não
se apaga mais, quase preparada para escrever e gravar, nessas almas brancas
como a neve, nessas pérolas de leite, o cunho como ferrete de um país cinzento
que usava as senhoras de bata branca, para unificar o pensamento eternamente.
Maria Catarina começou a sua carreira de professora primária na escola
de Monte Sete, uma herdade com um casarão com oitenta quartos vazios, lareiras
apagadas, biblioteca sem ser lida e cabeças de javalis e veados, dentes de
javalis, cornos de veado, javalis e veados e mais javalis e veados a forrarem
os corredores e os salões. Fechados todo o ano. A família proprietária vivia em
Lisboa e apenas abriam a casa uma ou duas vezes no outono onde faziam festas
após as caçarias com dezenas de carros de marca parados no pátio. A mulher do
pastor tinha a chave, a senhora Conceição, e abria as janelas uma vez por
semana para que a humidade não embolorasse a pele dos cadáveres e os tapetes de
Arraiolos. Dona Conceição tinha sete filhos e vivia com o marido numa choça de
pedra e telhado lusalite todo o ano. A bondade dos senhores era tanta, que
construíram uma escola, com mesas, cadeiras e quadro preto, onde o vento
entrava pelas frinchas e os pardais cagavam no chão. Sete alunos tinha a
escola. Os filhos do pastor e da senhora Conceição. Colaborava o Ministério com
a bondade desta ilustre família, motor de desenvolvimento, empregando logo nas
tarefas do campo os alunos a partir dos dez anos, mas ensinando o ofício,
tarefa dos pais, bem mais cedo. Dar de comer ao gado, ajudar no pastoreio,
ordenhar as ovelhas, alimentar as galinhas, cuidar dos cães, soltar as perdizes
e bater os javalis nos dias de caçaria. Por isso mesmo o Ministério de Educação
agradecia o esforço colocando anualmente um professor presente de outubro a julho,
todos os dias, desde que a ribeira não enchesse e impossibilitasse o acesso.
Quando as professoras eram insuficientes, colocavam o que designavam como
Regentes Escolares, que sabiam ler, escrever e contar, eram normalmente
solteironas e algumas vezes, antes ou depois, acabavam como amantes escondidas,
dos donos das herdades, não todas, obviamente, algumas havia que colocavam um
gosto nas tabuadas, nos mapas, nas réguas de medir e de esfolar, e beatas quase
todas, levantavam o dedo aos patrões e ameaçavam-nos com o Bispo.
Nesta escola começou Maria Catarina a trabalhar, alojada num quarto da
aldeia mais próxima, indo a casa nas sextas-feiras à tarde onde lavava as
roupas da cama e enchia as marmitas que levava com comida feita aos domingos,
para aquecer em banho-maria durante o resto da semana, enquanto falava de
barcos a quem nunca tinha visto o mar, de estações de caminhos-de-ferro a quem
nunca tinha visto um comboio, de aviões que sabiam ser pequeninos lá no ar,
viam-nos às vezes quando passavam nos dias sem nuvens, embora as abetardas
fossem muito maiores e nunca voassem isoladas, e de rios, grandes, dizia a
Senhora, e compridos, de norte a sul do mapa de Portugal, maiores, muito
maiores do que a ribeira da aldeia no inverno, embora fossem pequenas linhas
azuis que a Senhora dizia serem grandes e se a Senhora dizia era porque
sabia... e de um outro mapa com pretinhos nus que cantavam o hino nacional com
as bandeirinhas de Portugal nas mãos.
Foi difícil o primeiro ano de trabalho de Maria Catarina e o último de
Fernando Mateus na Escola de Magistério. Viam-se pouco. Ele, assediado por
quarenta e nove batas brancas, ela rejeitando os presentes que o filho do
patrão, o Senhorito, como lhe chamava a senhora Conceição, insistia em
trazer-lhe de Lisboa, nas visitas que aumentaram da sua parte à herdade nesse
ano.
Estiveram no verão, já professores os dois, com os pais dela, numa
residencial em Setúbal, na Avenida Luísa Tody. Da janela do quarto dele viam o
Sado e o movimento dos barcos de pesca fronteirando com Tróia. Aí passaram
horas com planos e beijos, pois à noite, Catarina voltava ao outro quarto onde
dormia com os pais, não fosse o diabo tecê-las, que nessa altura o biltre, ao
contrário dos dias de hoje, era adverso do prazer.
Foi a última vez que estiveram juntos.
Fernando Mateus recebeu a guia de marcha para se apresentar no Centro de
Recrutamento Militar de Leiria, daí para Santa Margarida e de Santa Margarida
para Santarém, último quartel antes de desembarcar em Moçambique.
- Tens que mudar de escola, Maria, não te quero aí sozinha.
Partiu como furriel e juras de se casar por procuração. Fotografia de um
e do outro, nos dois lados do mar, frente a frente, só um coração de cada lado,
ela com o pai como padrinho, ele com alguém de confiança que poderia vir a
conhecer e em último caso, um oficial do seu batalhão que convidaria se
necessário, com dois notários a perguntarem se sim, se para toda a vida.
Os aerogramas começaram a voar entre oceanos, primeiro muitos, depois
menos, até se estabilizarem num por mês, às vezes dois, até passarem a um de
dois em dois, o que significava por ano, seis para lá, seis para cá, se o tempo
se prolongasse para além da estação das chuvas e do regresso definitivo.
O furriel Batalha tinha para além de participar nas colunas mato dentro,
que ensinar a ler os companheiros, muitos, que o não sabiam fazer, pois
trocaram cedo o giz pela enxada, pelo cajado, e estes pelas G3 que os
acompanhavam a diário e com quem dormiam como esposas. Maria Catarina mudou
para nova escola, desta vez para o Gavião, onde conheceu a Alierta, uma
açoriana desinibida que a convenceu a concorrer para os Açores no ano seguinte.
E foi, TAP primeiro e SATA depois até às ilhas, onde se sentia útil cuidando
meninos ranhosos e com a cabeça compartindo os piolhos com o sonho, o sonho de
embarcar, acenando com lenço branco na proa de qualquer barco que os levasse
dali.
Enquanto o furriel Batalha pensava diariamente sobreviver, Maria
Catarina pensava em viver. Foi assim, que pisou os telhados do vulcão dos
Capelinhos, que se molhou nas águas quentes das praias de São Miguel, com os
pés enterrados na areia preta que fazia com que os corpos em calções parecessem
andar todos de peúgas, comeu o cozido à portuguesa feito nos buracos das furnas
com o calor da terra, comeu figos no Pico das figueiras rastejantes que
saltavam os muros, bebeu vinho de cheiro, comeu ananás e polvo cozido, cavacos
e lapas, fotografaram as lagoas, provou a aguardente amarela de São Jorge,
respirou as hortênsias que dividiam as propriedades nas Flores, assistiu à
captura solidária das últimas baleias, provou o gin tónico do Peter na Horta e
até um dia, no Cais, embarcou num navio de carga, o Ponta Delgada, e visitou o Corvo, onde o barco ficava fora por
falta de porto e os passageiros desembarcavam na praia a remos como no cinema.
Cem habitantes tinha a ilha e moravam na mesma rua em casas sem chaves nem
fechaduras e onde existia apenas um veículo motorizado, concretamente um trator
que puxava uma zorra e onde os aventureiros turistas pagavam trezentos escudos,
para de pé e agarrados uns aos outros, subirem até à cratera do vulcão.
O furriel Batalha, exatamente onze meses depois de ter sido engolido por
África e quando lhe faltavam sete para terminar a comissão de serviço, pediu ao
alferes Faial, com ordem de marcha para férias merecidas, que mandasse saudades
para a sua terra e deu-lhe a morada de Maria Catarina para que lhe entregasse
em mão uma carta, com fotografias suas barbudas e de camuflado, ora encostado a
um tanque, ora na asa de um avião parado com focinho de tigre pintado, ora com
um pretinho ao colo com a mãe ao lado, de boas carnes e mamas de fora, ora
afagando uma macaquinha com correia ao pescoço, que acabou por trazer do
Continente Africano e já na aldeia, anos mais tarde e já crescidita, foi levada
para a quinta do Papafina, onde muitas vezes os meninos da escola iam ver
África, o nome que tinha a macaca e que era conhecido por todos.
Tudo lhe foi devolvido quando o alferes Faial regressou dos Açores para
se incorporar à guerra.
- Temos que falar.
Sentaram-se debaixo de um embondeiro, duas grades vazias de cerveja, de
madeira húmida, como bancos, uma garrafa de VAT 69 a beber sem copo.
- Não a vi. Já lá não está. Não cheguei a dar-lhe nada. Toma.
Tirou o envelope dobrado do bolso chapado das calças.
- E não sabes nada?
- Sim pá, é melhor que bebas e esqueças - e estendeu a garrafa depois de
lhe limpar o gargalo.
Maria Catarina tinha partido para os Estados Unidos, grávida de três
meses, deixando os alunos sonhando com barcos, e acompanhada pelo açoriano que
conhecera na Horta e com quem combinou passar o resto da vida.
Fernando Mata nunca mais soube nada dela.
Começou a esquecê-la naquela primeira garrafa e apenas ficou com a
profissão, da qual passou a viver quando foi desmobilizado e que o levara até a
casa da Dona Antónia, para tomar chá com o farmacêutico e com o Padre Cabral.
In A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL
...em publicação...