XLI. Patry e
Bahamonde
A avioneta passou sobre El Pueblo.
As
mulheres e as crianças meteram-se em casa enquanto os velhos se encaixavam na
taberna.
A
Guarda Civil saiu para a praça.
Todos
olhavam o céu enquanto sobrevoava a aldeia, cada vez mais baixa procurando
nitidamente um sitio para aterrar.
Correram
os militares de tricórnio para a estrada poeirenta que ligava a aldeia ao
montado, “dehesa”, doada ao povo por uma herança de uma condessa sem
descendência, e que antes da guerra, era lugar de romaria, especialmente em
maio, dia quinze, quando todas as famílias aí se reuniam com música, cantares e
sol, num enorme festim, celebrando o padroeiro de El Pueblo, Santo Isidro,
patrono dos lavradores.
Quando
o pequeno avião aterrou, os guardas correram para ele, mãos sobre os olhos e
sobre a boca, vultos com espingarda no meio do pó. Cercaram a aeronave e
apontaram as armas enquanto a hélice ia morrendo com a nuvem amarelada de
partículas infinitas, que baixavam caindo lentamente, nos tricórnios e nas
baionetas levantadas.
Perfilaram-se,
direitíssimos, coronha na terra e saudação de continência, quando se levantou o
piloto, baixou para a asa e saltou para o chão, com a sua farda de graduado da
Força Aérea.
-
Onde está o oficial de mando?
-
Siga-me meu tenente.
O
piloto aviador seguiu o guarda civil, montou-se no jipe e ordenou:
-
Quero dois homens sempre ao pé do avião.
Não
corria perigo de atentado a avioneta, pois o único atentado de que foi vitima,
foi o da curiosidade de velhos, mulheres e crianças que meia hora mais tarde a
circundavam, nessa oportunidade única de verem aquele pássaro grande, ali, no
chão, inofensivo como uma varejeira em descanso.
Pediu
o tenente no posto, que fossem buscar Patry a casa.
E
foram.
Assustados,
os pais de Salustiano seguiram-nos de longe. Ascensión também. Apenas
descansaram quando as duas mulheres saltaram para os braços do tenente
Bahamonde.
-
Venho buscar-te Patry. Não posso levar-te a Portugal, não consegui autorização
de voo, mas deixo-te em Talavera la Real, na Escola de Reatores e daí, alguém
te levará à fronteira. Salustiano espera-te em Portugal. Tardará meia dúzia de
dias a chegar...
- E
vamos de avião?
-
Sim, de avião, é o mais seguro, depois tenho um amigo que te levará para
Portugal, confia em mim. É o máximo que posso fazer por vós.
Apresentou
as cortesias ao “alcalde” de El Pueblo, merendou com os pais de Salu, com Patry
e com a pequena Ascensíon, ternurenta, enrolada no seu braço.
Exatamente
às dezasseis horas e trinta e cinco minutos, a enorme hélice começou a girar
acompanhando um roncar enorme vindo das entranhas do aparelho. Bahamonde
gostava de aproveitar a luz do sol e sentia certo prazer por ser reconhecido
como herói. No fundo tinha razão para se sentir orgulhoso, tinha sido o
primeiro homem a fazer a travessia do Atlântico Sul, no seu, hoje no Museu
Militar, Plus Ultra, um hidroavião de passageiro único.
-
Que levo?
-
Nada, rigorosamente nada. Não temos tempo nem espaço.
O
avião começou a percorrer a pista, asa de um lado e do outro ganhando ponto de
equilíbrio, o focinho a tentar erguer-se em esforço, uma, duas, três vezes como
locomotora de todo o corpo que rodava a metros do chão, e mais metros, e uns
quantos mais, deixando atrás uma nuvem de poeira e a gritaria de cem meninos
descalços correndo com os braços abertos.
As
pontas do cachecol de Bahamonde, quase tocavam o rosto de Patry, sentada atrás,
e estranhamente, começou a perder o medo.
-
Gostas?
Gritou-lhe Bahamonde...
-
Estou beemmm...
No
lugar detrás, havia duplos instrumentos de voo:
-
Pega nos comandos e leva-o tu.
Patry
agarrou, puxou para si por instinto, o focinho empinou e nesta posição de
mando, virou um pouco à direita, depois à esquerda... Bahamonde levantou ambos
os braços:
-
Estás a voar Patry.
Como
o não sentira há muito tempo, um travo agudo de adrenalina, percorreu-lhe o
corpo. Adrenalina ou liberdade. Não sabia, porque as lágrimas lhe molharam a
parte interior dos grandes óculos de vidro encaixados em borracha negra. Apenas
sabia que naquele instante poderia desaparecer que não se importava, poderia
morrer porque nada lhe pesava e era, entre as nuvens e o pôr do sol que se
começava a ver, imensamente feliz.
Bahamonde,
apenas mantinha o rumo e só pegou nos comandos, quando começou a descer.
-
Onde estamos?
-
Vigo!
Saltaram
e espreguiçaram pernas e braços.
-
Quero que te vistas de perfume. Tenho saudades da Patry de Madrid. Esta parte
está controlada por nós, a Madrid não poderemos ir nem para comprar as roupas
que gostaria para ti. Quero que leves tudo do melhor para Portugal mereces e
quero ter de ti a imagem que deixei na “Plaza del Sol”, na Castelhana, na
Ópera...
-
Mas falaste-me em Talavera la Real...
-
Iremos amanhã. Deixa-me entregar-te como uma princesa.
Nessa
noite passearam de mãos dadas, numa Galiza onde o vestígio da guerra lhes
serviu de cenário, mas onde as estrelas não acusavam qualquer alteração desta
discórdia entre os homens.
Não
me perguntem se dormiram juntos, se se amaram, se se perderam ou encontraram,
sei apenas que se despediram, num encontro que sentiram ser o último.
Na
guerra, só importa o dia.
Aterraram
em Talavera, onde o conhecido de Bahamonde os esperava.
-
Cuida dela, Romão.
Entraram
num carro negro, cujas portas lhes foram abertas por um cigano português forte
e fiel.
-
Ainda esta noite, estará a salvo na minha propriedade.
Gostaria
Patry, de lhe ter perguntado por que mudara de bando.
Anos
mais tarde, com a guerra terminada, a Grande Enciclopédia Universal, quando a
república já era história e passado, referia:
FRANCO
BAHAMONDE, RAMÓN Aviador militar español (El Ferrol, 1896- costa de Mallorca,
1938). Hermano de Francisco Franco, realizó la travesía del Atlántico Sur, a
bordo del hidroavión Plus Ultra, del 22 de enero al 10 de febrero de 1926.
Aunque conspiró contra la monarquía y fue elegido diputado por Ezquerra
Republicana en 1931, secundó el alzamiento militar de 1936.
Era o irmão do Generalíssimo.
(...)
in A Mulher do Sargento Espanhol
...no prelo...