Um livro que passou para livro de contos e que continua a ser escrito, ponto por ponto, conto por conto e que às vezes publico partes, como este mês na Revista Lusitano.
A Revista dos emigrantes de Zurique.
Para quem quiser ler, aqui fica.
Do nosso Cantinho para
o vosso Cantão
Este mês ofereço uma história das minhas aventuras pelo
Oriente que faz parte do livro de contos “O Que Foste lá Fazer?” sobre
Timor-Leste.
As Freiras
As cadeiras de bambu
têm sobre elas, almofadas compradas perto. Vendem-se na plantação de casitas de
artesanato ao lado das gigantes bananeiras de fruto pequeno e doce que
aproveitam os passantes, ou passeantes que param, frente à fortaleza
portuguesa, canhões enferrujados virados para o vasto e ritmado azul. O mar,
esse mar incomensurável, arrastava-se até às ilhas indonésias que se avistavam
e mudava de cor, azul petróleo, álcool ou céu, às vezes verde, tons escuros,
raiados pelo branco das ondas baixas mas fortes, como os homens, embrulhando-se
cadenciadamente nas pedras soltas da praia de areia negra mas suave, como os
cabelos das crianças, mexendo-se na insegurança dos corais cortantes, cores
vivas e abrigo de peixes pintados de arco-íris, como os “tais” coloridos das
mulheres da ilha.
Do lado de cá do
baile do mar com a praia, antes das casitas, atravessa-se a estrada, passa-se a
fortaleza, a montanha sobe sem alcatrão e visita o café, a canela e o ananás,
que o Avô Serra metia na mesa, servido de histórias e de palavras de tempo, que
confundem o homem velho e sábio, com a história de Timor, o homem (hoje já
falecido) com raiz portuguesa que chegou há muito e ficou, como o crocodilo da
lenda.
Carlos Novais tinha
ido de Liquiçá a Maubara, numa “microlete” que mandou parar e que não gritava
“Díli, Díli, Díli” mas “Bara, Bara, Bara”, pequenina, peluches cobrindo o tablier tapando o vidro da frente, já só
meio, pelo autocolante do Barcelona que cobria a metade superior e rivalizava
com um Cristiano Ronaldo pintado nos laterais exteriores. Porta aberta com dois
rapagões de bronze, cabelos atados e chinelos, meio dentro meio fora,
pendurados, porque dentro iam senhoras tímidas, peles sofridas pelo sol e
trabalho, dentes vermelhos da última masca, “tais” sujos de pó, mas pés com
asseio, unhas cortadas e bicos de galinhas que espreitavam por baixo dos
assentos.
“Bara, Bara, Bara” e parou como um regaço fresco na estrada
quente. Carlos entrou e com ele o colega com quem tinha combinado visitar
Maubara, romper a clausura da ilha em que sentia a sua escola e respirar, outro
ar, longe das obras poeirentas que atravessavam a localidade onde estava, desde
que o avião o deixou naquela aventura, e só regressaria para o levar, com os
reis magos, pelo natal, para poder estar a horas no presépio da sua casa. Tinha
Maumeta, o suco onde morava, praia também, baleias à vista algumas vezes,
golfinhos quase sempre, crocodilos não se pensava nisso, mas estava muito
próximo da escola onde estava há pouco mais de um mês, a gosto quando o
trabalho era a gosto, forçado quando lhe começaram a forçar o gosto. Mesmo o
amor passa a desamor quando obrigado sem obrigado, e não precisava que lhe
agradecessem, bastava que o deixassem fazer o que sabia, aliás, julgo que a
única coisa que julgava saber fazer, ser professor, dar e receber todos os
dias. Despistar nortes, emprestar rumos e receber outros saberes, emprestar uma
bússola, falar da estrela polar, e receber, nem que fosse um sinal de fumo ou
de bandeiras, compensada com a visão do cruzeiro do sul. Afecto só sentia o de
alunos, pais e funcionários, porque os nortes que eram dados por quem levava o
leme, afastava a nau da terra, no convencimento de que os instrumentos de
orientação de bordo, porque importados, eram seguros, infalíveis mesmo, e o
pior, inquestionáveis, e se falhavam as velas pelo óbvio, tudo a remar,
transformando a nau em galé. Ambos estavam a precisar de sentir a parte de
fora, aquela outra vida que não parava, diferente, desconhecida para eles,
misteriosa, feiticeira, como alguém lhe chamara. Saíram assim para a parte de
fora da galé, sem tambores, e soube-lhes bem o ar, o mar e as gentes que
falavam de outras coisas que nunca tinham ouvido, de outra forma, línguas que
nunca tinham escutado, de outras maneiras de sentir, formulários que tinham
necessidade de preencher sem ser os outros, aqueles que faziam cumprindo, e a
que nem sequer, se atreviam a perguntar para que serviam?
Talvez agora, não repetissem aqueles coelhinhos de uma
Páscoa, celebrada ali de outra forma, feitos de embalagens vazias de iogurte e
de saberes de rua, importados para uma escola de um país, onde os coelhos são
tão conhecidos como os pinguins em África. Claro que se tinham que misturar, de
conhecer cheiros e risos e descobrirem que a lua ali não é mentirosa, porque
naquela tarde a viram em forma de barco e na anterior de fatia de melão, quais
quartos crescentes e minguantes? Qual quê? E as fichas? A praga das fichas? Com
feiras e carrosséis, meninos loiros e algodão doce nas mãos? E os exames?
Fechados e dignos, desenhados em segredo por adultos “especialistas” para terem
um resultado de espionagem secreta para saber o que os meninos não sabem em vez
de os estimularem pelo que aprenderam? Demasiado fechados, policiados,
ritualistas.
- Estamos a falar de crianças Carlos?
- Pois, o problema é esse, é que estamos a falar de crianças.
Estava decidido, tinham que começar a sair! A estrada de
Liquiçá para Maubara é uma língua recente, salpicada de animais que dão cor ao
alcatrão novo como o novo país, animais que estavam antes das máquinas lhes tirarem
o espaço e agora, que as máquinas partiram, o reocuparam, e usam-no, com tempo,
com todo o tempo do dia e da noite.
- Olha Carlos, a Lagoa.
À esquerda, uma manta líquida, espelho de uma família de
pelicanos que se duplicavam no reflexo da água, limpa hoje, outrora manchada de
vermelho, que a metralha castigava com a vida, um povo que queria ser país.
_ É por isso que se chama Lagoa Vermelha?
O silêncio respondeu que sim, o espelho de água reflectiu a
paz, e o voo dos pelicanos mostrou um país. Maubara apareceu de repente, com as
suas casotas de artesanato, a fortaleza de canhões enferrujados apontando para
o mar, hoje sem medo do que as ondas lhes trazem. A microlete parou, Carlos
perguntou a que horas havia uma de regresso, em português, nada, em inglês,
igual, gestos, dedo indicador apontando o relógio, mão aberta para dizer cinco
horas, arranhou tétum, também não. O timorense pequenino mostrou os dentes
brancos num sorriso de entendimento, sim, disse, Carlos Novais mão aberta e
dedos esticados, cinco horas, ele respondeu sim de novo, e tornou a responder
sim a tudo, sempre com um sorriso de que finalmente entendera. Gustavo, olhar
de observador soltou, parece que percebeu, vem às cinco. Carlos Novais fez-lhe
adeus, o timorense também e a microlete envolta em fumo de escape voltou para
trás. Missionariamente (o adjectivo existe porque o criei na liberdade que a
escrita me dá para inventar) Carlos comentou: Acabamos sempre por nos entender
- e ficou a olhar o mar. A tarde passou, cinco, cinco e meia, seis horas e
Gustavo na estrada suspirou com ironia: Acabamos sempre por nos entender –
Carlos não respondeu, apenas pensava que a noite estava a chegar e tinham que
regressar.
- Vem aí uma Toyota de caixa aberta, nova, aposto que tem ar
condicionado.
Nasceu a esperança e fizeram sinal para que parasse, ao
longe, bem antes de estar junto deles.
- Eh pá, espera, não a mandes parar, porra, vem carregada de
freiras!
Era tarde por um lado, mas por outro parecia que estava a
abrandar. E abrandou. E parou, não por eles, mas porque três homens carregados
com um enorme cacho de bananas também lhes fez sinal.
- Para as meninas do orfanato.
Começaram a atar o cacho pendurado na traseira.
Carlos Novais contou sete freiras na parte cabinada e cinco,
bem mais novas, juvenis até, na parte aberta da carrinha.
- Vamos lá?
- Não temos nada a perder.
Aproximaram-se da madre e perguntaram se podiam ir com elas
para Liquiçá. Desconfiadas, dois homens, um corpulento, o outro barbudo, a
sorte parecia perdida quando uma delas com sotaque espanhol disse:
_ Está cheio!
Carlos Novais puxou dos galões de homem sério, casado, pai de
filhos, professor, honesto, incapaz de uma má palavra, muito menos de um mau
gesto.
_ A irmã é espanhola? A minha esposa também. Vem a Timor em
Agosto…
Milagre.
A sua ordem também era, iam receber a visita de uma sua
superiora, que bom era mulher do Carlos ser espanhola… Aproveitando a embalagem
Gustavo disse “espanhola e professora, até podia ensinar castelhano enquanto
aqui estiver, de forma voluntária, às meninas do orfanato, ou às irmãs que
quiserem”. Carlos olhou para ele, que nem tão pouco a conhecia, mas com a noite
a cair, confirmou, que sim, poderia fazê-lo e também chinês e grego e latim,
por favor, que os tirassem dali.
_ Têm é que ir atrás, com os mantimentos.
_ Não faz mal, muito obrigado (lembrou-se que eram freiras)
Deus vos pague.
Gustavo, ágil, saltou para a caixa, já Carlos Novais teve que
ser puxado, julga mesmo que também empurrado, pelos três homens que tinham
acabado de atar as bananas. Deu-se conta que estava dentro quando caiu redondo
e com estrondo no meio dos sacos de batatas, hortaliças, duas galinhas, um
cabrito de patas atadas com arame e ele ali, agora sentado, cabelos ao vento,
com as noviças rindo do espectáculo que se lhes oferecia. A Toyota avançou, as
freiras mais velhas na cabina, atrás na caixa Carlos, Gustavo, e as freiras
novinhas que riam, com as mãos na boca, e falavam tétum entre elas, entremeado
com gargalhadas, que tudo indicava, seriam de gozo perante aqueles “malaes”,
que se tinham junto aos mantimentos. Carlos Novais tentou colocar ordem na
viagem e perguntou:
_ Vamos cantar?
_ Sim, Sim…
Puxou então das suas memórias religiosas, de quando se vestia
de acólito, aos Domingos, na sua paróquia de S. Lourenço em Portalegre, as
namoradas que não sabiam que eram, apenas desconfiavam, lindas e vestidas de
novo, as gentes perfumadas esperando a saída para o encontro na porta da
igreja, naquela missa do meio-dia que marcava a Cidade como um ritual. O padre
como rei, ele como pajem branco, levando-lhe as armas para aquele enorme campo
de prisioneiros arrependidos, de joelhos, mãos postas, mas perdoados quarenta
minutos depois para brilharem no alto da escadaria da igreja, naquele ritual de
cores, de sorrisos de festa culminante de uma semana, passada no cinzentismo de
sete dias iguais, onde nada acontecia. Em segundos percebeu que nenhuma canção
desse tempo, com cheiro a incenso, medo e bafio, era apropriado perante
religiosas tão novas e lembrando-se de anos mais tarde, pensou em canções mais
modernas, de quando um concílio lhe mudou os Domingos, arrumando os véus
negros, o órgão queixoso que nem parecia instrumento de música e trazendo as
guitarras (nada tenho contra os órgãos, o Toy Eustáquio que me perdoe, embora
tenha optado pelas cordas nos últimos tempos), as palmas, os abraços e a festa,
para dentro da mesma casa, com as velhas beatas a resmungar, mas cantando,
tentando acompanhar as ordens do tempo, embora continuassem a cheirar a velas e
a azeite e a imprimir lentidão nas melodias.
Foi então que Carlos Novais ganhou coragem e começou cheio de
esperança, voz bem colocada, festivo, com palmas a acompanhar:
_ Tenho um Amigo que me ama, que me ama, que me ama…
Correu bem, todas cantaram, mas sem muita alegria.
Carlos começou logo outra:
_ Sou Pescador, do mar da Galileia, deixa o teu barco …
_ Não, Não, Não…
Ó diabo, se calhar a letra não era aquela, as freirinhas não
gostavam e, só entendeu o motivo, quando uma disse alto:
_ Júlio Iglésias, Júlio Iglésias… - e as outras em coro e
alvoroço:
_ Sim, Sim, Sim…
Aragonez Marques