55. Esperança,
Esperancinha, Cinhona, Cinha
Dona Cinha, apenas tinha ganho o nome de
Dona, e mesmo de Cinha, há quatro anos, quando depois da morte do marido,
asfixiado por uma espinha de cação escondida no tomate da caldeirada, baixou de
Peniche para Lisboa, com os quilos de gordura coleccionados nos últimos vinte
anos, jurando a si mesma não mais meter na boca qualquer animal que tivesse
espinha ou osso, tornando-se deste modo numa vegetariana fanática, que a
adelgaçou e secou, levando-a a ser conhecida por Dona Cinha em vez de a Cinhona
como nos anos em que viveu com o marido, gestionando uma taberna na estrada que
levava ao Cabo Carvoeiro.
Foi uma mudança radical na sua vida, mais
uma, desconhecendo, que não seria a última.
Tinha conhecido o marido numa procissão do
Senhor dos Passos em Portalegre de machado e capacete polido, luvas brancas,
cordão branco caindo sobre os botões dourados, marchando perfilado, bandeiras à
frente e passo certo.
O bombeiro mais fardado que já vira.
Ela tinha descido à cidade, na folga que a
senhora lhe dera para assistir à morte do Senhor. Trouxera-a o lavrador no
carro, da aldeia para a cidade, mão esquerda no volante e a direita entre as
suas pernas nuas, como habitualmente sempre que viajavam sozinhos e a sentava
no banco da frente. Permitia-lhe ela como um costume, já um hábito, uma
cláusula secreta assinada por medo de dizer não, naquela entrega da sua vida
para o serviço da quinta, propriedade, como o cavalo, o sofá, o candeeiro
italiano e tudo o que no universo onde vivia, de um só dono. Romão Papafina era
rei, presidente, chefe, pai, proprietário sem reservas, de tudo e todos os que
gravitavam no seu enorme espaço.
Piscou-lhe o olho o bombeiro, um rapaz da sua
idade.
Sentiu que seria possível outra vida. Jacinto
passou a ir à aldeia e ela, sempre que a folga era possível, agarrava a
camioneta da carreira e rumava à cidade, hipnotizada pelas suas histórias de
caserna voluntária.
Eram diferentes os beijos que lhe dava.
Centravam-se nos lábios e na pele, dias e dias consecutivos, e os dedos, com
respeito, baixavam no seu corpo poucos centímetros por semana e só um dia
muitos e muitos dias depois, com dois verões e a terceira primavera pelo meio,
se atreveram a dominar-lhe por completo o corpo. De Esperancinha a Esperança e
de Cinhona a Dona Cinha, apenas guardava uma mágoa imensa de nunca lhe ter
contado que já tinha sido mãe, de um filho que nunca viu e que lhe nasceu morto
e escondido, entre os muros de um convento. Há segredos, que devem manter-se
sempre em segredo, porque o desconhecimento é garantia da felicidade de todos,
menos de quem o guarda ou reserva para si.
Foram felizes.
Ele fora criado praticamente no Quartel,
desde os catorze anos, começando a brincar entre a ambulância amarela e o auto-tanque. Aquele quartel era a segunda casa de muito bombeiro, mas a primeira
de muita gente.
Ali se passavam os dias como uma pequena
família doentia, sem outro mundo, esperando avidamente que a sirene tocasse,
muitas vezes em angústia, porque não tocava, e uma festa quando o som invadia a
cidade, interrompendo o vazio de onde nada acontecia, num gemido continuo
quando o sinistro era na cidade ou com pausas como música, debaixo para cima e
de cima para baixo, quando era fora dela, no campo, a parte de fora das casas
juntas.
Não era uma profissão.
Havia uma carga militarizada e hierárquica,
encapotada com um voluntariado balofo de estado novo, onde entre Jacinto e os
muitos companheiros, apenas dois sabiam ler e escrever. Mas eram aventureiros e
faziam dos fogos as suas vidas. O auto-tanque, vermelho, tinha capacidade para
dez homens. Quando a sirene se transformava em nuvem sonora caída sobre as
ruas, sobre os prédios, entrando por portas e janelas mesmo fechadas, era hora
do privilégio de virar as costas aos patrões e mostrar galhardamente a todos a
coragem de pertencer ao Corpo, correndo à civil, rua do Comércio acima ou rua
da Cooperativa abaixo até ao Quartel. Partiam os primeiros dez a chegar, depois
de vestir os macacos azuis e atarraxarem os bivaques à cabeça. Chegavam a discutir,
a empurrar e esbracejar até sentirem o cú na meta de couro castanho dos dois
assentos virados um para o outro. Os atrasados ficavam aí, desgosto
no corpo, pedindo a Deus que o sinistro fosse grande, grande a valer, para sair
outra viatura. Dentro da cabina, os felizardos davam azo à vitória, vidros
abertos, braços esticados e mãos contra o vento enquanto as luzes rolavam no
tejadilho anunciando a urgência e o apito agudo da viatura gritava num gemido
doloroso, estrada fora, enrolando-se com as luzes azuis. Ao detectar o fumo ao
longe uivavam como grito de guerra alvoraçado e ébrio:- Já “chera”!! – E se era
fogo pequeno: - Bela merda, isto apagasse com uma mijadela - e se era grande, o
êxtase misturava-se alegremente com a adrenalina e o – Já “chera”!! -
transformava-se em ordem de ataque, até que as portas se abriam e caíam sobre o
mato em chamas, batedores de madeira com pontas de lona, socando e varrendo com
força, garra e ódio, o laranja das labaredas até as destruírem com brio e
galhardia.
Às vezes ficavam vários dias, lutando e
suando, tendo como inimigos a cortiça da Robinson e a Serra de São Mamede. As
populações levavam da Serra Leite, pacotes triangulares, último grito da moda
da cooperativa, e os homens bebiam-nos pelo bico como chupando teta de vaca.
Só a lixeira da Câmara era vista como batalha
chata e pouco digna, mal cheirosa e ingrata por ser sistemática, muitas vezes,
duas e três por semana.
Quando o tédio invadia o quartel muitos dias
seguidos sem movimento belicoso, ouvia-se repetidamente suspirar pelos cantos:-
Porra, que chatice, pelo menos que arda a lixeira - e como por milagre, ardia.
Eram homens preparados, treinados no risco.
- Ai homem de Deus, tenho mais medo quando
vais ao treino que quando vais ao fogo.
Formavam por trás da Fábrica Real, no
esqueleto preto de madeira com vários andares e janelas, onde os meninos no
verão trepavam e se escondiam para ver à borla o cinema ao ar livre.
- Descansar!
Abriam as pernas, mãos atrás das costas e
esperavam ordens.
- Subir dois a dois, tu e tu.
Tiravam as escadas curtas e estreitas com
gancho na ponta, do carro dos bombeiros, alçavam-nas até à janela do primeiro
andar onde as penduravam, trepavam por elas, sentavam-se no parapeito, uma
perna para cada lado, subiam-nas a pulso e enganchavam-nas nas janelas do
segundo andar, subiam, sentavam, puxavam, terceiro andar e assim sucessivamente
até ao último piso. Aí se juntavam todos vendo a cidade de cima, até chegar o
instrutor com a manga. Os graduados, com meia dúzia de homens que não subiram
ficavam em baixo, pequeninos, olhos no alto. Encima havia nomes alados,
Canário, Cara de Anjo, trepadores, Lagarto e até nomes artísticos que poderiam
ser de circo como Bilé ou trágicos para quem olhava a insegurança do treino,
Picado.
- Tu e tu, baixem às costas dois aspirantes.
Enrolados com unhas e dentes aos ombros dos
experimentados bombeiros de primeira, os aspirantes fechavam os olhos e faziam
o percurso inverso com confiança cega no homem que baixava e encaixava a
escada, peitoril a peitoril, até ao chão, lanço a lanço no sentido inverso da
subida.
- Baixem a manga!
Soltava-se do último andar o tubo de lona
branco sujo. Em baixo enrolavam-lhe a ponta, afunilando-a e travando a
velocidade da descida. Encima, os futuros bombeiros e os bombeiros de terceira,
entravam no buraco escuro, um a um, e escorregavam túnel sem luz, respiração
parada pela rapidez até ao chão. Um, dois, três, todos. Formavam então
novamente à voz do comando.
- Não esqueçam, se forem mulheres a ser
salvas, têm que baixar de cabeça para baixo ou queimarão as pernas no atrito do
roçar da lona manga abaixo.
Arrumava-se o material e tinha acabado mais
um treino, sem acidentes, milagrosamente, como sempre.
Deus protege os audazes.
Se não fosse naquele dia o desentendimento,
Jacinto não tinha abandonado o grupo e quem sabe, se esta história não seria
diferente.
Soara a sirene como tantas vezes,
intermitente como em milhares de dias, na Serra de São Mamede como em centenas
de ocasiões.
Saíram várias viaturas, não houve necessidade
de briga pois havia lugar para todos. Pararam numa clareira, as montanhas e as
árvores pela frente.
No alto, fumo.
- O incêndio está crescendo do outro lado.
Não há estradas nem caminhos até lá. Os carros ficam aqui. Iremos a pé. Só fica
um motorista com a viatura.
Dez homens carregados, com água às costas em
pesados depósitos de cobre, batedores nas mãos, sacrifício serra acima. À
frente o chefe do grupo gritava: - Vamos, força, mexam-se, quando lá chegarmos
já não há nada. - Quase duas horas de subida, pedras tropeçadas, pesavam os
ombros, raiva e dor, o chão de caruma afiada, mas chegaram. Cansados aliviaram
a carga como contrabandistas mal pagos de café em esforço, ou carregadores de
mantimentos nas subidas do Tibete.
Fresco estava o chefe, o único que não levava
carga.
- Irra, esqueci-me do rádio na viatura.
Trinta e três, vai lá abaixo buscá-lo.
O trinta e três era Jacinto, esgotado e mal
disposto.
- Vá você!
Essa desobediência a uma ordem de um seu
superior levou-o a um processo disciplinar que acabou com oito dias de
suspensão sem poder entrar no quartel.
- Pois nunca mais cá entro!!
E nunca mais entrou, dando por terminada a
sua missão voluntária nos bombeiros.
Meses depois, órfão de amigos e da casa de
sempre, fugiu com a criada de Romão Papafina, primeiro para Lisboa, depois para
Peniche. Montou uma taberna onde Esperancinha coleccionou vinte quilos em vinte
anos e que só o malfadado osso de cação interrompeu.
Esperança apenas guardou dele o bivaque, que
emoldurou com vidro e tudo, e fazia parte da parede da sala.
Atravessou um período difícil sem família e
sem Jacinto.
Acabou por ter que fechar a taberna e os
rendimentos foram-se como as encomendas sem dinheiro que ficam no Cabo
Carvoeiro.
A Cáritas cuidou dela algum tempo, mas foi Foluke,
a amiga voluntária que trabalhava na entrega de alimentos na zona centro, que
lhe deu ânimo para recomeçar a vida. Recuperou a dignidade em Lisboa e quatro
anos após a morte de Jacinto, Dona Cinha era querida por todos, encerrando a
cadeado, julgava ela, o passado.
O segredo, continuou a guardá-lo só para ela,
estava decidido, até à tumba.
Dona Cinha não sabia que o destino não pára,
apenas porque decidimos atá-lo, com a mordaça do silêncio.
in A Mulher do Sargento Espanhol
(a publicar em breve)