Capítulo 8
(…)
As cadeiras de bambu têm sobre elas almofadas compradas
perto.
Vendem-se na plantação de casitas de artesanato ao lado das
gigantes bananeiras de fruto pequeno e doce que aproveitam os passantes, ou
passeantes que param, frente à fortaleza portuguesa, canhões enferrujados virados
para o vasto e ritmado azul.
O mar, esse mar imenso, arrastava-se até às ilhas indonésias
que se avistavam e mudava de cor, azul petróleo, álcool ou céu, às vezes verde,
tons escuros, raiados pelo branco das ondas baixas mas fortes, como os homens,
embrulhando-se cadenciadamente nas pedras soltas da praia de areia negra mas
suave, como os cabelos das crianças, mexendo-se na insegurança dos corais
cortantes, cores vivas e abrigo de peixes pintados de arco-íris, como os “tais”
coloridos das mulheres da ilha.
Do lado de cá do baile do mar com a praia, antes das casitas,
atravessa-se a estrada, passa-se a fortaleza, a montanha sobe sem alcatrão e
visita o café, a canela e o ananás, que o Avô Serra mete na mesa, servido de
histórias e de palavras de tempo, que confundem o homem velho e sábio, com a
história de Timor, o homem com raiz portuguesa que chegou há muito e ficou,
como o crocodilo da lenda.
Carlos Novais tinha ido de Liquiçá a Maubara, numa microlete que mandou parar e que não
gritava “Dili, Dili, Dili” mas “Bara, Bara, Bara”, pequenina, peluches cobrindo
o tablier tapando o vidro da frente, já só meio, pelo autocolante do Barcelona
que cobria a metade superior e rivalizava com um Cristiano Ronaldo pintado nos
laterais exteriores.
Porta aberta com dois rapagões de bronze, cabelos atados e
chinelos, meio dentro meio fora, pendurados, porque dentro iam senhoras
tímidas, peles sofridas pelo sol e trabalho, dentes vermelhos da última masca, “tais”
sujos de pó, mas pés com asseio, unhas cortadas e bicos de galinhas que
espreitavam por baixo dos assentos.
“Bara, Bara, Bara” e parou como um regaço fresco na estrada
quente.
Carlos entrou e com ele o colega com quem tinha combinado
sair, romper a clausura da ilha em que sentia a sua escola e respirar, outro
ar, longe das obras poeirentas que atravessavam a localidade onde estava, desde
que o avião o deixou naquela aventura, e só regressaria para o levar, com os
reis magos, pelo natal, para poder estar a horas no presépio da sua casa.
Tinha Maumeta, o suco onde morava, praia também, baleias à
vista algumas vezes, golfinhos quase sempre, crocodilos não se pensava nisso,
mas estava muito próximo da escola onde estava há pouco mais de um mês, a gosto
quando o trabalho era a gosto, forçado quando lhe começaram a forçar o gosto.
Mesmo o amor passa a desamor quando obrigado sem obrigado, e
não precisava que lhe agradecessem, bastava que o deixassem fazer o que sabia,
aliás, julgo que a única coisa que julgava saber fazer, ser professor, dar e
receber todos os dias.
Despistar nortes, emprestar rumos e receber outros saberes,
emprestar uma bússola, falar da estrela polar e receber, nem que fosse um sinal
de fumo ou de bandeiras, compensada com a visão do cruzeiro do sul.
Afecto só sentia o de alunos, pais e funcionários, porque os
nortes que eram dados por quem levava o leme, afastava a nau da terra, no
convencimento de que os instrumentos de orientação de bordo, porque importados,
eram seguros, infalíveis mesmo, e o pior, inquestionáveis, e se falhavam as
velas pelo óbvio, tudo a remar, transformando a nau em galé.
Ambos estavam a precisar de sentir a parte de fora, aquela
outra vida que não parava, diferente, desconhecida para eles, misteriosa,
feiticeira, como alguém lhe chamara.
Saíram assim para a parte de fora da galé, sem tambores, e
soube-lhes bem o ar, o mar e as gentes que falavam de outras coisas que nunca
tinham ouvido, de outra forma, línguas que nunca tinham escutado, de outras
maneiras de sentir, formulários que tinham necessidade de preencher sem ser os
outros, aqueles que faziam cumprindo, e a que nem sequer, se atreviam a
perguntar para que serviam?
Talvez agora, não repetissem aqueles coelhinhos de uma
Páscoa, celebrada ali de outra forma, feitos de embalagens vazias de iogurte e
de saberes de rua, importados para uma escola de um país, onde os coelhos são
tão conhecidos como os pinguins em África.
Claro que se tinham que misturar, de conhecer cheiros e risos
e descobrirem que a lua ali não é mentirosa, porque naquela tarde a viram em
forma de barco e na anterior de fatia de melão, quais quartos crescentes e
minguantes? Qual quê?
E as fichas? A praga das fichas? Com feiras e carrosséis,
meninos loiros e algodão doce nas mãos? E os exames? Fechados e dignos,
desenhados em segredo por adultos especialistas para terem um resultado de
espionagem secreta para saber o que os meninos não sabem em vez de os
estimularem pelo que aprenderam? Demasiado fechados, policiados, ritualistas.
- Estamos a falar de crianças Carlos?
- Pois, o problema é esse, é que estamos a falar de crianças.
Estava decidido, tinham que começar a sair!
A estrada de Liquiçá para Maubara é uma língua recente, salpicada
de animais que dão cor ao alcatrão novo como o novo país, animais que estavam
antes das máquinas lhes tirarem o espaço e agora, que as máquinas partiram, o
reocuparam, e usam-no, com tempo, com todo o tempo do dia e da noite.
- Olha Carlos, a Lagoa.
Ά esquerda, uma manta líquida, espelho de uma família de
pelicanos que se duplicavam no reflexo da água, limpa hoje, outrora manchada de
vermelho, que a metralha castigava com a vida, um povo que queria ser país.
_ É por isso que se chama Lagoa Vermelha?
O silêncio respondeu que sim, o espelho de água reflectiu a
paz, e o voo dos pelicanos mostrou um país.
Maubara apareceu de repente, com as suas casotas de
artesanato, a fortaleza de canhões enferrujados apontando para o mar, hoje sem
medo do que as ondas lhes trazem.
A microlete parou,
Carlos perguntou a que horas havia uma de regresso, em português, nada, em
inglês, igual, gestos, dedo indicador apontando o relógio, mão aberta para
dizer cinco horas, arranhou tétum, também não.
O timorense pequenino mostrou os dentes brancos num sorriso
de entendimento, sim, disse, Carlos Novais mão aberta e dedos esticados, cinco
horas, ele respondeu sim de novo, e tornou a responder sim a tudo, sempre com
um sorriso de que finalmente entendera.
Gustavo, olhar de observador soltou, parece que percebeu, vem
às cinco.
Carlos Novais fez-lhe adeus, o timorense também e a microlete envolta em fumo de escape
voltou para trás.
Missionariamente (o adjectivo existe porque o criei na
liberdade que a escrita me dá para inventar) Carlos comentou: Acabamos sempre
por nos entender - e ficou a olhar o mar.
A tarde passou, cinco, cinco e meia, seis horas e Gustavo na
estrada suspirou com ironia: Acabamos sempre por nos entender – Carlos não
respondeu, apenas pensava que a noite estava a chegar e tinham que regressar.
- Vem aí uma Toyota de caixa aberta, nova, aposto que tem ar
condicionado.
Nasceu a esperança e fizeram sinal para que parasse, ao
longe, bem antes de estar junto deles.
- Eh pá, espera, não a mandes parar, porra, vem carregada de
freiras!
Era tarde por um lado, mas por outro parecia que estava a
abrandar.
E abrandou.
E parou, não por eles, mas porque três homens carregados com
um enorme cacho de bananas também lhes fez sinal.
- Para as meninas do orfanato.
Começaram a atar o cacho pendurado na traseira.
Carlos Novais contou sete freiras na parte cabinada e cinco,
bem mais novas, juvenis até, na parte aberta da carrinha.
- Vamos lá?
- Não temos nada a perder.
Aproximaram-se da madre e perguntaram se podiam ir com elas
para Liquiçá.
Desconfiadas, dois homens, um corpulento, o outro barbudo, a
sorte parecia perdida quando uma delas com sotaque espanhol disse:
_ Está cheio!
Carlos Novais puxou dos galões de homem sério, casado, pai de
filhos, professor, honesto, incapaz de uma má palavra, muito menos de um mau
gesto.
_ A irmã é espanhola? A minha esposa também, vem a Timor em
Agosto…
Milagre.
A sua ordem também era, iam receber a visita de uma sua
superiora, que bom a mulher do Carlos ser espanhola…
Aproveitando a embalagem Gustavo disse “espanhola e
professora, até podia ensinar castelhano enquanto aqui estiver, de forma
voluntária, às meninas do orfanato, ou às irmãs que quiserem”.
Carlos olhou para ele, que nem tão pouco a conhecia, mas com
a noite a cair, confirmou, que sim, poderia fazê-lo e também chinês e grego e
latim, por favor, que os tirassem dali.
_ Têm que ir atrás, com os mantimentos.
_ Não faz mal, muito obrigado (lembrou-se que eram freiras)
Deus vos pague.
Gustavo, ágil, saltou para a caixa, já Carlos Novais teve que
ser puxado, julga mesmo que também empurrado, pelos três homens que tinham
acabado de atar as bananas.
Deu-se conta que estava dentro quando caiu redondo e com
estrondo no meio dos sacos de batatas, hortaliças, duas galinhas, um cabrito de
patas atadas com arame e ele ali, agora sentado, cabelos ao vento, com as
noviças rindo do espectáculo que se lhes oferecia.
A Toyota avançou, as freiras mais velhas na cabina, atrás na
caixa, Carlos, Gustavo, e as freiras novinhas que riam, com as mãos na boca, e
falavam tétum entre elas entremeado com gargalhadas, que tudo indicava, seriam
de gozo perante aqueles malaes, que
se tinham junto aos mantimentos.
Carlos Novais tentou colocar ordem na viagem e perguntou:
_ Vamos cantar?
_ Sim, Sim…
Puxou então das suas memórias religiosas, de quando se vestia
de acólito, aos Domingos, na sua paróquia de S. Lourenço em Portalegre, as
namoradas que não sabiam que eram, apenas desconfiavam, lindas e vestidas de
novo, as gentes perfumadas esperando a saída para o encontro na porta da
igreja, naquela missa do meio-dia que marcava a Cidade como um ritual.
O padre como rei, ele como pajem branco, levando-lhe as armas
para aquele enorme campo de prisioneiros arrependidos, de joelhos, mãos postas,
mas perdoados quarenta minutos depois para brilharem no alto da escadaria
da igreja, naquele ritual de cores, de sorrisos de festa culminante de uma
semana, passada no cinzentismo de sete dias iguais, onde nada acontecia.
Em segundos percebeu que nenhuma canção desse tempo, com
cheiro a incenso, medo e bafio, era apropriado perante religiosas tão novas e
lembrando-se de anos mais tarde, pensou em canções mais modernas, de quando um
concílio lhe mudou os Domingos, arrumando os véus negros, o órgão queixoso que
nem parecia instrumento de música e trazendo as guitarras (nada tenho contra os
órgãos, o Toy Eustáquio que me perdoe, embora tenha optado pelas cordas nos
últimos tempos), as palmas, os abraços e a festa, para dentro da mesma casa,
com as velhas beatas a resmungar, mas cantando, tentando acompanhar as ordens
do tempo, embora continuassem a cheirar a velas e a azeite e a imprimir
lentidão nas melodias.
Foi então que Carlos Novais ganhou coragem e começou cheio de
esperança, voz bem colocada, festivo, com palmas a acompanhar:
_ Tenho um Amigo que me ama, que me ama, que me ama…
Correu bem, todos cantaram, mas sem muita alegria.
Carlos começou logo outra:
_ Sou Pescador, do mar da Galileia, deixa o teu barco …
_ Não, Não, Não…
Ó diabo, se calhar a letra não era aquela, as freirinhas não
gostavam e só entendeu porquê quando uma disse alto:
_ Júlio Iglésias, Júlio Iglésias… _ e as outras em coro e
alvoroço:
_ Sim, Sim, Sim…
(…)
in O Que Foste lá Fazer?
( em elaboração )