(…)
Se os dragões existissem, diria que um, enorme,
gigante mesmo, boca e narinas dilatadas, vivia sobre o monte Ramelau, e que àquela
hora, sempre a mesma em que chegava um avião, tentava mandar para trás quem se
atrevia a invadir a sua ilha, com enormes baforadas de hálito quente.
Esta foi a primeira sensação que Carlos Novais teve
quando baixou as escadas íngremes encostadas ao avião acabado de chegar.
Juntou-se ao
grupo de colegas que embarcaram nesta aventura e se iam reunindo na pista.
Olharam uns para os outros e tardou que alguém mais
afoito, rompesse o silêncio húmido e abafado e dissesse: - Uma foto
companheiros, ânimo, chegámos a Timor.
Saíram sorrisos como abraços em grupo para a câmara.
Tinham deixado Portugal dia 19 e chegado a Timor-Leste
às 13.45 (hora local) do dia 23 de Maio.
Engoliram horas.
Noites e dias estavam às avessas como estavam os
corpos e os pensamentos.
Saíram juntos do aeroporto.
Lá fora aguardavam-nos outros colegas que já viviam
essa experiência há mais tempo.
Para além dos amigos que alguns lá tinham, Novais
tinha o abraço da Maria e do Alberto, esperavam-nos também as coordenadoras
gerais do projecto, a Coordenadora Portuguesa e a Timorense e com elas, os
treze coordenadores das treze escolas, uma por distrito, nesta teia organizada
para reiniciar o acesso à Língua Portuguesa e que, funcionava como os
tentáculos de um polvo, cuja cabeça bicéfala estava em Dili.
Cada escola tinha uma carrinha com motorista e os
professores foram distribuídos por elas e levados para alojamentos provisórios
na capital.
Carlos Novais, um dos quatro homens que chegaram, foi
levado para um hotel, de onde se via o mar, esse seu mar que tanto lhe seria
companheiro durante a sua estadia na Ilha.
As colegas,
ficaram em casas, uma zona fechada chamada Vila Verde e que Carlos Novais não
recorda bem.
Recorda-se, isso sim do seu hotel.
Novo Horizonte, porque os horizontes podem ser novos, entre
o centro de Dili e a praia da Areia Branca.
Até chegar ali, tinha feito uma curva nas condições
que subiam e baixavam consoante as escalas.
Partira do seu distrito às seis horas da manhã de dia
dezanove, e a partir daí, tinha tocado movimentos em Lisboa, Madrid, Doha e
Bali.
Em Doha sentiu o primeiro rugir da diferença, com
mulheres apenas com olhos e homens todos de branco.
Em Bali, respirou a Ásia.
Ficou num hotel majestoso e sentiu o poder do dólar.
Pagou com eles as refeições, onde as rupias, apesar de
muitas para valerem mais, continuam a ser pobres envergonhadas de pouco valor.
Uma refeição no hotel andava pelos quatro dólares.
Carlos Novais comparou mentalmente com o euro... mas
isto seriam, ora bem, o quê? Só? Três euros e vinte, menos de um maço de
cigarros? Um hotel de luxo destes?... Não conseguiu deixar de pensar que a
Europa não ia por bom caminho.
Timor, tem a Austrália como guia e a Austrália, tem
como rainha, a mais antiga monarquia europeia, consciente disso, tenta manter laços com os países
vizinhos, mesmo com a sua velha inimiga Indonésia e agarra-se à CPLP para
manter a sua identidade histórica.
Mas regressemos à primeira noite com oito horas de
diferença de Lisboa, agora, ou nove, quando Lisboa anda ao sabor da mudança dos
ponteiros, um passo para o lado, outro para o outro, numa valsa dançada pela
luz.
Carlos Novais, chega ao hotel Novo Horizonte, dão-lhe
um quarto, uma chave e um código de internet.
Coloca as duas malas e o saco de mão no chão, tira o
portátil, liga-o e começa a chamar a família.
Tinham-se passado tantas coisas novas em tão pouco
tempo que lhe parecia ter saído de casa há uma eternidade.
Como sempre, o melhor tinha deixado lá e não se
referia só à família e aos amigos, trouxe o seu telefone velhinho, o computador
sem autonomia de bateria, roupa q.b. como o sal, nem a viola, nada, o que
cozinhasse na sua vida a partir desse momento, seria com os seus recursos e com
os ingredientes de lá.
Não se preocupou por isso com os vinte e sete quilos
de limite de bagagem, a dor de cabeça das companheiras.
Ele e só ele estavam ali, nessa primeira noite, e o
computador sem câmara, só podia escrever, não podia ver ninguém:
- Sou eu !!
-Papá, Papá!
- Então como estão?
- Vimos a tua viagem pela Net, seguimos a rota do
avião.
Modernices destes tempos, uma das que Carlos Novais
sabia ter como deficiência.
- Quem está aí?
- Todas!!
E estavam, mulher e filhas, as pequenas e as maiores
que foram apoiar este momento que também para elas não deveria estar a ser
fácil.
- Não morri, caramba. Só saí de casa por uns tempos.
Carlos Novais tentava inventar coisas para lhes dizer,
a cabeça estava branca como as vestes dos homens de Doha.
- Tu estás bem?
- Na maior!!
Nessa altura e enquanto escrevia, chorava, e ainda bem
que o não viam para evitar o gozo das filhas, “andas muito chorão” e andava.
Antes de ir, chorava por tudo e por nada, não era berraria,
não pensem, era assim, comovia-se e pronto.
Comovia-se com tudo, com as palavras que ouvia, com os
livros que lia, sobretudo se falassem de crianças ou de velhos, mas reconhecia
que ultimamente a coisa se tinha complicado e já torcia o beiço, com um filme,
com a televisão e até com as telenovelas que dizia não ver, mas que espreitava.
- Andas aí?
- Sim, estou.
- Então já viste algum crocodilo?
A mulher de Carlos, culpada com a amiga Lurdes com
quem aprendia receitas novas, do seu elevado peso que o fez não ter cinto
suficiente no último voo entre Bali e Timor escreveu:
- Que comeste?
- Coisas do avião.
Carlos, ao olhar para os seus cento e trinta e oito
quilos e lembrando-se do pormenor de no voo que o deixou em Dili não ter tido
cinto suficiente para o apertar e proteger, acrescentou:
- Olha amor, estou entregue a mim mesmo. Estou em
Timor-Leste, a dezassete mil quilómetros de casa onde aterrei sem cinto de segurança.
Mal sabia Carlos Novais que muitas outras vezes iria
sentir a falta desse cinto.
-Então? Então? Carlos estás aí?
Não tinha ficado sem Net, conforme lhes foi dito
durante as conversas preliminares com o ministério, foi sem luz e só três horas
depois conseguiu ligar de novo o computador onde uma fileira de preocupações
estava escrita em monólogo:
- Carlos estás bem?
- Carlos porque não escreves?
- Passa-se alguma coisa?
Carlos respondeu de imediato:
- Está tudo bem, fiquei sem luz.
Em desabafo em tom depreciativo, a mulher escreveu:
- Pronto, já estás em Timor…
Carlos esperou um pouco e respondeu:
- O problema não é de Timor, é ainda de Portugal, onde
com os roubos nos ordenados, os congelamentos de salários e tudo aquilo que
sabes na pele, não dá hipóteses a que um professor possa ter um computador em
condições, que não tenha que estar ligado à luz, por velho e muito uso ao seu
serviço, tenha ainda que sair do país que é seu… e, caramba!!!
Judite, esposa:
- Não te metas em política Carlos, dá-me tanto medo
que sejas assim.
Para Carlos Novais, a conversa estava terminada, não
sabia era como o fazer.
Irritava-o a passividade dos portugueses, os medos, as
permissões, a última greve de professores em que em todo o agrupamento de
escolas a que pertencia, só ele como um tonto perdeu o dia de trabalho,
surpreendido por todos os colegas que se manifestavam contra a política
desgraçada do governo se terem perfilado religiosamente na escola, como
cordeiros silenciosos.
A directora pela manhã telefonou-lhe:
- Olha, as auxiliares fazem greve, não vai haver
aulas, anda que não perdes o dia.
Não queria acreditar no que ouvia, montarem-se sobre as
pobres auxiliares educativas que ganhavam quinhentos euros por mês.
Tinha mesmo que sair, para longe, nada fazia sentido,
o país estava falso, vivendo de expedientes.
Lembra-se de ter chegado à escola no outro dia e dizer
às colegas:
- A partir de hoje falem comigo de novelas, do
festival da canção, da Bárbara Guimarães e das nódoas negras, mas não se
atrevam a dizer mal da escola, do ministro ou do governo, que eu não discuto
mais esse tema convosco.
Decidiu nesse dia colocar mar e terra sobre ele e o
país.
- Olha estão a chamar-nos para jantar.
Não estavam.
- Está bem, quando voltas a falar?
- Não sei, quando puder.
- E como sei quando podes?
- Dou-te um toque de telemóvel. Não atendas que deve
ser caro e vai para o computador.
- Adeus amor.
- Adeus Papá.
- Papá beijinho para ti.
- Papá compra-me coisinhas.
- PAI, PAI.
- Papá, foi a pequenina que escreveu PAI, eu ajudo a
cuidar das minhas irmãs.
Carlos Novais contou as despedidas:
- Eh! Falta uma.
- Sim, a Nevita, ela também te manda um beijo. Só vem
amanhã.
Carlos Novais desligou o computador, abriu as malas,
tirou uns calções, uma camisola e roupa interior.
Completamente suado, sentiu a água fria do chuveiro
como bênção.
Limpou-se.
Sentiu-se húmido, incómodo, e deu-se conta que estava
suado outra vez.
Entrou novamente no chuveiro.
Saiu e meteu-se debaixo do ar condicionado.
Foi assim que Carlos Novais apanhou a primeira
constipação na Ásia.
(...)
In O Que Foste lá Fazer?
... em construção...
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