jueves, 19 de octubre de 2017

A TORTILHA DE BATATA - Clarinha



( Eu, Clarinha, sou a segunda a contar da esquerda,
 as outras são as minhas irmãs)

A TORTILHA DE BATATA

Estou irritadíssima, imaginem vocês, que os fotógrafos, que eram dois, um que meteu um palco com flores de papel e outro que carregava no botão da máquina, foram hoje à minha escola, e embora a minha mãe pagasse treze euros pelas fotografias, mais um do que no ano passado, algumas com calendário, eles é que decidiram como eu me sentava não me deixando escolher o meu melhor perfil, que é o esquerdo, porque no direito tenho um biquinho numa orelha igual à do meu pai. A minha avó diz que essa orelha do meu pai, é em bico, porque ele era um diabrete quando era pequeno, mas ele diz que essa orelha tem um bico porque a direita é o diabo. Agora se eu não gosto do biquinho da minha orelha, tenho todo o direito de mostrá-la só a quem quero, seja a direita ou a esquerda, era o que faltava, e não metê-la assim na montra do calendário que os meus avós vão ter todo o ano de 2018 colado no frigorífico como o de 2017, pois é a prenda de natal que os meus pais lhes dão desde que há fotografias na escola, já no tempo das minhas irmãs grandes era igual.
Todos os meninos e meninas tiraram fotografias, e os professores também, sozinhos e em grupo, de pé e sentados, de todas as maneiras como no casamento da minha prima Clotilde, que já está divorciada, que tirou fotografias em todo o lado, até agarrada ao telefone da sala e à cortina do quarto.
Só é pena que nem todos os meninos e meninas da minha escola possam como eu levar as fotografias para casa, porque os pais de alguns não têm dinheiro para as pagar. Eu acho mal, afinal aquilo não é um colégio como o da minha prima Leonor, com nome de princesa, que os meus tios pagam para ela lá estar porque o meu tio é médico e a minha tia é enfermeira mulher de médico e não têm mais filho nenhum. A minha é uma escola do governo e deveria ser igual para todos os que lá andamos.
A minha mãe, já anda um pouco farta de eu ser assim e está sempre a dizer-me, cada vez te pareces mais com o teu pai, e como ele, não sairás nunca da cepa torta, e hoje quando estava a comer na mesa da cozinha e lhe ia contar o que pensava das fotografias, disse-me:
- Come e cala-te.
O meu tio gordo, irmão do meu pai, diz muitas vezes que nos temos de calar para podermos comer e dar de comer aos nossos. Também outro dia o meu pai disse que se não nos tivesse que dar de comer, a mim e à minha irmã, que as outras já comem sozinhas, lhes cantaria as quarenta. Tentei que o meu pai me dissesse mais sobre os quarenta, mas ele disse-me que um dia quando eu fosse grande iria perceber, porque as crianças não têm entendimento para números tão grandes, eu apesar de tudo, descobri que há uma relação entre as palavras e os alimentos e quando na mesa da cozinha insisti com a minha mãe que o euro que o senhor fotógrafo este ano leva a mais a cada menino, que não é nada, assim como o euro do senhor Costa amigo do meu pai leva aos turistas, multiplicado por mais de mil meninos e meninas que tem o agrupamento, dava para pagar as fotografias dos meninos sem dinheiro, pois os senhores professores vão ter as fotografias de borla. Aí sim, a minha mãe zangou-se mesmo e já com a voz muito alta ainda conseguiu gritar:
- Cala-te, já te disse e come Clara (chamou-me Clara e não Clarinha).
Eu então calei-me e comi tudo, não fosse por causa das palavras, conseguir fazer desaparecer da mesa a tortilha de batata.

CLARINHA

PS 
Esta redacção (com dois cç de propósito e para aborrecer), foi vítima de tentativa de censura por parte do meu pai, que me disse que as fotografias dos professores não tinham calendário. Embora saiba que não têm calendário pois ganham o mesmo que há uma data de anos atrás, esta tentativa foi inadmissível.

Clarinha.           


lunes, 2 de octubre de 2017

O QUE FOSTE LÁ FAZER? - Excerto da chegada..





(…)
Se os dragões existissem, diria que um, enorme, gigante mesmo, boca e narinas dilatadas, vivia sobre o monte Ramelau, e que àquela hora, sempre a mesma em que chegava um avião, tentava mandar para trás quem se atrevia a invadir a sua ilha, com enormes baforadas de hálito quente.
Esta foi a primeira sensação que Carlos Novais teve quando baixou as escadas íngremes encostadas ao avião acabado de chegar.
Juntou-se ao grupo de colegas que embarcaram nesta aventura e se iam reunindo na pista.
Olharam uns para os outros e tardou que alguém mais afoito, rompesse o silêncio húmido e abafado e dissesse: - Uma foto companheiros, ânimo, chegámos a Timor.
Saíram sorrisos como abraços em grupo para a câmara.
Tinham deixado Portugal dia 19 e chegado a Timor-Leste às 13.45 (hora local) do dia 23 de Maio.
Engoliram horas.
Noites e dias estavam às avessas como estavam os corpos e os pensamentos.
Saíram juntos do aeroporto.
Lá fora aguardavam-nos outros colegas que já viviam essa experiência há mais tempo.
Para além dos amigos que alguns lá tinham, Novais tinha o abraço da Maria e do Alberto, esperavam-nos também as coordenadoras gerais do projeto, a Coordenadora Portuguesa e a Timorense e com elas, os treze coordenadores das treze escolas, uma por distrito, nesta teia organizada para reiniciar o acesso à Língua Portuguesa e que, funcionava como os tentáculos de um polvo, cuja cabeça bicéfala estava em Dili.
Cada escola tinha uma carrinha com motorista e os professores foram distribuídos por elas e levados para alojamentos provisórios na capital.
Carlos Novais, um dos quatro homens que chegaram, foi levado para um hotel, de onde se via o mar, esse seu mar que tanto lhe seria companheiro durante a sua estadia na Ilha.
As colegas, ficaram em casas, uma zona fechada chamada Vila Verde e que Carlos Novais não recorda bem.
Recorda-se, isso sim do seu hotel.
Novo Horizonte, porque os horizontes podem ser novos, entre o centro de Dili e a praia da Areia Branca.
Até chegar ali, tinha feito uma curva nas condições que subiam e baixavam consoante as escalas.
Partira do seu distrito às seis horas da manhã de dia dezanove, e a partir daí, tinha tocado movimentos em Lisboa, Madrid, Doha e Bali.
Em Doha sentiu o primeiro rugir da diferença, com mulheres apenas com olhos e homens todos de branco.
Em Bali, respirou a Ásia.
Ficou num hotel majestoso e sentiu o poder do dólar.
Pagou com eles as refeições, onde as rupias, apesar de muitas para valerem mais, continuam a ser pobres envergonhadas de pouco valor.
Uma refeição no hotel andava pelos quatro dólares.
Carlos Novais comparou mentalmente com o euro... mas isto seriam, ora bem, o quê? Só? Três euros e vinte, menos de um maço de cigarros? Um hotel de luxo destes?... Não conseguiu deixar de pensar que a Europa não ia por bom caminho.
Timor, tem a Austrália como guia e a Austrália, tem como rainha, a mais antiga monarquia europeia, consciente disso, tenta manter laços com os países vizinhos, mesmo com a sua velha inimiga Indonésia e agarra-se à CPLP para manter a sua identidade histórica.
Mas regressemos à primeira noite com oito horas de diferença de Lisboa, agora, ou nove, quando Lisboa anda ao sabor da mudança dos ponteiros, um passo para o lado, outro para o outro, numa valsa dançada pela luz.
Carlos Novais, chega ao hotel Novo Horizonte, dão-lhe um quarto, uma chave e um código de internet.
Coloca as duas malas e o saco de mão no chão, tira o portátil, liga-o e começa a chamar a família.
Tinham-se passado tantas coisas novas em tão pouco tempo que lhe parecia ter saído de casa há uma eternidade.
Como sempre, o melhor tinha deixado lá e não se referia só à família e aos amigos, trouxe o seu telefone velhinho, o computador sem autonomia de bateria, roupa q.b. como o sal, nem a viola, nada, o que cozinhasse na sua vida a partir desse momento, seria com os seus recursos e com os ingredientes de lá.
Não se preocupou por isso com os vinte e sete quilos de limite de bagagem, a dor de cabeça das companheiras.
Ele e só ele estavam ali, nessa primeira noite, e o computador sem câmara, só podia escrever, não podia ver ninguém:
- Sou eu !!
-Papá, Papá!
- Então como estão?
- Vimos a tua viagem pela Net, seguimos a rota do avião.
Modernices destes tempos, uma das que Carlos Novais sabia ter como deficiência.
- Quem está aí?
- Todas!!
E estavam, mulher e filhas, as pequenas e as maiores que foram apoiar este momento que também para elas não deveria estar a ser fácil.
- Não morri, caramba. Só saí de casa por uns tempos.
Carlos Novais tentava inventar coisas para lhes dizer, a cabeça estava branca como as vestes dos homens de Doha.
- Tu estás bem?
- Na maior!!
Nessa altura e enquanto escrevia, chorava, e ainda bem que o não viam para evitar o gozo das filhas, “andas muito chorão” e andava.
Antes de ir, chorava por tudo e por nada, não era berraria, não pensem, era assim, comovia-se e pronto.
Comovia-se com tudo, com as palavras que ouvia, com os livros que lia, sobretudo se falassem de crianças ou de velhos, mas reconhecia que ultimamente a coisa se tinha complicado e já torcia o beiço, com um filme, com a televisão e até com as telenovelas que dizia não ver, mas que espreitava.
- Andas aí?
- Sim, estou.
- Então já viste algum crocodilo?
A mulher de Carlos, culpada com a amiga Lurdes com quem aprendia receitas novas, do seu elevado peso que o fez não ter cinto suficiente no último voo entre Bali e Timor escreveu:
- Que comeste?
- Coisas do avião.
Carlos, ao olhar para os seus cento e trinta e oito quilos e lembrando-se do pormenor de no voo que o deixou em Dili não ter tido cinto suficiente para o apertar e proteger, acrescentou:
- Olha amor, estou entregue a mim mesmo. Estou em Timor-Leste, a dezassete mil quilómetros de casa onde aterrei sem cinto de segurança.
Mal sabia Carlos Novais que muitas outras vezes iria sentir a falta desse cinto.
-Então? Então? Carlos estás aí?
Não tinha ficado sem Net, conforme lhes foi dito durante as conversas preliminares com o ministério, foi sem luz e só três horas depois conseguiu ligar de novo o computador onde uma fileira de preocupações estava escrita em monólogo:
- Carlos estás bem?
- Carlos porque não escreves?
- Passa-se alguma coisa?
Carlos respondeu de imediato:
- Está tudo bem, fiquei sem luz.
Em desabafo em tom depreciativo, a mulher escreveu:
- Pronto, já estás em Timor…
Carlos esperou um pouco e respondeu:
- O problema não é de Timor, é ainda de Portugal, onde com os roubos nos ordenados, os congelamentos de salários e tudo aquilo que sabes na pele, não dá hipóteses a que um professor possa ter um computador em condições, que não tenha que estar ligado à luz, por velho e muito uso ao seu serviço, tenha ainda que sair do país que é seu… e, caramba!!!
Judite, esposa:
- Não te metas em política Carlos, dá-me tanto medo que sejas assim.
Para Carlos Novais, a conversa estava terminada, não sabia era como o fazer.
Irritava-o a passividade dos portugueses, os medos, as permissões, a última greve de professores em que em todo o agrupamento de escolas a que pertencia, só ele como um tonto perdeu o dia de trabalho, surpreendido por todos os colegas que se manifestavam contra a política desgraçada do governo se terem perfilado religiosamente na escola, como cordeiros silenciosos.
A diretora pela manhã telefonou-lhe:
- Olha, as auxiliares fazem greve, não vai haver aulas, anda que não perdes o dia.
Não queria acreditar no que ouvia, montarem-se sobre as pobres auxiliares educativas que ganhavam quinhentos euros por mês.
Tinha mesmo que sair, para longe, nada fazia sentido, o país estava falso, vivendo de expedientes.
Lembra-se de ter chegado à escola no outro dia e dizer às colegas:
- A partir de hoje falem comigo de novelas, do festival da canção, da Bárbara Guimarães e das nódoas negras, mas não se atrevam a dizer mal da escola, do ministro ou do governo, que eu não discuto mais esse tema convosco.
Decidiu nesse dia colocar mar e terra sobre ele e o país.
- Olha estão a chamar-nos para jantar.
Não estavam.
- Está bem, quando voltas a falar?
- Não sei, quando puder.
- E como sei quando podes?
- Dou-te um toque de telemóvel. Não atendas que deve ser caro e vai para o computador.
- Adeus amor.
- Adeus Papá.
- Papá beijinho para ti.
- Papá compra-me coisinhas.
- PAI, PAI.
- Papá, foi a pequenina que escreveu PAI, eu ajudo a cuidar das minhas irmãs.
Carlos Novais contou as despedidas:
- Eh! Falta uma.
- Sim, a Nevita, ela também te manda um beijo. Só vem amanhã.
Carlos Novais desligou o computador, abriu as malas, tirou uns calções, uma camisola e roupa interior.
Completamente suado, sentiu a água fria do chuveiro como bênção. 
Limpou-se.
Sentiu-se húmido, incómodo, e deu-se conta que estava suado outra vez.
Entrou novamente no chuveiro.
Saiu e meteu-se debaixo do ar condicionado.
Foi assim que Carlos Novais apanhou a primeira constipação na Ásia.
(...)


In O Que Foste lá Fazer?
... em construção...