sábado, 18 de agosto de 2018

" O QUE FOSTE LÁ FAZER?" ( Livro em elaboração sobre um cooperante alentejano de Timor-Leste / Reedição de um pequeno excerto do Capítulo I )


  

Capítulo 1

Ficaram em baixo, mãos no alto acenando e reprimindo o choro. É a última imagem que Carlos Novais recorda da família.
                                       (...)
Levantou-se e entrou numa casa de banho minúscula, inventada para caber ali. Sentou-se apertado na sanita e ficou, olhar na portinha, mesmo na frente, sozinho, meio perdido nos balanços.

Carregou no que julgava ser o autoclismo e caiu-lhe na frente uma mesa de mudar fraldas. 

Não deveria ser aquele o botão.

Fechou-a.

Olhou para o lado e viu-se gigante num espelho de lavatório que o surpreendeu pela proximidade.

Que fazes tu aqui?

Começou a rir à gargalhada.

De repente parou. 

Encostou as duas mãos ao espelho ficando a imagem no meio, como um abraço limitado por incompleto.

Uma tristeza apertou-lhe o peito, com dentes que mordiam, por dentro.

Não conteve o choro alto que se misturava com o forte ruído de fundo.

Só nesse instante se deu conta, que tinha sobrevoado o Egipto e rumava a Timor-Leste a oito mil pés de altitude.

Bateram à porta, disseram-lhe em inglês que havia turbulência e tinha que sair.

Abriu a portinha estreita e a hospedeira, habituada tanto a lágrimas como a risos, mandou-o sentar e apertar o cinto. 

Acompanhou-o ao lugar, confirmou se o cinto estava bem colocado, e tocou-lhe o ombro.

Aquele toque, sentiu-o como uma carícia de toda a gente que amava e tinha deixado, a caminho do desconhecido.

(...)

In O Que Foste lá Fazer?
... em construção...

viernes, 17 de agosto de 2018

" O QUE FOSTE LÁ FAZER?" ( Livro em elaboração sobre um cooperante alentejano de Timor-Leste / Reedição de um pequeno excerto do VIII Capítulo)


  

Capítulo 8

(…)

As cadeiras de bambu têm sobre elas almofadas compradas perto. 

Vendem-se na plantação de casitas de artesanato ao lado das gigantes bananeiras de fruto pequeno e doce que aproveitam os passantes, ou passeantes que param, frente à fortaleza portuguesa, canhões enferrujados virados para o vasto e ritmado azul.

O mar, esse mar imenso, arrastava-se até às ilhas indonésias que se avistavam e mudava de cor, azul petróleo, álcool ou céu, às vezes verde, tons escuros, raiados pelo branco das ondas baixas mas fortes, como os homens, embrulhando-se cadenciadamente nas pedras soltas da praia de areia negra mas suave, como os cabelos das crianças, mexendo-se na insegurança dos corais cortantes, cores vivas e abrigo de peixes pintados de arco-íris, como os “tais” coloridos das mulheres da ilha.

Do lado de cá do baile do mar com a praia, antes das casitas, atravessa-se a estrada, passa-se a fortaleza, a montanha sobe sem alcatrão e visita o café, a canela e o ananás, que o Avô Serra mete na mesa, servido de histórias e de palavras de tempo, que confundem o homem velho e sábio, com a história de Timor, o homem com raiz portuguesa que chegou há muito e ficou, como o crocodilo da lenda.

Carlos Novais tinha ido de Liquiçá a Maubara, numa microlete que mandou parar e que não gritava “Dili, Dili, Dili” mas “Bara, Bara, Bara”, pequenina, peluches cobrindo o tablier tapando o vidro da frente, já só meio, pelo autocolante do Barcelona que cobria a metade superior e rivalizava com um Cristiano Ronaldo pintado nos laterais exteriores.

Porta aberta com dois rapagões de bronze, cabelos atados e chinelos, meio dentro meio fora, pendurados, porque dentro iam senhoras tímidas, peles sofridas pelo sol e trabalho, dentes vermelhos da última masca, “tais” sujos de pó, mas pés com asseio, unhas cortadas e bicos de galinhas que espreitavam por baixo dos assentos.

“Bara, Bara, Bara” e parou como um regaço fresco na estrada quente.

Carlos entrou e com ele o colega com quem tinha combinado sair, romper a clausura da ilha em que sentia a sua escola e respirar, outro ar, longe das obras poeirentas que atravessavam a localidade onde estava, desde que o avião o deixou naquela aventura, e só regressaria para o levar, com os reis magos, pelo natal, para poder estar a horas no presépio da sua casa.

Tinha Maumeta, o suco onde morava, praia também, baleias à vista algumas vezes, golfinhos quase sempre, crocodilos não se pensava nisso, mas estava muito próximo da escola onde estava há pouco mais de um mês, a gosto quando o trabalho era a gosto, forçado quando lhe começaram a forçar o gosto.

Mesmo o amor passa a desamor quando obrigado sem obrigado, e não precisava que lhe agradecessem, bastava que o deixassem fazer o que sabia, aliás, julgo que a única coisa que julgava saber fazer, ser professor, dar e receber todos os dias.

Despistar nortes, emprestar rumos e receber outros saberes, emprestar uma bússola, falar da estrela polar e receber, nem que fosse um sinal de fumo ou de bandeiras, compensada com a visão do cruzeiro do sul.

Afecto só sentia o de alunos, pais e funcionários, porque os nortes que eram dados por quem levava o leme, afastava a nau da terra, no convencimento de que os instrumentos de orientação de bordo, porque importados, eram seguros, infalíveis mesmo, e o pior, inquestionáveis, e se falhavam as velas pelo óbvio, tudo a remar, transformando a nau em galé.

Ambos estavam a precisar de sentir a parte de fora, aquela outra vida que não parava, diferente, desconhecida para eles, misteriosa, feiticeira, como alguém lhe chamara.

Saíram assim para a parte de fora da galé, sem tambores, e soube-lhes bem o ar, o mar e as gentes que falavam de outras coisas que nunca tinham ouvido, de outra forma, línguas que nunca tinham escutado, de outras maneiras de sentir, formulários que tinham necessidade de preencher sem ser os outros, aqueles que faziam cumprindo, e a que nem sequer, se atreviam a perguntar para que serviam?

Talvez agora, não repetissem aqueles coelhinhos de uma Páscoa, celebrada ali de outra forma, feitos de embalagens vazias de iogurte e de saberes de rua, importados para uma escola de um país, onde os coelhos são tão conhecidos como os pinguins em África. 

Claro que se tinham que misturar, de conhecer cheiros e risos e descobrirem que a lua ali não é mentirosa, porque naquela tarde a viram em forma de barco e na anterior de fatia de melão, quais quartos crescentes e minguantes? Qual quê?

E as fichas? A praga das fichas? Com feiras e carrosséis, meninos loiros e algodão doce nas mãos? E os exames? Fechados e dignos, desenhados em segredo por adultos especialistas para terem um resultado de espionagem secreta para saber o que os meninos não sabem em vez de os estimularem pelo que aprenderam? Demasiado fechados, policiados, ritualistas.

- Estamos a falar de crianças Carlos?

- Pois, o problema é esse, é que estamos a falar de crianças.

Estava decidido, tinham que começar a sair!

A estrada de Liquiçá para Maubara é uma língua recente, salpicada de animais que dão cor ao alcatrão novo como o novo país, animais que estavam antes das máquinas lhes tirarem o espaço e agora, que as máquinas partiram, o reocuparam, e usam-no, com tempo, com todo o tempo do dia e da noite.

- Olha Carlos, a Lagoa.

Ά esquerda, uma manta líquida, espelho de uma família de pelicanos que se duplicavam no reflexo da água, limpa hoje, outrora manchada de vermelho, que a metralha castigava com a vida, um povo que queria ser país.

_ É por isso que se chama Lagoa Vermelha?

O silêncio respondeu que sim, o espelho de água reflectiu a paz, e o voo dos pelicanos mostrou um país.

Maubara apareceu de repente, com as suas casotas de artesanato, a fortaleza de canhões enferrujados apontando para o mar, hoje sem medo do que as ondas lhes trazem.

microlete parou, Carlos perguntou a que horas havia uma de regresso, em português, nada, em inglês, igual, gestos, dedo indicador apontando o relógio, mão aberta para dizer cinco horas, arranhou tétum, também não.

O timorense pequenino mostrou os dentes brancos num sorriso de entendimento, sim, disse, Carlos Novais mão aberta e dedos esticados, cinco horas, ele respondeu sim de novo, e tornou a responder sim a tudo, sempre com um sorriso de que finalmente entendera.

Gustavo, olhar de observador soltou, parece que percebeu, vem às cinco.

Carlos Novais fez-lhe adeus, o timorense também e a microlete envolta em fumo de escape voltou para trás.

Missionariamente (o adjectivo existe porque o criei na liberdade que a escrita me dá para inventar) Carlos comentou: Acabamos sempre por nos entender - e ficou a olhar o mar.

A tarde passou, cinco, cinco e meia, seis horas e Gustavo na estrada suspirou com ironia: Acabamos sempre por nos entender – Carlos não respondeu, apenas pensava que a noite estava a chegar e tinham que regressar.

- Vem aí uma Toyota de caixa aberta, nova, aposto que tem ar condicionado.

Nasceu a esperança e fizeram sinal para que parasse, ao longe, bem antes de estar junto deles.

- Eh pá, espera, não a mandes parar, porra, vem carregada de freiras!

Era tarde por um lado, mas por outro parecia que estava a abrandar.

E abrandou. 

E parou, não por eles, mas porque três homens carregados com um enorme cacho de bananas também lhes fez sinal.

- Para as meninas do orfanato.

Começaram a atar o cacho pendurado na traseira.

Carlos Novais contou sete freiras na parte cabinada e cinco, bem mais novas, juvenis até, na parte aberta da carrinha.

- Vamos lá? 

- Não temos nada a perder.

Aproximaram-se da madre e perguntaram se podiam ir com elas para Liquiçá.

Desconfiadas, dois homens, um corpulento, o outro barbudo, a sorte parecia perdida quando uma delas com sotaque espanhol disse:

_ Está cheio!

Carlos Novais puxou dos galões de homem sério, casado, pai de filhos, professor, honesto, incapaz de uma má palavra, muito menos de um mau gesto.

_ A irmã é espanhola? A minha esposa também, vem a Timor em Agosto…

Milagre.

A sua ordem também era, iam receber a visita de uma sua superiora, que bom a mulher do Carlos ser espanhola…

Aproveitando a embalagem Gustavo disse “espanhola e professora, até podia ensinar castelhano enquanto aqui estiver, de forma voluntária, às meninas do orfanato, ou às irmãs que quiserem”. 

Carlos olhou para ele, que nem tão pouco a conhecia, mas com a noite a cair, confirmou, que sim, poderia fazê-lo e também chinês e grego e latim, por favor, que os tirassem dali.

_ Têm que ir atrás, com os mantimentos.

_ Não faz mal, muito obrigado (lembrou-se que eram freiras) Deus vos pague.

Gustavo, ágil, saltou para a caixa, já Carlos Novais teve que ser puxado, julga mesmo que também empurrado, pelos três homens que tinham acabado de atar as bananas.

Deu-se conta que estava dentro quando caiu redondo e com estrondo no meio dos sacos de batatas, hortaliças, duas galinhas, um cabrito de patas atadas com arame e ele ali, agora sentado, cabelos ao vento, com as noviças rindo do espectáculo que se lhes oferecia.

A Toyota avançou, as freiras mais velhas na cabina, atrás na caixa, Carlos, Gustavo, e as freiras novinhas que riam, com as mãos na boca, e falavam tétum entre elas entremeado com gargalhadas, que tudo indicava, seriam de gozo perante aqueles malaes, que se tinham junto aos mantimentos.

Carlos Novais tentou colocar ordem na viagem e perguntou:

_ Vamos cantar?

_ Sim, Sim…

Puxou então das suas memórias religiosas, de quando se vestia de acólito, aos Domingos, na sua paróquia de S. Lourenço em Portalegre, as namoradas que não sabiam que eram, apenas desconfiavam, lindas e vestidas de novo, as gentes perfumadas esperando a saída para o encontro na porta da igreja, naquela missa do meio-dia que marcava a Cidade como um ritual.

O padre como rei, ele como pajem branco, levando-lhe as armas para aquele enorme campo de prisioneiros arrependidos, de joelhos, mãos postas, mas perdoados quarenta minutos depois para brilharem no alto da escadaria da igreja, naquele ritual de cores, de sorrisos de festa culminante de uma semana, passada no cinzentismo de sete dias iguais, onde nada acontecia.

Em segundos percebeu que nenhuma canção desse tempo, com cheiro a incenso, medo e bafio, era apropriado perante religiosas tão novas e lembrando-se de anos mais tarde, pensou em canções mais modernas, de quando um concílio lhe mudou os Domingos, arrumando os véus negros, o órgão queixoso que nem parecia instrumento de música e trazendo as guitarras (nada tenho contra os órgãos, o Toy Eustáquio que me perdoe, embora tenha optado pelas cordas nos últimos tempos), as palmas, os abraços e a festa, para dentro da mesma casa, com as velhas beatas a resmungar, mas cantando, tentando acompanhar as ordens do tempo, embora continuassem a cheirar a velas e a azeite e a imprimir lentidão nas melodias.

Foi então que Carlos Novais ganhou coragem e começou cheio de esperança, voz bem colocada, festivo, com palmas a acompanhar:

_ Tenho um Amigo que me ama, que me ama, que me ama…

Correu bem, todos cantaram, mas sem muita alegria.

Carlos começou logo outra:

_ Sou Pescador, do mar da Galileia, deixa o teu barco …

_ Não, Não, Não…

Ó diabo, se calhar a letra não era aquela, as freirinhas não gostavam e só entendeu o motivo, quando uma disse alto:

_ Júlio Iglésias, Júlio Iglésias… _ e as outras em coro e alvoroço:

_ Sim, Sim, Sim…

(…)

in O Que Foste lá Fazer? 
( em elaboração )

martes, 14 de agosto de 2018

" O QUE FOSTE LÁ FAZER?" ( Livro em elaboração sobre um cooperante alentejano de Timor-Leste / Reedição de um pequeno excerto do IV Capítulo)



(...)

A Salenda é para um europeu o mais parecido a um cachecol, para um timorense, um gesto de honra, um privilégio, algo que se usa ou dá em momentos especiais. 

Usá-lo é um grande abraço de todo um povo e de quem é merecedor e aceite pela sua cultura.

Os professores portugueses, ainda num misto de despertar e sonho, estavam formados em fila e um a um, iam recebendo a sua salenda das mãos das crianças de uma escola de Díli, que alinhadas, tinham organizado aquela primeira recepção de boas vindas.

O dragão, continuava a lançar as suas baforadas e a fila era demorada, porque cada professor, era tocado pela emoção quando se baixava, para que o menino ou a menina lhe colocasse no pescoço aquele sinal de boas vindas com o coração aberto.

Carlos Novais, lenço na mão pronto a ser espremido, avançava passo a passo debaixo de um sol intenso, passava-o pela testa, pelos braços nus e metia as mãos entre o corpo e a camisa para a desagarrar da pele que a aspirava com suor.

Incómodo.

Quem o mandara ir para aí com aquele peso? Sentia-se em sacrifício e pensava que o primeiro a fazer era vencer aquele clima que lhe diminuía o oxigénio que respirava.

Avançava, lento, a colega da frente abanava-se com o folheto do programa e ele ali em passinhos de vinte centímetros.

Faltam ainda dezasseis, pausa, passinho, quinze, pausa, passinho, catorze…

Faltavam exactamente três professores e quatro passinhos quando ouviu o que os meninos diziam quando colocavam a salenda nos ombros dos professores, baixinho, como que envergonhados:

- Bem-vindo a Timor-Leste.

Estava quase.

Dois, a seguir era ele e depois, fugir dali, procurar uma sombra, uma cerveja, fugir, desaparecer, esconder-se num sítio escuro, numa gruta onde fosse proibida a entrada do sol e talvez por isso se surpreendeu, que o sol, com um sorriso tímido, lhe tocasse o corpo e estivesse ali, à sua frente, na cara daquela menina que lhe colocava nos ombros a responsabilidade da sua salenda enquanto soltava a frase mágica:

- Bem-vindo a Timor-Leste.

Carlos Novais arrependeu-se de ter tentado fugir, puxou a menina, deu-lhe um beijinho, agradeceu e perguntou-lhe:

- Como te chamas?

A menina olhando para ele respondeu:

- Bem-vindo a Timor-Leste.

Novais pensou, coitadinha, não entendeu:

- Não é isso filha, quero saber o teu nome, o meu é Carlos e o teu?

- Bem-vindo a Timor-Leste.

- O teu nome, como te chamas?

- Bem-vindo a Timor-Leste.

A menina ficou apavorada perante aquela alteração do guião, isso não estava no papel, era meter a salenda e pronto, logo a ela lhe havia de ter calhado aquele professor gordo e chato que inventava coisas que não estavam escritas em lado nenhum.

 Desviou o olhar de surpresa, passou-o para os companheiros que com outras salendas nas mãos aguardavam os professores que transpiravam atrás daquele e repetiu, desta vez pausadamente para ver se aquele idiota percebia de vez:

- Bem-vindo (pausa) a Timor-Leste.

Carlos Novais sorriu:

- Eu entendi queridinha, só quero saber o teu nome - insistiu Carlos – o teu nome amiguinha…

Fixou-o.

Carlos sentiu que com os olhos lhe dizia “ Vai-te embora daqui pá! Desampara-me a loja! Olha o que me saiu na rifa! Então não querem ver este?” apesar de tudo dignamente dizia-lhe, agora de uma forma clara, sílaba acentuada e lisa:

- Bem-vindo a Timor-Leste!

Nesse mesmo instante, Carlos Novais afagou-lhe a cabeça, ajeitou a sua salenda e deu o lugar ao colega de trás.

A menina respirou aliviada.

Só aí se deu conta do peso enorme da responsabilidade que essa salenda lhe transmitia, a responsabilidade de fazer renascer a língua portuguesa, proibida durante uma geração, perseguida à ponta de catana e metralha, sofrimento e luto, tirada à força da história, e esse ano, o ano em que recebera a sua salenda, era aquele em que se celebravam os quinhentos anos da chegada dos primeiros portugueses a Timor.

Sentindo o enorme trabalho que tinha pela frente, Carlos Novais juntou-se aos companheiros, anichados debaixo do alpendre, assistindo à dança da cultura timorense que outras crianças tinham preparado para eles.

Carlos Novais sentiu-se pela primeira vez na sua vida a fazer parte da história, que parecia que o tinha posto na fila de propósito, pedindo-lhe ajuda e colocando também nas suas mãos uma pequena parte, para que pudesse continuar a ser contada com orgulho, o orgulho de ser língua, afago de pátrias, espalhadas pelos mares, pelos ventos e pelas estrelas.

Carlos Novais fechou os olhos e no meio daquele momento tão nobre, ficou surpreendido consigo, lenço ensopado nas mãos, pois quando os abriu, em vez de pensar em hinos e bandeiras, estátuas, monumentos e glórias tão apropriadas aos egrégios avós dos seus pensamentos, apenas lhe veio à mente “tenho que emagrecer”.

Por Deus, que falta de oportunidade histórica para uma frase a ser registada nos anais.

Sorriu, só esperava que o destino histórico se não tivesse enganado ao colocá-lo naquela fila.

“Tenho que emagrecer”, que pobreza de pensamento e pior se sentiu quando o segundo, a outra oportunidade que podia ainda ter aproveitado foi:

- Tenho fome.

Deu-se conta de o ter dito em voz alta, porque uma senhora ao seu lado, pertencente à organização lhe respondeu:

- Isto está quase a acabar.


(...)

in O que foste lá fazer?
... em construção...         

domingo, 12 de agosto de 2018

" O QUE FOSTE LÁ FAZER?" ( Livro em elaboração sobre um cooperante alentejano de Timor-Leste / Reedição de um pequeno excerto do II Capítulo)




(…)

Se os dragões existissem, diria que um, enorme, gigante mesmo, boca e narinas dilatadas, vivia sobre o monte Ramelau, e que àquela hora, sempre a mesma em que chegava um avião, tentava mandar para trás quem se atrevia a invadir a sua ilha, com enormes baforadas de hálito quente.
Esta foi a primeira sensação que Carlos Novais teve quando baixou as escadas íngremes encostadas ao avião acabado de chegar.
Juntou-se ao grupo de colegas que embarcaram nesta aventura e se iam reunindo na pista.
Olharam uns para os outros e tardou que alguém mais afoito, rompesse o silêncio húmido e abafado e dissesse: - Uma foto companheiros, ânimo, chegámos a Timor.
Saíram sorrisos como abraços em grupo para a câmara.
Tinham deixado Portugal dia 19 e chegado a Timor-Leste às 13.45 (hora local) do dia 23 de Maio.
Engoliram horas.
Noites e dias estavam às avessas como estavam os corpos e os pensamentos.
Saíram juntos do aeroporto.
Lá fora aguardavam-nos outros colegas que já viviam essa experiência há mais tempo.
Para além dos amigos que alguns lá tinham, Novais tinha o abraço da Maria e do Alberto, esperavam-nos também as coordenadoras gerais do projeto, a Coordenadora Portuguesa e a Timorense e com elas, os treze coordenadores das treze escolas, uma por distrito, nesta teia organizada para reiniciar o acesso à Língua Portuguesa e que, funcionava como os tentáculos de um polvo, cuja cabeça bicéfala estava em Dili.
Cada escola tinha uma carrinha com motorista e os professores foram distribuídos por elas e levados para alojamentos provisórios na capital.
Carlos Novais, um dos quatro homens que chegaram, foi levado para um hotel, de onde se via o mar, esse seu mar que tanto lhe seria companheiro durante a sua estadia na Ilha.
As colegas, ficaram em casas, uma zona fechada chamada Vila Verde e que Carlos Novais não recorda bem.
Recorda-se, isso sim do seu hotel.
Novo Horizonte, porque os horizontes podem ser novos, entre o centro de Dili e a praia da Areia Branca.
Até chegar ali, tinha feito uma curva nas condições que subiam e baixavam consoante as escalas.
Partira do seu distrito às seis horas da manhã de dia dezanove, e a partir daí, tinha tocado movimentos em Lisboa, Madrid, Doha e Bali.
Em Doha sentiu o primeiro rugir da diferença, com mulheres apenas com olhos e homens todos de branco.
Em Bali, respirou a Ásia.
Ficou num hotel majestoso e sentiu o poder do dólar.
Pagou com eles as refeições, onde as rupias, apesar de muitas para valerem mais, continuam a ser pobres envergonhadas de pouco valor.
Uma refeição no hotel andava pelos quatro dólares.
Carlos Novais comparou mentalmente com o euro... mas isto seriam, ora bem, o quê? Só? Três euros e vinte, menos de um maço de cigarros? Um hotel de luxo destes?... Não conseguiu deixar de pensar que a Europa não ia por bom caminho.
Timor, tem a Austrália como guia e a Austrália, tem como rainha, a mais antiga monarquia europeia, consciente disso, tenta manter laços com os países vizinhos, mesmo com a sua velha inimiga Indonésia e agarra-se à CPLP para manter a sua identidade histórica.
Mas regressemos à primeira noite com oito horas de diferença de Lisboa, agora, ou nove, quando Lisboa anda ao sabor da mudança dos ponteiros, um passo para o lado, outro para o outro, numa valsa dançada pela luz.
Carlos Novais, chega ao hotel Novo Horizonte, dão-lhe um quarto, uma chave e um código de internet.
Coloca as duas malas e o saco de mão no chão, tira o portátil, liga-o e começa a chamar a família.
Tinham-se passado tantas coisas novas em tão pouco tempo que lhe parecia ter saído de casa há uma eternidade.
Como sempre, o melhor tinha deixado lá e não se referia só à família e aos amigos, trouxe o seu telefone velhinho, o computador sem autonomia de bateria, roupa q.b. como o sal, nem a viola, nada, o que cozinhasse na sua vida a partir desse momento, seria com os seus recursos e com os ingredientes de lá.
Não se preocupou por isso com os vinte e sete quilos de limite de bagagem, a dor de cabeça das companheiras.
Ele e só ele estavam ali, nessa primeira noite, e o computador sem câmara, só podia escrever, não podia ver ninguém:
- Sou eu !!
-Papá, Papá!
- Então como estão?
- Vimos a tua viagem pela Net, seguimos a rota do avião.
Modernices destes tempos, uma das que Carlos Novais sabia ter como deficiência.
- Quem está aí?
- Todas!!
E estavam, mulher e filhas, as pequenas e as maiores que foram apoiar este momento que também para elas não deveria estar a ser fácil.
- Não morri, caramba. Só saí de casa por uns tempos.
Carlos Novais tentava inventar coisas para lhes dizer, a cabeça estava branca como as vestes dos homens de Doha.
- Tu estás bem?
- Na maior!!
Nessa altura e enquanto escrevia, chorava, e ainda bem que o não viam para evitar o gozo das filhas, “andas muito chorão” e andava.
Antes de ir, chorava por tudo e por nada, não era berraria, não pensem, era assim, comovia-se e pronto.
Comovia-se com tudo, com as palavras que ouvia, com os livros que lia, sobretudo se falassem de crianças ou de velhos, mas reconhecia que ultimamente a coisa se tinha complicado e já torcia o beiço, com um filme, com a televisão e até com as telenovelas que dizia não ver, mas que espreitava.
- Andas aí?
- Sim, estou.
- Então já viste algum crocodilo?
A mulher de Carlos, culpada com a amiga Lurdes com quem aprendia receitas novas, do seu elevado peso que o fez não ter cinto suficiente no último voo entre Bali e Timor escreveu:
- Que comeste?
- Coisas do avião.
Carlos, ao olhar para os seus cento e trinta e oito quilos e lembrando-se do pormenor de no voo que o deixou em Dili não ter tido cinto suficiente para o apertar e proteger, acrescentou:
- Olha amor, estou entregue a mim mesmo. Estou em Timor-Leste, a dezassete mil quilómetros de casa onde aterrei sem cinto de segurança.
Mal sabia Carlos Novais que muitas outras vezes iria sentir a falta desse cinto.
-Então? Então? Carlos estás aí?
Não tinha ficado sem Net, conforme lhes foi dito durante as conversas preliminares com o ministério, foi sem luz e só três horas depois conseguiu ligar de novo o computador onde uma fileira de preocupações estava escrita em monólogo:
- Carlos estás bem?
- Carlos porque não escreves?
- Passa-se alguma coisa?
Carlos respondeu de imediato:
- Está tudo bem, fiquei sem luz.
Em desabafo em tom depreciativo, a mulher escreveu:
- Pronto, já estás em Timor…
Carlos esperou um pouco e respondeu:
- O problema não é de Timor, é ainda de Portugal, onde com os roubos nos ordenados, os congelamentos de salários e tudo aquilo que sabes na pele, não dá hipóteses a que um professor possa ter um computador em condições, que não tenha que estar ligado à luz, por velho e muito uso ao seu serviço, tenha ainda que sair do país que é seu… e, caramba!!!
Judite, esposa:
- Não te metas em política Carlos, dá-me tanto medo que sejas assim.
Para Carlos Novais, a conversa estava terminada, não sabia era como o fazer.
Irritava-o a passividade dos portugueses, os medos, as permissões, a última greve de professores em que em todo o agrupamento de escolas a que pertencia, só ele como um tonto perdeu o dia de trabalho, surpreendido por todos os colegas que se manifestavam contra a política desgraçada do governo se terem perfilado religiosamente na escola, como cordeiros silenciosos.
A diretora pela manhã telefonou-lhe:
- Olha, as auxiliares fazem greve, não vai haver aulas, anda que não perdes o dia.
Não queria acreditar no que ouvia, montarem-se sobre as pobres auxiliares educativas que ganhavam quinhentos euros por mês.
Tinha mesmo que sair, para longe, nada fazia sentido, o país estava falso, vivendo de expedientes.
Lembra-se de ter chegado à escola no outro dia e dizer às colegas:
- A partir de hoje falem comigo de novelas, do festival da canção, da Bárbara Guimarães e das nódoas negras, mas não se atrevam a dizer mal da escola, do ministro ou do governo, que eu não discuto mais esse tema convosco.
Decidiu nesse dia colocar mar e terra sobre ele e o país.
- Olha estão a chamar-nos para jantar.
Não estavam.
- Está bem, quando voltas a falar?
- Não sei, quando puder.
- E como sei quando podes?
- Dou-te um toque de telemóvel. Não atendas que deve ser caro e vai para o computador.
- Adeus amor.
- Adeus Papá.
- Papá beijinho para ti.
- Papá compra-me coisinhas.
- PAI, PAI.
- Papá, foi a pequenina que escreveu PAI, eu ajudo a cuidar das minhas irmãs.
Carlos Novais contou as despedidas:
- Eh! Falta uma.
- Sim, a Nevita, ela também te manda um beijo. Só vem amanhã.
Carlos Novais desligou o computador, abriu as malas, tirou uns calções, uma camisola e roupa interior.
Completamente suado, sentiu a água fria do chuveiro como bênção. 
Limpou-se.
Sentiu-se húmido, incómodo, e deu-se conta que estava suado outra vez.
Entrou novamente no chuveiro.
Saiu e meteu-se debaixo do ar condicionado.
Foi assim que Carlos Novais apanhou a primeira constipação na Ásia.
(...)


In O Que Foste lá Fazer?
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