30. Barba e cabelo
- Já vi que com o
Senhor Professor, o prometido é devido. Então não trouxe o menino?
- Esse, é a mãe que gosta de lhe
cortar o cabelo.
- Ora muito bem, vamos lá então a isso. Pode pendurar o casaquinho, sentar-se nesta cadeira que me acompanha há cinquenta anos. Vou só vestir a bata, pois o Sr. Professor é hoje o meu primeiro cliente, apesar das horas.
Não se sentava numa cadeira
daquelas há muitos anos, quando ia cortar o cabelo com o pai ao primo João
Lagem, barbeiro, no Arco de Santo António, de um lado uma padaria que fazia
boleimas, em frente uma adega, um pouco mais ao lado da adega, a Polícia e o
Governo Civil. O primo metia uma tábua nos braços da cadeira onde o pai o
sentava e depois aquele castigo de estar quieto, enquanto os cabelos lhe caiam
para um gigantesco “babete” que lhe cobria o corpo até às pernas nuas que lhe
saiam dos calções.
O pai aproveitava para engraxar
os sapatos, num engraxador mudo, que falava com grunhidos e gestos e que João
Lagem entendia e traduzia aos clientes.
Estar naquela cadeira era estar
sentado na infância.
O barbeiro Durão apareceu, bata
curta azul clara, abriu como capote de toureiro uma capa branca e fina que
abriu com movimento e lhe envolveu o corpo até ao pescoço. Depois com
alfinetes de dama, apertou-lha ao pescoço.
- Ora bem, curto, muito curto ou
normal?
- Para já normal, mas depois de
me ver, logo lhe direi se corta ou não mais.
- Como o Senhor Professor quiser.
Atanásio era por enquanto o
único professor em Aldeia da Pena, embora trabalhasse em Vila Alva. Tentou
relaxar, descansar e desfrutar frente ao espelho nicado nas pontas e onde se
via, com Durão por trás, pelos lados, passando-lhe os dedos pelo cabelo,
segurando-os aos molhinhos enquanto os cortava. A medida dos seus dedos
grossos, eram a régua de corte do seu corte normal.
Mas se Atanásio esperava
relaxar, enganou-se, aquele não era o lugar próprio, pois Durão falava sem
parar, de política, de futebol, do Presidente da Câmara, da Presidente da Junta
e perguntava como um verdadeiro inquisidor ao cliente:
- Então já chegaram os
elevadores?
- Quantos filhos tem?
- O que faz a sua senhora?
- A casa foi cara?
- Teve empréstimo bancário?
- Como é que Matilde o convenceu
a vir?
Meu Deus – pensava Rui Atanásio –
o homem não se cala, mas começou a sentir algo de verdade, o fazer parte de um
grupo onde as ruas não eram as partes de fora das casas, mas os seus quintais,
o prolongamento do seu espaço familiar. Começava a fazer parte de uma
comunidade.
A barbearia do Sr. Durão estava toda forrada com retratos em molduras iguais, lado a lado. Começou a contá-las, pelo menos as da parede da frente, pois se movia um pouco a cabeça para o lado, logo a mão pesada do Sr. Durão lhe era colocada sobre ela, rodando-a para a frente, pois estava trabalhando e falar não o distraia das suas responsabilidades profissionais, agora o movimento dos clientes, já o prejudicavam.
Retomava a contagem dos retratos, sem mais nada para fazer,
da parede da frente, seis ao alto vezes dez na vertical seriam sessenta, mais
cinco sobre o espelho, bem só nessa parede havia sessenta e cinco rostos a
preto e branco. Ainda via pelo espelho outros na parede traseira, mas a mão do
Sr. Durão não lhe permitia mexer-se muito.
- Quem é esta gente, Sr. Durão?
Amigos?
- Clientes mortos, que ando nisto
há muitos anos, e quando se vão peço sempre um retrato à família.
O Sr. Durão pegou num espelho
pequeno e colocou-o por detrás da sua cabeça:
- Que lhe parece? Está bem atrás?
- Atrás e à frente, Sr. Durão.
Não necessita cortar mais.
Borrifou-lhe o cabelo com água e
então, com o pente a duas mãos, definiu um risco e separou-o milimetricamente.
- Se quiser, pode lavá-lo. Vi aí
uma bacia e um chuveiro.
- Só tenho água fria, o professor
depois lava-o em casa.
Baixou sem avisar a alavanca da
cadeira e Atanásio ficou praticamente deitado.
- Vamos à barba, mas primeiro
deixe-me tirar-lhe os óculos.
Retirou-lhos e colocou-os na
prateleira dos utensílios.
Pegou numa baciazinha onde
colocou um pó mágico, e com o pincel da barba, agitou-o e disse:
- Bem, vamos começar – e
ensaboou-o, de orelha a orelha, quase até aos olhos, a boca também, que com um
lencinho, limpou depois.
O Professor gostava de ver a
sua cara, mas deitado, nem se atrevia a mexer-se, quando o viu a passar a
navalha, pr'a lá, pr'a cá, com força, várias vezes,
afiando-a no couro.
- Afia e limpa, aqui não há
micróbio que resista, como dizia o outro – e com uma ponta a segurar o aparelho
e a outra ponta encostada ao lado do peito, continuou o pr'a lá,
pr'a cá, cada vez com mais força e rapidez, daquela navalha que o
professor olhava pelo canto do olho a ser afiada, ao mesmo tempo que pensava –
valha-me Deus!
- Bem, vamos começar a deixar
essa cara como o rabo de um bebé.
Com uma mão, empurrou-lhe a testa
e fixou-a sem a deixar mexer, depois com o pescoço esticado e amovível o
cliente sentiu-se como uma galinha pronta a ser degolada, ao mesmo tempo que o
Mestre Durão lhe começou a raspar o pescoço de baixo para cima, e diga-se
de verdade, que com suavidade, talvez do seu esforço de nem se atrever a
respirar, fazendo-o só, quando o barbeiro depois de uma passagem lhe aliviava a
testa passando a mão pelo sítio raspado, para sentir se havia algo que não
fosse a pele, continuando depois, mão novamente na testa e nova passagem de uma
forma mecanizada e lenta.
- A goela já está. Agora a sua
pele é dura e é melhor deixá-la ensaboada, pouco tempo, olhe, o suficiente para
eu tratar da minha diabetes.
O Sr. Durão saiu até à porta do
lado da rua, a taberna de Avelino.
Não sei o tempo certo, talvez
entre os cinco e os dez minutos, era demasiado, para estar ali preso,
deitado numa cadeira cujas molas estavam de acordo com a idade que tinha.
Foi aí que entrou um cliente:
- Não está o mestre Durão?
- Saiu, falou-me de diabetes...
- Ah! Ele tem que comer várias
vezes por dia, vou ter com ele ao Avelino – saiu.
Com o tempo a correr, o professor
Atanásio começou a ficar preocupado, teria o Sr. Durão algum problema? E ele
ali deitado?
Levantou-se, sem tirar a toalha fina, que o enrolava e apressadamente entrou na porta ao lado, ainda com a cara
ensaboada.
- Está tudo bem?
- Ó professor, desculpe, tenho
que comer a esta hora.
Estava realmente a comer uma
maçã com um copo de vinho na frente.
- Já conhece o Ferreira?
- Sim, entrou na loja e perguntou
por si, falou-me da diabetes e pensei, pela demora, que poderia haver algum
problema.
- Pois a culpa do atraso é
dele, pagou mais um copo e tive que descascar outra maçã.
Avelino estava incrédulo.
- Durão, deixaste o primeiro
cliente do teu primeiro dia de recomeço a secar? - depois virando-se para o
professor com a cara branca de sabão e toalha pendurada - Ó Sr. Professor, desculpe, eu
julguei que estivesse sem clientes, não me disse que o senhor estava lá, e
nesse estado.
Meio zangado, retirou o copo do
balcão.
- Este bebes depois, eu guardo,
que vergonha Durão.
Ferreira interferiu:
- Olha, guarda também o meu.
Saíram os três da taberna e voltaram ao trabalho. Novamente a bata bem apertada que um dos alfinetes estava aberto, com o professor de pé.
Depois
subiu a cadeira.
- Faça o favor de se sentar e
desculpe.
Atanásio sentou-se e tudo
voltou ao princípio, novo sabão, um pouco menos na garganta, e a conversa,
que o homem tinha dificuldade em trabalhar calado e agora com a ajuda do
Ferreira:
- O professor está aí para as
curvas. Olhe, eu não seria capaz de me levantar da cadeira deitado, isto da
idade...
- Nem tu nem eu – disse Durão
enquanto lhe colocou novamente a mão na testa e começou a raspar da orelha para
baixo.
O Ferreira largou a revista com
meses, e espreitou a rua:
- Ena pá, grande carapau!
Não resistiu Durão em vir
espreitar à porta também, mas veio logo para dentro, virando com a mão na testa
a cabeça do professor para o outro lado:
- Não tens vergonha, Ferreira? É
a mulher do Júlio do pomar!
O Professor, achou por bem,
desmanchar o seu silêncio:
- Sabem que um dos grandes
pintores portugueses tem o nome de Júlio Pomar?
- Ó professor – comentou Durão – nós de pinturas sabemos pouco ou nada. Olhe, a Matilde, Presidente da Junta...mandou entregar tintas para reabrir a barbearia e ainda aí estão - apontou com a navalha.
- Pois olha que tu, deverias
saber, que todos os dias mexias no pincel, e pelo que vejo recomeçaste
novamente a usá-lo.
Entraram
na brejeirice quando Durão respondeu:
- Pois tu há muito que não usas o
teu.
- Ah, pois não, mas olha que dos
três que aqui estamos, só o professor pela idade dá uso ao seu.
- Cala-te Ferreira, o meu pincel
é tão usado como este da barba. Nada tem com a idade.
- Cão ladrador pouco mordedor –
respondeu o Ferreira.
Durão não quis adiantar
conversas:
- Já está, professor, vou
levantar a cadeira para se poder ver ao espelho. Toque na cara.
Rui Atanásio tocou a face e
estava lisa, tão lisa como nunca a tinha sentido. Olhou-se ao espelho,
enquanto Durão lhe dava nova penteadela.
- Quer laca?
- Não, obrigado.
- Mas a cara ainda não terminou.
Tem aqui um pontinho que precisa da minha pedra mágica - e passou-lhe com uma
pequena pedra no local do pequenito corte - Agora, sim, está pronto. Álcool ou
sublimado?
O professor sabia o que era álcool,
que sinceramente não queria usar, o sublimado não, pelo que respondeu:
- Sublimado.
Durão meteu nas mãos um líquido e
massajou-lhe a cara. Atanásio pensou “porra que arde!”.
- Já está.
Tirou-lhe a bata e já de pé,
escovou-lhe o pescoço puxando-lhe pela gola. Depois com outra escova, esta de
fato, passou-lhe pelos ombros, para que não levasse dali nenhum cabelo.
- Os óculos Sr. Durão?
- Aqui estão.
- Quando lhe devo?
- O copo que não bebemos e o
Avelino guardou. Venha daí.
Colocou na porta um cartão branco
dizendo “Fechado” e que do outro lado tinha escrito “Aberto (estou no
Avelino)”. Foi este lado o que escolheu para meter virado para a rua.
Na taberna de Avelino, já havia
mais gente, e ele, que gostava da forma como estava a ser aceite, deixou
seguir em palavras o tempo que foi passando, pelo que novas palavras mais
grossas, as da mulher o esperavam certamente em casa.
- Tenho que ir amigos, tenho a
patroa à espera.
Pediu a conta fácil de fazer.
- O professor já pagou duas
rodadas. Não tem de pagar mais nada.
Ali encomendava-se por “rodadas”
e dos que estavam todos iam pagando uma.
Não se lembrava já noutro dia
quanto tinha pago, nem quanto tinha bebido, mas sentia-se bem, como se se
sentisse parte de uma comunidade familiar.
Lembrou-se no entanto de ter dito
ao Sr. Durão:
- Mestre, para a próxima trago o
meu “aftershave”.
- Traga as chaves que quiser que até lhas posso guardar aqui, a casa é sua.
Agora, tinha a mulher que o
surpreendeu depois da explicação, a verdade.
- Fizeste bem, Rui, pelo menos
hoje não falaste de escola.
(...)
In A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
...em fase de trabalho de oficina...
Nota:
A Publicar em (Fevereiro/Março) por Filigrana Editora.
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