lunes, 3 de marzo de 2014

A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL (... terceiro cheirinho...)


(...)

21.
 A Fronteira




Na
cabana do pastor preparavam-se para partir.
- Não deixem nascer o dia, terão que sair daqui. Os carabineiros aparecem quando menos se esperam.
Os cinco homens partiram juntos.
- Sempre para Oeste.
-Subiremos primeiro para Norte e viraremos para Oeste mais acima que aqui a fronteira está muito batida.
Acender o fósforo para alumiar a bússola era um perigo necessário. Faziam-no com os corpos encostados num pequeno círculo e tentavam inventar os azimutes.
Salustiano  Pérez Román deu-se conta de ter deixado o casaco na choupana do pastor. Meteu as mãos nas mangas da camisa para evitar o frio da manhã. Tinha deixado de chover, mas os campos estavam molhados, charqueados e escuros, embora a pouco e pouco fosse clareando mesmo antes de nascer o sol. Tocou o bolso das calças e sentiu as cinco pesetas, as segundas que lhe deram com a sua liberdade.
Apenas se deram conta de entrar em Portugal quando uma patrulha da Guarda Republicana os deteve. Ficaram encolhidos como crianças, mas os guardas tranquilizaram-nos:_ Estão  em território português. Não tenham medo. Venham connosco. Que bela merda que vocês arranjaram daquele lado...
Andaram a pé, cinco, dez, quinze quilómetros e entraram numa cidade fortificada que viam pela primeira vez. Tinha um castelo, dois fortes e um aqueduto enorme, tudo de pé, sem a marca de uma bomba, nem sequer de uma rajada, nem mesmo um tiro, embora se ouvisse com espaços cada vez mais reduzidos o troar dos canhðes do outro lado. Elvas era um remoinho de gente onde a língua castelhana soava nas ruas pelo grande número de refugiados. Rotos  e mal vestidos, empobrecidos de urgência, gente que tinha perdido tudo, bens e família tragados pela guerra. Pediam pelas ruas e as pessoas davam o que tinham. Junto ao Forte da Graça, muitas mulheres se prostituíam por pão e leite. Havia crianças abandonadas desde a Rua de Alcamim até às Portas de Olivença, pedindo comida.
Salazar tentava evitar os conflitos com Franco, facilitando-lhe a vida, não só por temor, aquele velho medo de que Castela viesse pela nossa independência, mas também por ideologia, onde a Mocidade Portuguesa se saudava com o braço esticado. Por isso era um aliado não declarado. O povo não, esse dava cobertura a quem chegava, ajudava como podia e sofria pela noite quando os clarões dos canhðes se avistavam do outro lado da fronteira como uma grande tempestade no horizonte.
Havia também negociantes, de metais, estanho e urânio que através de Espanha encaminhavam para a Alemanha ou para Inglaterra, outros que faziam disparar o preço da batata, da manteiga, do açúcar e outros, que negociavam sem escrúpulos, tendo já sido embebidos pela total falta de respeito pelos valores da vida humana.
Duzentos escudos custava uma noite numa cave com transporte incluído, de madrugada, para Lisboa. Os companheiros de Salustiano Pérez Román aderiram e dormiram toda a noite, abrigados e sem medos, sonhando com Lisboa e com os barcos que saiam para países onde irmãos se não matavam entre si. Apenas com cinco pesetas no bolso, o sargento desiludido, dormiu ao relento, no portal da Câmara Municipal. O seu destino era Portalegre, concretamente a Ribeira de Nisa, onde o esperava a mulher, Patrocínio, com dupla nacionalidade como ele, grávida de três meses, refugiada graças a uma ordem do cônsul argentino, em casa de familiares, esperando que um dia, lhe aparecesse o marido, mesmo que numa manhã de nevoeiro.
Sentava-se ao fim do dia num tronco de madeira, a barriga cheia apoiada nos joelhos, olhando para o Oriente e o mesmo fazia pela manhã, antes de ajudar a família a tratar do gado e a domesticar o campo.

(...)

 Tinha nome de carne de fumeiro, mas toda a gente lhe chamava Morcela, alguns por Senhor Morcela, desconhecendo que era alcunha.
Morcela tinha comprado a camioneta ao rei do ferro velho de Portalegre, o Senhor Joaquim Antunes, homem que fez fortuna com as velharias, entre elas estanho e chumbo, de todas as origens, mesmo de urnas levantadas em cemitérios, às vezes com algum dente ou cabelo, tudo derretido por igual na fundição clandestina do Seixal a quem o Sr. Joaquim vendia a sucata.
A camioneta tinha sido dada de baixa pelo exército português, praticamente sem andar, mas foi reparada pelas mãos de Morcela, que a levou para Elvas e fez dela modo de vida.
Eram cinco horas da manhã e estava já parada à porta da cave onde dormiam a sono solto, trinta homens em paz.
Os duzentos escudos, tinham já sido pagos a Morcela, que lhe dera as tarimbas, as mantas e o descanso de uma noite tranquila.
Começou a acordá-los às cinco e trinta.
- Vamos, temos muitos quilómetros para andar.
Alegres se levantaram os trinta refugiados, para o seu último destino, Lisboa, a porta da vastidão dos oceanos e caminhos para outros mundos.
Com dois bancos corridos na caixa traseira, os homens sentaram-se frente a frente. Morcela passou-lhe por cima o toldo de lona e fechou-o com cordel.
Quando o ruidoso motor começou a funcionar, os homens sentiram o prazer da liberdade, todos aplaudiram quando o camião se pôs em marcha.
Maus amortecedores, faziam os homens saltar dos assentos entre risos de carrossel.
Sentiam as curvas apertadas que os faziam tombar de lado a lado e transformavam o desconforto em festa.
Não tinham passado quarenta minutos, o camião parou.
Ouviram vozes e abriu-se a lona.
Estavam dentro da praça de touros de Badajoz onde foram fuzilados trinta minutos depois.
Morcela puxou do bloco e como um merceeiro em final de dia, apurou o ganho. Meteu-se no camião, para regressar a Elvas, e rebatendo a consciência com seis contos no bolso, pensou enquanto metia a primeira e fazia o ponto de embraiagem:

- Bem, trinta vermelhos a menos.



In A Mulher do Sargento Espanhol
Aragonez Marques
(A publicar em breve)


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