(...)
Quando as freiras das Criaditas de Santa Zita
a encaminharam para trabalhar na quinta de uma ilustre família, ela sabia que
era a forma de sair daquele cheiro de velas e incenso, daquele bafio em que a
tinham educado para servir homens e mulheres diferentes, não como ela que
acreditava profundamente que o seu lugar, no mundo que Deus lhe dera para
viver, era aquele, de fita e avental branco, de costuras e de cozinhas, de
fazer as camas a quem nelas gozou, e de ser pecado, até mesmo imaginar ser
condenável, perante Deus e os homens, aquela sede imensa de que lhe tocassem o
corpo, rebelde e espigado em caldeirada hormonal, de quem quer viver, rir,
gozar e ser feliz.
Chegou à herdade com as melhores referências
das Criaditas de Santa Zita.
As heranças eram (e ainda são), as correias
de transmissão das divisões das classes, e no Alentejo, as herdades as suas
raízes. Filho de herdeiro, herdeiro nascia, outros, sem nada para herdar,
restava-lhes a possibilidade de servir os herdeiros que lhe couberam na
herança, não escrita por notário, mas pelo berço.
Assim, sempre assim, até hoje.
A senhora recebeu-a na sala enquanto tomava
chá, nessa sala que ela limparia duas vezes por dia, e da qual estaria pendente
numa linha recta, a sua, entre a sala e a cozinha.
- Mostra-me as mãos!
Esperança esticou-as.
- Vira-as!
Esperança obedeceu.
- As unhas sempre cortadas, as mãos limpas,
entendido?
Esperança baixou os olhos quando a mulher de
Romão Papafina lhe ajeitou a touca e lhe abotoou o decote:
- Assim. Botões fechados, que isto é uma casa
de respeito – bateu as palmas como quem enxota as galinhas – vamos, vamos, para
a cozinha, há muito para fazer e o senhor está a chegar.
O quarto de Esperança, ficava no primeiro
andar, pequenino, cama de palha e lençóis de pano.
Desconhecia que a mãe, aquela mulher de que se
não lembrava, mas que todos lhe diziam ser bonita, como ela, que a abandonou um
dia, logo após nascer, para a salvar, pois não resistiria à longa viagem, à
longa fuga para a Argentina, às incertezas e obstáculos que se adivinhavam,
nunca a tinha esquecido. Viveu a infância com os tios, que tudo lhe contaram do
pouco que sabiam, mas que vítimas, da malvada tuberculose que andava solta pelo
país, a tia, e do álcool, o tio, acabaram por se ver obrigados a entregar a
menina ao asilo das raparigas que funcionava na Corredora de cima, frente ao
jardim municipal.
Daí até Santa Zita, a escola de hotelaria da
época, foi um passo, entre missas e terços.
Quando chegou à herdade de Romão Papafina,
nunca poderia imaginar que a mãe, quinze anos antes, fizera parte daquela casa,
sendo rainha do quarto grande e do coração do patrão.
Não o sabia ela, nem a senhora virtuosa que
lhe mandara mostrar as mãos, nem Romão Papafina, que apenas viu nela, uma bela
moçoila, pronta para ser devoradamente submissa.
(...)
In A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL
Aragonez Marques
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