jueves, 24 de diciembre de 2015

A Mulher do Sargento Espanhol - 1. A Mota de António Fagundes Fonseca


 Para todos os amigos/as, leitores e leitoras 
o primeiro capítulo da 
Mulher do Sargento Espanhol
para todos vós. 
Em breve, muito em breve, 
o livro estará nas bancas.
 Esperemos que seja do vosso agrado. 
Um abraço e
 BOAS FESTAS.

1. A Mota de António Fagundes Fonseca

António Carlos Fagundes Fonseca tinha uma oficina de bicicletas numa aldeia com mil e duzentos habitantes. Mudava correntes, afinava travões e remendava câmaras de ar, e às vezes o ar faltava-lhe no passar dos dias iguais entre encher pneus e limpar raios.
Na cidade estava a mota.
Tinha-a visto no feriado do 1º de Dezembro em que saíra, aproveitando o descanso da oficina fechada, para visitar a prima Rita Fonseca da Silva que tinha sido internada no hospital regional, com um fartão de azeitonas pisadas, compradas na feira de Borba, que comera numa só refeição.
 A hora da visita, das quinze às dezasseis, dera-lhe tempo suficiente para meter o nariz e o olho no que a cidade grande, borbulhenta de diferença, tinha para mostrar.
E mostrou.
Na montra, entre capacetes integrais e por integrar, estava ela, farol polido, motor prateado, assentos de napa negra e sonhos de viagem,  caminhos sem limite.
Um só dono, vende-se, bom preço, foi o que o prendeu definitivamente ao sonho que o levou a tomar a decisão.
Vou comprá-la.
Exatamente oito semanas depois, após dias sobre dias de remendos sobre remendos, de afinação sobre afinação e de uma bicicleta com rodinhas, nova, para a neta do farmacêutico e uma de cesta atrás para o filho do Zé da Costa, que casou com a Irene do café depois de meses de sofrimento com a barriga inchada, que a mãe, a Josefa, julgava serem gases, prontamente desmentidos pelo médico Pereira, que acertou tanto no diagnóstico como no sexo do bébé.
Uma menina.
Fabricada detrás do coreto da banda, num dos bailes de verão em que o Trio Odemira cantava e tocava no palco de madeira emprestado pelo Presidente da Junta da Freguesia vizinha, cujas festas eram só em setembro.
Colocou-lhe as notas uma a uma nas mãos, contando em voz alta e passando o dedo pela língua, evitando as colagens. Mil e duzentos escudos, um por cada habitante da aldeia, mais sessenta e quatro do capacete e já agora, porque não, mais cinquenta e oito pelas luvas e um casacão de couro com fecho e uma caveira estampada nas costas.
Na Previdente S.A., onde tinha o seguro das ferramentas e do lixo da oficina, não fosse o diabo tecê-las, pagou por seis meses adiantado o seguro obrigatório contra terceiros.
Agora sim, primeira, segunda, terceira... a estrada era sua, o vento na sua cara e a aldeia esperando que chegasse.
A não ser na oficina, sentado ou com o joelho no chão, nunca mais ninguém o viu sem ser em cima da mota, embora, verdade seja dita, todos passaram a vê-lo a diário, para baixo e para cima, e também porque o seu espaço crescera, de aldeia em aldeia, de segunda a domingo.
Mariana Esteves, era a filha mais velha do Esteves da Taberna, onde se batiam as pedras do dominó com força na mesa e se escrevia a lápis os pontos do rebenta, que originava o pagamento de mais uma rodada de imperiais.
A taberna ficava na margem direita da estrada que ligava as duas principais cidades do distrito e atravessava como um rio de alcatrão a aldeia, em frente ao Café Costa, a quem o Costa, após a morte do sogro, mudou o nome e transformou também em restaurante, na outra margem.
De um lado, o café estava preparado para os forasteiros, que paravam e seguiam, do outro, a taberna era para os da terra, que paravam e ficavam sempre.

Ao contrário do Café Costa, de pintura nova e cara lavada, desde que morrera o marido da Josefa e o genro assumira o mando, a tasca do Esteves estava exatamente igual ao tempo do avô de Mariana.
Salitre na parede, balcão de pedra mármore, rádio de caixa de madeira com a águia de barro do Benfica em cima, e até a gaiola do canário era a mesma e o amarelo das penas do pássaro também, substituído por outro de belo canto quando a velhice deixava o anterior esticado, entre os bebedouros e por baixo do poleiro, deixando-se de ouvir cantar.
A taberna do Esteves tinha um quintal atrás onde estava a retrete e por cima, um primeiro andar onde vivia a Glorieta Malpica com as três filhas. Dois quartos, uma sala, cozinha e uma janela, onde Mariana Esteves olhava a estrada numa cadeira de palhinha que tinha ao lado as lãs e as agulhas.
Nenhuma das três filhas do Esteves e da Glorieta se parecia com os pais, e ainda bem. Glorieta engordava no primeiro andar há mais de quarenta anos e há muito que deixara de fazer as omeletas de espargos, as tortilhas de batata e os tortulhos, com molho ou com ovos, os peixinhos da horta, a dobrada com feijão, rissóis, croquetes e empadas, que antigamente trazia para baixo para petisco dos clientes. Levava o tempo sentada numa cadeira de balouço reforçada com almofadas soltas, que a custo, ajeitava às costas e à cabeça. Pensava muito no primo Júlio, que um dia, num sorteio das festas da Senhora da Penha, teve a imensa ventura de ganhar o prémio principal. Uma vitela oferecida pelo lavrador Papafina de Jesus, dono do montado e empregador de meia aldeia a prazos, conforme as culturas do ano. O primo Júlio, feliz com a sua sorte levou a vitelinha para casa ao colo e depois de comprar na farmácia umas luvas de borracha, cortou-lhes um dos dedos que atarraxou numa garrafa vazia de anis escarchado, que enchia de leite em pó e metia na boca da bezerra.
Foi rápido assim passar do leite à farinha Falcão, fabricada em Ponte de Sôr e comprada em sacos de vinte e cinco quilos, no armazém do Procópio, que vendia também o granulado dos coelhos, o farelo das galinhas e na altura das matanças, exercia de magarefe.
Quando a porta do armazém estava fechada, o Procópio pendurava num prego o letreiro que lhe escrevera a pedido, o professor primário Fernando Mata e que dizia, FUI CAPAR, pois o magarefe era também capador, levando depois os troféus à taberna do Esteves, onde eram fatiados e metidos em vinha d’ alhos para em quarenta e oito horas mudarem o nome de testículos para túberos, uma especialidade do Esteves.
Quando o primo Júlio tinha já gasto sete sacas de farinha, achou por bem trazer a vaca para o quintal, mas era tarde, e teve que chamar o Matias Pedreiro, e ordenar o escavacar da porta para o bicho poder sair. Era por isso que Glorieta Malpica Esteves, dia sim, dia não, se lembrava do primo e olhava a porta da sala, adivinhando o dia em que não poderia mais sonhar com a rua, a não ser que tivesse que chamar o Matias e a picareta. Já a irmã Rosa, que Deus tem, quando se finou, teve que ser baixa da sua casa, com cordas atadas a um lençol de flanela, pela varanda.
As mulheres da sua família sofriam do mal da angústia, que as fazia a pouco e pouco limitar os movimentos e terminar, como ela agora, sentada todo o dia, esperando que lhe levassem a comida à boca e o pior, a obrigar a filha a meter-lhe a arrastadeira fria, de metal, debaixo do corpo, e despejá-la depois na retrete do quintal.
A arrastadeira tinha sido roubada pela prima Julieta, quando esteve de acompanhante do pai no hospital distrital, antes que este fugisse daí para a aldeia dizendo que estar tanto tempo deitado não era para um homem como ele, ainda por cima deitado sem companhia.
A arrastadeira tinha já sido rodada várias vezes pelos membros familiares necessitados, como as Sagradas Famílias de casa em casa, estando agora ao serviço de Glorieta Malpica Esteves.
As filhas, Mariana e as irmãs, eram bonitas e por enquanto tão desengonçadas como cobiçadas, mais parecidas à tia Rita Gil que contrariada pelo pai em amores desejados, fugira com o namorado, hoje marido, a salto para terras de França, onde se dizia que tinham nascido o amor e as oportunidades, com trovadores nas cortes que reinventaram a poesia destroçando muitos casamentos impostos pelas famílias nobres.
 A tia Rita Gil, vinha todos os anos no verão com o marido e os filhos, fumava Porto, e durante o mês de agosto, havia uma mulher que fumava na aldeia.
Foi num desses verões em que Rita Gil estava sentada na esplanada do Café Costa, cheio de folgazões de fora, que Mariana se deu conta, depois dum berro do pai do fundo das escadas - é p’ra hoje? - que estava a desperdiçar a sua vida.
Travessa de batatas com carne na mão desceu as escadas, e o Esteves, sem um agradecimento ou um sorriso, tirou-lha e meteu-a sobre o balcão.
- Para cima. Vamos. Isto não é lugar para mulheres!
 Subiu as escadas, olhou a mãe Glorieta atafulhada nas almofadas, e da janela, olhou a tia, perna cruzada e sorriso na boca.
As irmãs mais novas andavam na rua. A ela lhe cabia em sorte, de primeira a nascer, substituir a mãe.
Naquele olhar comparador entre a cadeira de balouço da mãe e as suas pernas elefantadas e a mesa da tia, com as suas pernas torneadas e sem meias de vidro, sentiu perfeitamente que preferia a esplanada.

Estrada abaixo, estrada acima, António Fagundes Fonseca cavalgava a mota, sem o casaco da caveira, que o calor apertava, sem capacete que o fazia suar empapando-lhe os cabelos fortes, e apenas com a camisola interior branca de alças, de onde um tufo de pêlos negros atracavam a medalhinha da Virgem das Dores e a cruz do Senhor Jesus da Piedade, que usava sempre preso ao fio de ouro que colocara no pescoço há muitos anos e nunca mais tirara, fosse inverno ou verão. Na mão esquerda o relógio de pulso que o pai lhe dera e sobrevivera, quando fez a quarta classe e se despediu para sempre da escola. Na direita, uma pulseira grossa de prata, com uma placa grande que dizia de um lado António Carlos e do outro, em números romanos, MCMLVII. Não os sabia ler. A numeração já a trazia quando a comprou em segunda mão e apenas mandou raspar a parte visível onde escreveu o seu nome, na ourivesaria do Cabecinha, a quem nunca tinha comprado nada embora vendesse tudo o que tinha. Mas de todos os adornos que usava como amuletos, o que mais sentia como proteção era o alfinete de dama, com muitas medalhinhas de prata, que usava na camisola interior no lado esquerdo, o lado do coração. Metera-lho a avó ainda criança, a mesma que nas noites das doenças infantis, da papeira às bexigas, que as teve todas, lhe metia nas costas papas de linhaça e ventosas como braços de polvo quente e lhe fazia cruzes no peito com azeite morno enquanto recitava ladainhas que já a sua avó lhe ensinara.
António Fagundes Fonseca olhava sempre a janela por cima da porta da taberna do Esteves.
Mariana passou a estar sempre visível por detrás da vidraça, pois conhecia o ronronar da mota muito mais agora que António a tinha afinado e posto a rodar em escape livre, depois de ter olhado ao mesmo tempo a cadeira de balouço da mãe e a esplanada, onde a tia Rita Gil estava sentada com um maço de Porto sobre a mesa.
Desde que tomara a decisão, passou a estar sempre por detrás dos vidros logo que ouvia o motor e atraindo, com arte sedutora de flor estática, foi conseguindo que António Fagundes Fonseca fosse cada vez mais reduzindo o circuito, até praticamente o ter encostado às boxes, que tinha definido entre o Café do Costa e a taberna do Esteves.
Parava no Costa, perna sobre a napa do assento e o Zé Ventoinha, empregado do Café, levava-lhe a Cuca espumosa que bebia ali, boca no copo, olho na janela, enquanto os rapazes mais novos o rodeavam vendo a mota, tocando-lhe e fazendo-lhe perguntas sobre velocidades e cilindradas.
Passar do Café Costa ao outro lado da estrada foi rápido e António Fagundes Fonseca, à falta do Ventoinha que lhe levava as cervejas, passou a contar com a simpatia do Esteves, largos momentos, cada vez maiores em que  conversavam a sério ou com risos, às vezes gargalhadas à porta da taberna onde colocava um banco de quatro patas e buraco no meio para meter o dedo, e alimentava a conversação com Fagundes Fonseca que não necessitava de banquinho de quatro patas e buraco no meio para levantar com o dedo, pois tinha a mota como assento, perna esquerda esticada no chão e a outra em descanso cobrindo-a e registando a possessão.
Passara assim Mariana a olhar para baixo, vendo-o de cima. Os tufos de pêlo que lhe rebentavam a camisola interior branca de alças, e aquele alçar de perna cobrindo os cinquenta centímetros cúbicos, dava-lhe calor, só arrefecendo com o respeito dos santinhos do fio de ouro de António Carlos, assim passou a chamar-lhe para si mesma, e as medalhinhas do alfinete de dama no lugar do coração.
Os olhos dele levantavam-lhe a cabeça de centauro motorizado e atravessavam a janela cravando-se nos dela.
Não estranhou assim, que o pai, no final do verão lhe dissesse que António Carlos Fagundes Fonseca lhe pedira autorização para passar a falar com a filha.
Encolheu os ombros, escondendo o interesse e foi assim que a janela passou a estar aberta pelas noites, ela com o corpo no peitoril deixando cair sorrisos, ele sentado e fumando, deixando quando partia, mota acelerada ao máximo em baile nupcial, o chão repleto de beatas, que o Esteves varria pelas manhãs sem um protesto.
Afinal, gostava do namorado da filha, e desejava que se arrumassem de vez. Trabalhador como era, seria mais um par de braços para ajudar na taberna.
Enganava-se redondamente o Esteves, porque Mariana queria o motorista e a mota não para ficar, mas para partir.
Oito meses depois, a tia Rita Gil e o marido estavam designados como padrinhos e revolteavam com Mariana os Preciados em Badajoz para comprar o vestido, os sapatos, o ramo e as ligas, que com sorte, no dia da boda seriam cortadas em tirinhas, sorteadas pelos convidados, o que sempre daria, pelo menos, para amortizar os sapatos.
Foi marcado o casamento para setembro.
Mariana sempre pensou em casar na Capela da Senhora da Penha em Portalegre, coisas de criança, com aquelas centenas de degraus de pedra, serra acima, entrando na capela revestida de azulejos, todos diferentes uns dos outros, naquele azul e branco típico da azulejaria portuguesa, mas dois problemas tornaram-no difícil, incompatível mesmo, com a Glorieta que saíria de casa numa cadeira de rodas emprestada pela Santa Casa da Misericórdia, mas não preparada para enfrentar os duzentos e pico degraus da capela e por outro lado, há muito tempo que aí se não celebrava nenhum casamento, devido à quantidade de viúvas que o povo atribuía a uma qualquer má sorte, não da Virgem mas da própria capela. A última viúva foi a Amália, que poucos meses depois de aí ter casado viu o marido morrer estupidamente com os dedos enfiados num casquilho de lâmpada do teto. Já antes a Balbina enviuvou quando o marido que usava um berbequim para furar a parede do quarto do filhote que dormia no barrigão da mulher, enganchou a broca no fio de ouro do pescoço fazendo-a girar na garganta em borbotões de sangue que o berbequim, por preguiça, estava no automático e com o martelar unido ao girar, que a parede era de pedra, como de pedra ficou a Balbina, viúva e com um rapagão na barriga para ser criado pelos avós. Isto diziam...
- Porra, nem penses!
Reagiu o Fagundes Fonseca, sentado na sua mota, onde as proximidades da boda tinham já trazido autorização para que Mariana baixasse da janela à porta. Agora, para além dos olhares, passaram também a intimidar com as mãos, até que a mota partia acelerada deixando para trás a porta que se fechava depois das beatas serem apanhadas do chão pela Mariana, que passou a substituir o pai nesse serviço.
- Casamos aqui que também há igreja!
 Foi assim que, no Domingo combinado, a aldeia encheu de flores o altar.
Rosa Benitez, casada com o Espanhol, tocava o órgão todos os domingos acompanhando o coro e naquele dia tinha como missão pisar as teclas até sair a marcha nupcial, que tocaria na entrada da noiva no templo, competindo com os sinos que tocariam também nessa hora, com os vinte escudos dados ao sacristão para puxar a corda.
Rosa, tinha ganho aquela paixão da música com o pai, cego, a quem ouvia desde muito pequena o som do acordeão, e a quem o marido tinha dado o desgosto de a emprenhar, ao ponto de não ter querido levar a filha pelo braço até ao altar.
Benitez, o Espanhol como era conhecido, era um especialista em despir sobreiros, agasalhados de cortiça farta de nove em nove anos ou não fosse Portugal o maior produtor nesse tempo. Ele era um espanhol que sempre falou um castelhano cerrado, nascido em La Nava de Santiago, na Extremadura, com xis, no outro lado do Guadiana. Tinha ido à aldeia, catorze anos atrás, não para emprenhar a Rosa sem a despir, mas para despir os sobreiros do Papafina de Jesus, o tal que dava trabalho a prazo a muitas bocas com fome.
Aos calores da Rosa, nem os santinhos impunham respeito, pelo que naquele dia, o Espanhol encostou o machado da cortiça e a Rosa à parede interior do palheiro do irmão do cego, onde dormia, por favor, junto das alfaias agrícolas. Só lhe levantou as saias uma vez, aquela, e Rosa permitiu que lhe baixasse os calores entre a novidade, o prazer e o medo. Uma só vez que lhes uniu o destino para sempre. Casaram em Portugal, Rosa de branco como as outras, apenas um ramo de jarros substituíam o ramo de flor de laranjeira, e apenas a falta do braço do pai naquele dia, ao contrário do seu braço que lhe era emprestado a diário para que ele se movesse tanto dentro como fora de casa, lhe tinha escurecido um pouco a felicidade. Mas se casaram em Portugal não foi por acaso, porque escuro, escuro mesmo, teria sido se tivessem casado em Espanha, onde as noivas que o faziam com vida dentro eram consideradas em pecado, ao ponto de apenas serem autorizadas as cerimónias, entrando de noite nas igrejas e vestidas de negro. As fotografias daqueles fatos de noiva pretos permaneciam escondidas pela vergonha que representavam e só hoje, cinquenta anos depois, são mostradas de forma normal a filhos e netos.
– Casarmos em Espanha, nunca - disse-lhe Benítez - enquanto houver tantos padres sentenciando ao céu ou ao inferno. Não quero que te sentenciem a ti. Não quero que te envergonhem. Casarás de branco. Casaremos aqui.
Benítez passara a gostar de Rosa muito para além das suas carnes e rubores. Pena, que passasse tanto tempo fora, estando onde havia trabalho.
Agora por exemplo, com a aldeia em festa pelo casamento de Mariana, não estava. Andava pela Roca de la Sierra, entre Badajoz e Cáceres, fazendo carvão. O tempo livre ocupava-o entre a choça redonda com telhado de vime onde dormia, junto dos fornos, e a taberna de Santiago Vadillo Carrasco, onde adormecia as saudades de Rosa com vinho rosado.
Quando o trabalho acabasse, regressaria ao que era e já sentia como a sua casa e o seu lugar, a oitenta e dois quilómetros, sempre de bicicleta, que António Carlos Fagundes Fonseca, lubrificaria na sua oficina até que outro trabalho lhe saísse de novo, perto ou longe.
Com Rosa tocando a marcha, o sacristão puxando a corda e António Carlos Fagundes Fonseca de pé, no altar junto ao padre, dentro do seu fato cinzento com riscas brancas e flor creme na lapela, Mariana entrou na igreja pelo braço do Esteves. Ao ver o noivo ao fundo, o homem para toda a sua vida, cavaleiro e príncipe, que a arrancara de casa, Mariana pensou ser mais baixo do que aparentava. Sempre em cima da mota, só agora lhe tirava as medidas e descontando o estrado, onde se encontrava com o padre, fazia contas, cujo produto lhe dava que era mais baixo do que ela, pelo menos vinte centímetros. Mas que importava se fora a ele que escolhera para o resto da sua vida? E continuava a andar  pelo braço do pai, debaixo do ruído do sino e do desafinar do órgão da Rosa, até ao altar.
António Carlos via-a aproximar-se e apenas jurava a si próprio que nada beberia naquele dia, desejando e quase lhe parecendo ser mentira que nessa noite a tivesse na sua cama, sua a cama e sua ela, para lhe fazer tudo quanto a sua cabeça tinha imaginado nos últimos meses.
Mariana, aceitas como esposo António... e tu António aceitas por esposa...sim, sim...na saúde e na doença até que a morte nos separe...sim, sim...para sempre...se há alguém que...silêncio, não havia ninguém......para sempre, na saúde, na doença, para sempre, para sempre, até que a morte nos separe...sim, sim...declara-vos marido e mulher.
Glorieta secava as lágrimas na cadeira de rodas, Esteves imaginava a segunda-feira, a filha a cozinhar, o genro com ele no balcão, a tia Rita Gil sorrindo, imaginando já o melhor que eles desconheciam, a Rosa recordando o seu já passado dia de branco, lindo, com Benítez que não estava, Júlio o primo da vitela, eterno solteirão, julgando que tal nunca seria possível com ele, Papafina de Jesus pensando no belo presente que iria oferecer aos noivos, o sacristão novamente puxando a corda do sino e até o Ventoinha, apenas sentia faltar-lhe uma namorada para um dia poder casar-se assim, tal como lhe faltara sempre pai e mãe, o que o transformava num membro mais dos órfãos que se fizeram a si mesmos.
António Carlos Fagundes Fonseca beijou finalmente a noiva, ambos fecharam os olhos.
Ela, sentindo o pecado de estar dentro da igreja, lábios colados imaginando como dentro de poucas horas o seu nariz, a língua e mesmo os dentes poderiam misturar-se naquele tufo de pêlos negros, seus agora, competindo com o Cristo da Piedade e a medalhinha da Senhora das Dores, vermelha, corada, de imaginar tudo isso dentro da igreja.
António Carlos Fagundes Fonseca, sentindo um aperto das calças abaixo do cinto, apenas pensava como resistir a não beber nada, nada mesmo, que lhe pudesse diminuir o desejo e a força que sentia enquanto a beijava e apertava pela primeira vez.
Despertaram com as palmas, muitas, que os convidados ruidosamente faziam ecoar, na altura do teto da igreja.
Cá fora, as crianças e a vizinhança preparavam o arroz, símbolo da fertilidade, para atirarem aos noivos na saída, desconhecendo que ambos não necessitariam de arroz nessa noite que se adivinhava e que ambos sabiam ir existir.
Já pelo braço do marido, começaram a andar pela coxia central até à porta da rua e foi então que Mariana se sentiu balouçar da esquerda para a direita e da direita para a esquerda a cada passo que dava com o seu António Carlos.
- Magoaste-te? Que tens na perna? Estás coxo.
O marido acenava aos convidados, feliz como o mais feliz dos mortais, com vinte centímetros a menos da mulherona que tinha jurado no altar ser sua para toda a vida.
- Que tens António? Porque coxeias? Caíste da mota? Que tens na perna? -  andava braço no dele passos bamboleantes de lado a lado - Estás coxo?
Foi então que António Carlos Fagundes Fonseca, sem deixar de saudar os presentes, braço no ar e sorriso de felicidade na boca, nos olhos, fazendo mesmo peito de peru vaidoso, pequenino e subido junto da mulher de carnes vivas que começaria a desfrutar nessa mesma noite, e até sempre, auto estima elevada ao quadrado, com o setenta vezes sete retratado pela Bíblia na paciência do perdão, lhe contestou:
- Não estou, sou. A perna direita tem menos doze centímetros que a esquerda. Já nasci assim.
Mariana, enquanto sorria aos convidados, ainda se atreveu baixinho:
- Nunca me disseste - ao que o marido lhe respondeu, cara no seu lado inverso, olhando e sorrindo para os convidados:
- Pensava que sabias, também... nunca me perguntaste!

Nunca mais falaram do tema, embora Mariana entendesse agora aquele centauro motorizado por quem apostara.

Quarenta e dois anos depois, Mariana gostava de contar esta história aos netos e enquanto os acariciava dizia-lhes sempre:
- Sem a mota do vosso avô, vocês não existiriam e a avó não era tão feliz por vos ter aqui, ao meu lado, tão bonitos. Sois a minha alegria.

A mota de António Carlos Fagundes Fonseca continuava na garagem, hoje já de coleção, com um plástico de pintura, desses muito grandes a protegê-la. Já não era necessária, embora ele sentisse que por respeito, deveria conservá-la.
Em alturas difíceis, em que o dinheiro lhes fazia falta e alguém lhes propunha a sua compra, olhavam um para o outro e num sorriso cúmplice, não eram necessárias palavras para que dissessem um a outro num só olhar:
- Que se venda tudo, se necessário, mas a mota, nunca!



 in A Mulher do Sargento Espanhol

jueves, 29 de octubre de 2015

A MENSAGEM




Lorena a Alicia são irmãs.

Lorena tem nove anos e gosta de escrever a Alicia tem cinco anos e gosta de pintar.

Naquele dia, estavam as duas no chão da sua casa em Portugal e enquanto Alicia pintava, Lorena olhava para o desenho de uma forma triste.

O pai das meninas era professor em Timor-Leste, a muitos quilómetros da sua casa.

Alicia pintava um desenho que tinha feito, onde estava o pai com muitos meninos timorenses a brincar com fantoches que tinham construído e cujas fotografias a mãe lhes tinha mostrado.

Lorena continuava a olhar o desenho da irmã e às tantas perguntou:

_ Posso escrever nele?

Agarrou a caneta que o pai deixara no escritório lá de casa e legendou completando o desenho de Alicia.

A mãe quando o viu, mandou-o logo ao pai que todas as noites, porque aí era de dia, falava pelo computador e mandava e recebia fotografias aliviando as saudades.

Quando o pai chegou a casa depois de um dia de muito calor e trabalho, viu o desenho de Alicia e a legenda de Lorena, e sentiu uma grande pena, de lhes não poder dar beijinhos.

O desenho tinha muitos meninos à volta de muitos fantoches coloridos e nele estava escrito:

“ Porque brincas com tantos meninos lá tão longe e não estás aqui a brincar connosco? ”

Nesse mesmo dia, o pai decidiu trazer toda a família para Timor, e numa mensagem curta deixou uma promessa:

“ Nunca mais nos vamos separar.”


                                                                               A.M.

martes, 6 de octubre de 2015

PEÇA DE TEATRO DE FANTOCHES PRODUZIDA EM TIMOR-LESTE PARA TODAS AS CRIANÇAS QUE QUISEREM BRINCAR COM ELA


NASCEMOS IGUAIS

Personagens: RUCA / BE / CAJÓ / MÃE RORRO / TIA TETE

RUCA- Olá, ando à procura da minha irmã gémea (finge que procura, nos cantos, atrás da cortina) BÉ!!! Alguém viu a Bé? (fala com o público) BÉ!!!!

(entra a Bé)

- Estou aqui, que barulheira é esta? Estou aqui.

RUCA- Onde estavas?

- Estava a lavar os pratos.

RUCA- Claro, muito bem, assim é que é, cumprindo o teu dever. Nasceste mulher tens que trabalhar, eu vou jogar à bola.

(Sai de cena a assobiar)

- E pronto, aí vai ele. Não concordo nada. É mesmo uma injustiça. Nascemos iguais. Eu levanto-me cedo para ir com a mãe buscar água, limpar a casa, olhar pelo meu irmão pequenino… e às vezes ainda lavo a roupa. O Ruca, só porque nasceu rapaz, levanta-se da cama e vai brincar com os amigos. Injusto, muito injusto. (fala com o público) É injusto, não é? Mais alto, não oiço nada. É injusto não é? Vou chamar o Ruca e dizer-lhe (chama o irmão) Ruca!!!Ruca!!! Onde é que ele anda? (procura)já ninguém sabe dele. Ruca!!!Ruca!!!

(aparece o Ruca)

RUCA- Estou aqui, já nem se pode brincar descansado. O que é que tu queres?

- O que eu quero é que logo ao jantar sejas tu a ajudar a mãe a lavar a loiça, enquanto eu vou regar as flores.

RUCA- És parva? Isso é trabalho de mulher, eu sou um rapaz!

- O quê? Os rapazes também podem lavar a loiça. Não são só as raparigas. Era o que faltava!

RUCA- O que é que estás para aí a dizer? Não nasceste rapariga? Não te queixes. Pois eu vou jogar à bola!

(Ruca sai a assobiar e Bé fica no palco)

- Como é que eu vou mudar estas cabeças velhas? (suspira)

(Fecha o pano)

II

MÃE RORRO- Olá, eu sou a Mãe da Bé e do Ruca. São gémeos, nasceram iguais, mas a Bé é uma refilona. Nunca sei onde ela está. BÉ! Bé!!

- Estou aqui minha mãe.

MÃE RORRO- Onde é que estavas? Há muita roupa para lavar, não penses que vais vadiar. Tu não és nenhum rapaz!

- Ser rapaz é que é bom. O Ruca não faz nada. É um preguiçoso.

MÃE RORRO- Caluda! O Ruca é um rapaz. Tem como dever ajudar o pai, limpar ervas, levar os animais a pastar, apanhar lenha…

- Mas eu também faço isso. Porque é que ele não pode fazer os meus trabalhos se eu faço os dele? Os trabalhos podem ser feitos por rapazes e raparigas. Trabalho é trabalho. Só isso.

MÃE RORRO- Não minha filha. A mulher cozinha, cose, está em casa e as filhas ajundam-na. Só assim é que um dia, poderás encontrar um bom rapaz que queira casar contigo.

- Bom rapaz? Que queira casar comigo? Pois eu não caso com preguiçosos! Quero estudar e ser uma boa aluna. Era o que faltava, levar uma vida a servir um homem…

(Bé, sai de cena, refilando)


MÃE RORRO - Esta minha filha tem razão. Estudando, a vida dela não será como a minha.

(Entra a Tia Tété)

TIA TETE- Ó mana, a menina tem razão e tu sabes. Porque não lhe dizes?

MÃE RORRO - Querida irmã, tenho medo, a tradição tem muita força e não quero que lhe aconteça nada de mal.

TIA TETE- De mal? Pior do que a vida que levamos? Os tempos são outros, os nossos filhos vão à escola e a escola é muito mais do que aprender a ler e a escrever. Sabes o que te digo? Deixa a garota em paz que ela já sabe mais do que nós as duas juntas. Vamos, vamos andar um pouco a pé e pelo caminho, falamos mais um bocadinho.

(Saem as duas e fecha o pano)

III

RUCA- Estou farto de tanto brincar, até estou aborrecido.

(Entra o amigo Cajó)

RUCA- Olha o Cajó, o menino moderno, onde vais?

CAJÓ- Fujo das minhas pretendentes.

RUCA- O quê? Eu não tenho nenhuma e tu foges das que tens? São muitas?

CAJÓ- Gostar só gosto de uma, mas as outras querem rapazes como eu para maridos. São meninas que estudaram. E gostam de como a minha mãe me educou. Eu sei fazer tudo.

RUCA- Tudo?! Tudo mesmo? Sabes lavar pratos e essas coisas de mulher?

CAJÓ- De mulher? Tu estás parvo pá. Qual de mulher? Trabalho é trabalho e na    família todos temos que nos ajudar e saber fazer um pouco de tudo.

RUCA- Tu ajudas a tua mãe? Só deves ajudar o teu pai. Tu és um rapaz!

CAJÓ- Ajudo quem necessita. Sei fazer tudo.

RUCA- Pratos também?

CAJÓ- E roupa e cuidar dos meus irmãos pequeninos e também cortar erva e dar de comer ao gado. Hoje já não há trabalhos de rapaz e rapariga. Todos somos iguais, e olha que elas, agora com a escola…

RUCA- Com a escola?

CAJÓ- Sim, com a escola aprendem novas coisas e lá não as ensinam a ser menos do que nós. Somos iguais. Tão iguais como tu e a tua irmã Bé.

RUCA- Pois…

CAJÓ- Como fui educado por uns pais modernos, sou também um jovem moderno por isso…

RUCA- Já sei Por isso tens muitas raparigas a querer casar contigo. A minha mãe outro dia disse-me: Filho, se todas as raparigas pensarem como a tua irmã, penso que daqui a uns anos, ninguém quer casar contigo.

CAJÓ- E tu que pensas?

(Ruca mostra uma panela)

RUCA- Casar comigo? Não querem? Ai querem querem, vou mesmo agora lavar esta panela.


(Fecha o pano)


  A.M (2015)

Sugerido por excerto da
Revista Ba Lafaek, , edisau 13,
Tinan IV- 2004                                 

domingo, 20 de septiembre de 2015

CRUZ DE PAU OU A MINHA PRIMEIRA MULHER NUA / ( Versão do conto em Português )



CRUZ DE PAU

A primeira mulher que vi nua na minha vida estava deitada numa mesa de mármore na casa mortuária do cemitério da cidade onde nasci.

Era mais branca do que a mesa, tinha os pés juntos, as unhas pintadas de cor-de-rosa e os braços colocados ao lado do corpo como se estivesse em sentido.

Os olhos fechados deixavam adivinhar pelo tom das pálpebras uma cor clara, talvez verde mais do que azul, por ser escuro o triângulo perfeitamente desenhado por baixo do ventre.

Mas era o buraquinho vermelho, por onde saíra a bala, lavado e como a marca de um beijo, que sobressaia apesar da pequenez.

 Por ele fora empurrada a vida, fria e rápida, montada na velocidade do disparo que lhe queimou as costas e arrebatou a alma quente e lenta.

Dela apenas se sabia ser mulher, entre os vinte e os trinta anos, que usava na hora da morte umas botas altas e uma saia curta, guardadas na entidade forense que decretou que se expusesse ali, e as portas fossem abertas, de duas em duas horas, para que o povo a pudesse identificar.

Eu ia pela mão do padre, director do internato onde estava, desde que o meu pai ali me deixara, depois de a minha mãe, dizem, que ainda hoje não sei bem, nos ter abandonado para ir viver com outra família, a de um homem com quatro filhos, viúvo e com carência de afectos que descobriu nos de minha mãe, assim me contaram, a solução dos problemas da sua família.

O padre levava-me pela mão, bem apertada, não fosse perder-me naquele carrossel de pessoas que andavam à volta, passo a passo, nova corrida nova viagem, observando cada traço da mulher assassinada.

Lembro-me da ponta dos seus sapatos de verniz, ora tapa que esconde, debaixo da sotaina comprida e eu, olhava para cima guiado pela fileira de botões que passando pelo colarinho branco, como uma fronteira, destapava do outro lado um rosto esguio e sorridente com uma boca que se abria e fechava e soltava sons “é bonita não é?”

Eu baixava a cabeça envergonhado e o padre apertava-me a mão com mais força.

Naquele orfanato, passei anos com agasalho e comida, com oitenta irmãos de infortúnio que compartilhavam o mesmo quarto, onde oitenta camas ordenadas, lado a lado, de ferro azul claro e colcha de pano branco, denunciavam a camarata pelo cheiro de couro e humidade que escorria, escondida, pelas paredes pintadas de cinzento.

O meu pai todos os meses me visitava e quando calhava também.

 Quando os domingos tinham sol, levava-me a lanchar, uma laranjada e um bolo de arroz, antes de me entregar aos padres e às paredes, até que me visitasse de novo, se pudesse, se juntasse, se tivesse trabalho, para a viagem de Lisboa ali.

As suas visitas, começavam muito antes de me visitar.

Soube da morte do meu pai no dia que me chamaram ao director sem ser pelo altifalante do pátio.

Tinha dezoito anos e estava a semanas de abandonar, por idade, a instituição.

O bom padre, que o tempo tinha marcado com o ritmo do nosso crescimento moveu os lábios grossos “já não sofre mais”.

Houve um período de tempo em que deixou de me visitar. 

Não sentia a falta do bolo e da laranjada nos domingos com sol, mas do cheiro do seu casaco e da rudeza das suas mãos grossas e grandes, ou as minhas eram pequenas e finas.

Diziam-me os padres que estava de viagem, que voltaria se Deus quisesse e que as minhas orações eram importantes. 

Por isso levei dias e dias soltando rezas, orações e sacrifícios.

Levei anos a rezar, à noite, ao levantar, várias vezes durante o dia, quando o cheiro do seu casaco me despertava a saudade.

Quando finalmente voltou a visitar-me estava diferente. 

Mais triste e mais calado. 

Os cabelos tinham mudado de cor e as suas mãos eram mais leves e trémulas.

Só no dia que me informaram da sua morte me disseram que a sua viagem foi feita parado, numa ilha longe de todos, numa camarata de adultos por ordem de um juiz.

Quando larguei a instituição, o velho director deu-me a chave de um quinto andar numa travessa dos arredores de Lisboa, Cruz de Pau, o nome da terra onde viveu os últimos dias. 

A casa estava em meu nome, uma conquista sua, um orgulho, duas divisões, uma cozinha e uma casa de banho, de camas enferrujadas onde iria por testamento começar a minha vida sozinho.

Deu-me dinheiro, a morada de uma fábrica onde deveria pedir trabalho e um bilhete de comboio.

Cheguei numa quarta-feira, meti a chave na porta e rodei. 

Empurrei devagar e abri o começo da minha vida adulta.

Duas camas, duas banquinhas de cabeceira, uma televisão com antena interna, um frigorífico vazio com seis garrafas vazias ao lado.

A minha casa.

Fui adulto durante vinte minutos, até que tocou a campainha e apareceu Deolinda “ Raúl? Meu menino, o teu pai falou-me muito de ti” e começou a falar-me dele, homem triste, sempre infeliz, onde eu aparecia na sua vida como vida “ se não fosse pelo menino Raul, há muito que nos tinha deixado e não só agora”.

As garrafas vazias ao lado do frigorífico eram a prova da sua infelicidade, fígado em explosão de combate à tristeza.

“Gostava muito de si, era eu que lhe cuidava da roupa, lhe limpava a casa, lhe respondia quando lhe apetecia falar.”

Deolinda era uma mulher madura, calma, os cabelos desarranjados por ter deixado de acreditar em si, mas uma ternura capaz de me olhar e de me chamar “menino”.

O seu paizinho pediu-me que lhe desse esta chave, da caixa que está em cima do guarda-fato e talvez incomodada com a barba que despontava na minha cara, reparei que passara a tratar o “menino” por você.

Nessa noite, abri a caixa.

Tinha dentro vários montinhos de cartas com laço.

O meu pai e a minha mãe tinham-se amado, num tempo, num momento.

Pela noite, tomei banho colocando em ruído os canos oxidados da casa de banho, pequena mas minha.

Sentei-me na cama, abri a gaveta da banquinha de cabeceira. 

Uma fotografia de uma mulher com um bebé ao colo, um pano de flanela verde envolvendo alguma coisa pesada e um frasco de verniz cor-de-rosa já ressequido.

Abri o pano verde como quem desembrulha um caramelo gigante e depois das voltas apareceu uma pistola negra.

Lembrei-me das pontas dos sapatos envernizados do director do meu orfanato, da sua mão apertando a minha no dia em que descobri numa mesa de mármore a primeira mulher nua que vi na minha vida.

Só então entendi que o bom sacerdote me tinha levado pela mão a despedir-me da mulher que me tinha trazido ao mundo.

Aragonez Marques

CRUZ DE PALO / CRUZ DE PAU / ( Versão em Castelhano)


La primera mujer que vi desnuda en mi vida estaba tendida en una mesa de mármol en el tanatorio del cementerio de la ciudad donde nací. Era más blanca que la mesa, tenía los pies unidos, las uñas pintadas de rosa y los brazos colocados junto al cuerpo. Los ojos cerrados dejaban adivinar, por el tono de los párpados, un color claro, más verde que azul, por ser oscuro el triángulo perfectamente dibujado bajo el vientre. Pero era el agujerito rojo, por donde había salido la bala, lavado y como la marca de un beso, el que sobresalía a pesar de su pequeñez. A través de él le había sido empujada la vida, fría y rápida, montada en la velocidad del disparo que le quemó la espalda y le arrebató el alma caliente y lenta. De ella sólo se sabía que era mujer, entre los veinte y los treinta años y que llevaba, en la hora de la muerte, unas botas altas y un vestido morado, guardados en la entidad forense que decretó que el cadáver estuviese allí expuesto y que las puertas se abrieran, cada dos horas, para que la gente lo pudiese identificar.
Yo iba de la mano del sacerdote, director del reformatorio donde estaba desde que mi padre allí me dejase, después de que mi madre, dicen, que todavía hoy no lo sé bien, nos abandonara para ir a vivir con otra familia, la de un hombre con cuatro hijos, viudo y con carencia de afectos que descubrió, en los de mi madre, la solución a los problemas de su familia.
El sacerdote me llevaba de la mano, bien apretada, para que no me perdiese en aquel carrusel de personas que andaban alrededor, paso a paso, nueva carrera, nuevo viaje, observando los trazos de la mujer asesinada.
Recuerdo la punta de sus zapatos de charol, ora asoma, ora esconde, debajo de la larga sotana que yo miraba desde abajo guiado por la hilera de botones que, pasando por el blanco alzacuello como una frontera, destapaba del otro lado un rostro enjuto y sonriente con una boca que se abría y se cerraba y soltaba sonidos “es guapa, ¿verdad?”. Yo bajaba la cabeza, avergonzado. El sacerdote me apretaba la mano con más fuerza.
En aquel reformatorio pasé años con abrigo y comida junto a otros hermanos con los que compartía la misma habitación en la que ochenta camas ordenadas, de lado a lado, de hierro de color azul claro y colcha blanca, denunciaban la caserna con un olor a botas de cuero y a la humedad que escurría, escondida, por las paredes pintadas de gris.
Mi padre venía a verme todos los meses y cuando caía, normalmente cuando los domingos tenían sol, me llevaba a merendar, una naranjada y un pastel, antes de entregarme otra vez a los curas y a las paredes hasta su próxima visita, al mes siguiente, si pudiese, si juntase, si hubiese tenido trabajo para costearse el viaje desde la capital hasta allí. Sus visitas comenzaban mucho antes de su llegada.
Supe de la muerte de mi padre el día que me llamaron al director sin ser por el altavoz del patio. Tenía dieciocho años y me quedaban semanas para abandonar, por edad, la institución. El buen sacerdote, al que el tiempo había marcado con el ritmo de nuestro crecimiento, movió los gruesos labios “ya no sufrirá más. Reza por sus pecados”.
Hubo un periodo de tiempo en el que dejó de visitarme. No sentía la falta del pastel y de la naranjada pero sí del olor de su chaqueta y de la rudeza de sus manos robustas y grandes. Los curas me decían que estaba de viaje, que volvería si era voluntad de Dios y que mis oraciones eran importantes. Por eso pasé días y días soltando rezos, oraciones y sacrificios. Me pasé años rezando por la noche, al levantarme, varias veces durante el día; siempre que el olor de su chaqueta me despertaba la añoranza.
Cuando finalmente volvió a visitarme estaba diferente, más triste y más callado. El cabello le había cambiado de color y sus  manos eran más ligeras y trémulas. Sólo el día que me informaron de su muerte me dijeron que su viaje lo había hecho parado, en una isla lejos de todos, en una celda aislada por orden de un juez.
Cuando dejé la institución, el viejo director me dio la llave de un quinto piso situado en una travesía de los alrededores de la capital. Cruz de Palo era el nombre de aquel pueblo donde mi padre vivió sus últimos días. La casa la había puesto a mi nombre, una conquista suya, un orgullo. Dos habitaciones, una cocina y un cuarto de baño de tuberías oxidadas donde empezaría, por testamento, mi vida en solitario. Junto con la llave, también me dio un poco de dinero, la dirección de una fábrica donde podía pedir trabajo y un billete de tren.
Llegué un miércoles, metí la llave en la puerta y la giré. Empujé despacio y abrí el comienzo de mi vida adulta. Una cama, dos mesillas de cabecera, un armario, una televisión con antena interna, un frigorífico vacío con seis botellas vacías junto a él… mi casa. Adulto durante veinte minutos,  hasta que sonó el timbre y apareció Angélica “¿Raúl?, mi niño, tu padre me habló mucho de ti”. Comenzó a hablarme de él, me dijo que fue un hombre triste, siempre infeliz y que yo fui lo único que apareció en su vida como vida. “De no haber sido por su niño Raúl haría ya mucho tiempo que nos habría dejado”. Las botellas vacías del frigorífico eran la prueba de su infelicidad, hígado en explosión de combate a la tristeza. “Te quería mucho. Yo le lavaba la ropa, le limpiaba la casa, le escuchaba cuando tenía ganas de hablar”.
Angélica era una mujer madura, tranquila y con el pelo descuidado, por haber dejado de creer en sí misma, pero con una ternura capaz de verme y de tratarme como a un “niño”.
“Tu papá me pidió que te diera esta llave, es de la caja que está encima del armario”.
Esa tarde, abrí la caja. Tenía dentro varios atadijos de cartas sujetos con un lazo. Mi padre y mi madre, la mujer que para mí siempre había sido un misterio, se habían amado, en un tiempo, en un momento.
Por la noche me metí en la bañera, activando el barullo de las tuberías oxidadas del cuarto de baño, pequeño pero mío.
Me senté en la cama, abrí el cajón de la mesilla. Una fotografía de una mujer con un bebé en su regazo, un paño de franela verde envolviendo algo pesado y un frasco de esmalte de uñas rosa.
Abrí el paño verde, como el que abre un caramelo gigante, y apareció una pistola negra.
Me acordé de las puntas de los zapatos brillantes del director de mi reformatorio, de su mano apretando la mía, el día en que descubrí en una mesa de mármol la primera mujer desnuda que vi en mi vida.
Sólo entonces entendí que el buen sacerdote me llevó de la mano a despedirme de la mujer que me había traído al mundo.                                     


Aragonez Marques 
2015 
(... publicado numa colectânea
de contos de escritores ibéricos
em Espanha...) 






lunes, 3 de agosto de 2015

O QUE FOSTE LÁ FAZER? - (excerto)


(…)

Como as mangas, as papaias, os cocos e as jacas, Lino Alves era fruto da ilha.

Falava português, como quem fala uma língua perdida, aos solavancos, verbos sem conjugação, vocábulos soltos, sem plural ou singular mas com o sentido da representação e o significado da imagem: _ Eu exército de Portugal. – Fazia-o com orgulho, pequenino, embrulhado numa lipa, pés escuros como o corpo, visíveis numas sandálias finas, sola invisível e leve, entaladas em dois dedos magros e limpos. 

Apontou a fotografia na parede, camuflado, outra idade, retida numa moldura que lhe avantajava o tronco, boina ao lado, bigode negro e com desenho em arco abaixo da boca – Eu exército português - Sorriu, num convite – Bebe cerveja comigo professor.

António Salvador acenou com a cabeça, segurou a lata Bintang, limpou-a bem, fez estalar a argola e Lino Alves meteu o dedo na sua. - Granada, professor - e arrancou o selo como quem despoleta uma arma, levou-a aos lábios, bebeu metade de um sôfrego, limpou os bigodes que mantinham a linha mas modificaram a cor e rematou – esta não mata - soltando depois uma gargalhada de quem estava feliz.

(…)



in O Que Foste Lá Fazer?
... em construção...