(...)
A Salenda é para um europeu o mais parecido a um cachecol, para um
timorense, um gesto de honra, um privilégio, algo que se usa ou dá em momentos
especiais. Usá-lo é um grande abraço de todo um povo e de quem é merecedor e
aceite pela sua cultura.
Os professores portugueses, ainda
num misto de despertar e sonho, estavam formados em fila e um a um, iam
recebendo a sua salenda das mãos das
crianças de uma escola de Díli, que alinhadas, tinham organizado aquela
primeira recepção de boas vindas.
O dragão, continuava a lançar as
suas baforadas e a fila era demorada, porque cada professor, era tocado pela
emoção quando se baixava, para que o menino ou a menina lhe colocasse no
pescoço aquele sinal de boas vindas com o coração aberto.
Carlos Novais, lenço na mão
pronto a ser espremido, avançava passo a passo debaixo de um sol intenso,
passava-o pela testa, pelos braços nus e metia as mãos entre o corpo e a camisa
para a desagarrar da pele que a aspirava com suor.
Incómodo.
Quem o mandara ir para aí com aquele
peso? Sentia-se em sacrifício e pensava que o primeiro a fazer era vencer
aquele clima que lhe diminuía o oxigénio que respirava.
Avançava, lento, a colega da
frente abanava-se com o folheto do programa e ele ali em passinhos de vinte
centímetros.
Faltam ainda dezasseis, pausa,
passinho, quinze, pausa, passinho, catorze…
Faltavam exactamente três
professores e quatro passinhos quando ouviu o que os meninos diziam quando
colocavam a salenda nos ombros dos professores, baixinho, como que
envergonhados:
- Bem-vindo a Timor-Leste.
Estava quase.
Dois, a seguir era ele e depois,
fugir dali, procurar uma sombra, uma cerveja, fugir, desaparecer, esconder-se
num sítio escuro, numa gruta onde fosse proibida a entrada do sol e talvez por
isso se surpreendeu, que o sol, com um sorriso tímido, lhe tocasse o corpo e
estivesse ali, à sua frente, na cara daquela menina que lhe colocava nos ombros
a responsabilidade da sua salenda
enquanto soltava a frase mágica:
- Bem-vindo a Timor-Leste.
Carlos Novais arrependeu-se de
ter tentado fugir, puxou a menina, deu-lhe um beijinho, agradeceu e
perguntou-lhe:
- Como te chamas?
A menina olhando para ele
respondeu:
- Bem-vindo a Timor-Leste.
Novais pensou, coitadinha, não
entendeu:
- Não é isso filha, quero saber o
teu nome, o meu é Carlos e o teu?
- Bem-vindo a Timor-Leste.
- O teu nome, como te chamas?
- Bem-vindo a Timor-Leste.
A menina ficou apavorada perante
aquela alteração do guião, isso não estava no papel, era meter a salenda e
pronto, logo a ela lhe havia de ter calhado aquele professor gordo e chato que
inventava coisas que não estavam escritas em lado nenhum.
Desviou o olhar de surpresa, passou-o para os
companheiros que com outras salendas nas
mãos aguardavam os professores que transpiravam atrás daquele e repetiu, desta
vez pausadamente para ver se aquele idiota percebia de vez:
- Bem-vindo (pausa) a
Timor-Leste.
Carlos Novais sorriu:
- Eu entendi queridinha, só quero
saber o teu nome - insistiu Carlos – o teu nome amiguinha…
Fixou-o.
Carlos sentiu que com os olhos
lhe dizia “ Vai-te embora daqui pá! Desampara-me a loja! Olha o que me saiu na
rifa! Então não querem ver este?” apesar de tudo dignamente dizia-lhe, agora de
uma forma clara, sílaba acentuada e lisa:
- Bem-vindo a Timor-Leste!
Nesse mesmo instante, Carlos Novais afagou-lhe a cabeça, ajeitou a sua salenda e deu o lugar ao colega de trás.
A menina respirou aliviada.
Só aí se deu conta do peso enorme
da responsabilidade que essa salenda lhe transmitia, a responsabilidade de
fazer renascer a língua portuguesa, proibida durante uma geração, perseguida à
ponta de catana e metralha, sofrimento e luto, tirada à força da história, e
esse ano, o ano em que recebera a sua salenda,
era aquele em que se celebravam os quinhentos anos da chegada dos primeiros
portugueses a Timor.
Sentindo o enorme trabalho que
tinha pela frente, Carlos Novais juntou-se aos companheiros, anichados debaixo
do alpendre, assistindo à dança da cultura timorense que outras crianças tinham
preparado para eles.
Carlos Novais sentiu-se pela
primeira vez na sua vida a fazer parte da história, que parecia que o tinha
posto na fila de propósito, pedindo-lhe ajuda e colocando também nas suas mãos
uma pequena parte, para que pudesse continuar a ser contada com orgulho, o
orgulho de ser língua, afago de pátrias, espalhadas pelos mares, pelos ventos e
pelas estrelas.
Carlos Novais fechou os olhos
e no meio daquele momento tão nobre, ficou surpreendido consigo, lenço ensopado
nas mãos, pois quando os abriu, em vez de pensar em hinos e bandeiras, estátuas,
monumentos e glórias tão apropriadas aos egrégios avós dos seus pensamentos,
apenas lhe veio à mente “tenho que emagrecer”.
Por Deus, que falta de
oportunidade histórica para uma frase a ser registada nos anais.
Sorriu, só esperava que o destino
histórico se não tivesse enganado ao colocá-lo naquela fila.
“Tenho que emagrecer”, que
pobreza de pensamento e pior se sentiu quando o segundo, a outra oportunidade
que podia ainda ter aproveitado foi:
- Tenho fome.
Deu-se conta de o ter dito em voz
alta, porque uma senhora ao seu lado, pertencente à organização lhe respondeu:
- Isto está quase a acabar.
(...)
in O que foste lá fazer?
... em construção...
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