Capítulo 4.
Os amigos
Todos os dias se viam. Tinham uma
camaradagem de irmãos. Muitas vezes jantavam com as mulheres e os filhos, e os
Natais eram passados à vez em casa de cada um, todos juntos.
Poderiam utilizar
sempre a courela de Sebastião, onde havia mais espaço, mas tinham decidido
rodar anualmente.
Faziam viagens juntos, excursões que a vizinha, foliona,
metia sempre na caixa do correio dos três.
Já tinham ido juntos ao Santoinho de
Viana do Castelo, comer o caldo verde, a sardinhada, dançar e beber o
champorrião. Foram também ao Porto, andar de barco por baixo das pontes e
visitar as adegas. Era uma paródia, só tinham que ter cuidado com a mulher de
Ludovino que, se havia vendas nessas excursões, cobertores, camas ou colchões,
televisores ou aparelhos de cozinha, comprava tudo o que podia e depois os
regressos não eram os mais alegres, pois Ludovino vinha “birrento” e a mulher calada
de arrependimento tardio, pois a sua assinatura no contrato era um agravar das
prestações, somadas às que já tinha.
Quando andavam os três sozinhos,
diziam: - Olha, ali vão os três porquinhos - Juntos e anafados todos eles,
Cícero, Heitor e Prático, Avelino Camejo, Sebastião e Ludovino tinham lobo
comum, as mulheres, que lhes apareciam quando menos esperavam, e sopravam até
os meterem nas únicas casas seguras, as suas.
Avelino e Ludovino conheciam-se de
crianças, foram juntos à escola, tirando alguns tempos em que Avelino ia para a
casa da tia, na Cidade. Já Sebastião, o com mais humor de todos eles, tinha e
fazia-os ter quando juntos, apareceu mais tarde, na tropa, ora vejam bem terem os
três feito juntos o serviço militar e terem-se conhecido no Entroncamento,
mudando de comboios e apanhando o mesmo que os levaria a Leiria ao Centro de
Recrutamento.
Avelino quando o comboio arrancou,
tinha a cabeça na porta e estava feliz a ver a estação a afastar-se,
desconhecendo que as portas eram automáticas, ficou com a cabeça entalada.
Ludovino tentando puxá-lo para dentro enrolado à sua cintura e Sebastião, que
nenhum conhecia:
- Socorro, acudam, socorro!!!
Um passageiro carregou no botão de
abrir as portas e salvou Avelino que libertou a cabeça, mas com duas feridas
atrás das orelhas dos puxões que lhe dava Ludovino.
O passageiro perguntou:
- Não sabiam que tinham que carregar
aqui para abrir as portas? – e apontou o botão.
Sebastião que não gostava de ser
considerado ignorante, respondeu:
- Fiquei em pânico, não me lembrei,
só pensava que podia passar um comboio em sentido contrário e zás, cabeça fora.
O passageiro foi para dentro pensando
“que pacóvios”.
Eles olharam uns para os outros e não
conseguiram parar o riso, as gargalhadas saíam incontroladas.
Nenhum deles tinha nunca andado de
comboio e se o faziam agora, era para irem “às sortes” (inspecção militar) com
guia de marcha com viagem e estadia paga.
Foram para dentro e ficaram colados
às janelas a ver as árvores a andar para trás.
Ainda foram ver a casa de banho,
nunca tinham visto nenhuma num comboio e pelo sim pelo não, entraram os três,
mão na porta não fosse esta fechar-se e eles não encontrarem o botão.
Jantaram no quartel mostrando a guia.
Foi terrível, os soldados metiam-se com eles, atiravam-lhes bolinhas de pão
amassado com os dedos e diziam-lhes:
- Pio, pio, pio...
Era uma sopa grossa de massa e
feijão.
Sebastião gostou.
Dormiram no quartel também, mas aí
melhor, era uma camarata apenas para os pios-pios que no outro dia iam à
inspeção.
Um sargento entrou e disse-lhes:
- Vou fechar as luzes, amanhã às
seis, levantar, seis e quarenta e cinco pequeno-almoço na cantina, sete e
quinze pátio, mas às oito horas todos em forma para os levarmos ao Centro de
Recrutamento onde os oficiais médicos os esperam. Há duas enfermeiras a ajudar,
a quem vir subir o pau, corto-o, e tirou a faca de mato do cinto.
Os três, sem falarem uns com os
outros tinham uma estratégia para ficarem “livres”, mas guardavam-na para si.
Aquilo tinha três partes.
A primeira era fazerem contas,
problemas, quadrados para acabar, circunferências para meterem dentro, em mesas
individuais como se fosse uma escola.
A segunda eram umas máquinas de onde
saíam fichas com números que tinham que enfiar nas ranhuras numeradas com uma
velocidade que ia aumentando.
A terceira é que foi a surpresa.
Todos em fila indiana e em pelota, duas filas, uma por cada oficial médico, e
sim, era verdade havia duas enfermeiras, mas o cagufo era tanto que iam
encolhidos e cabisbaixos desde que se despiram até que os mandaram vestir.
As duas primeiras partes, mesmo que o
quisessem fazer melhor, era impossível, tinha corrido mal, melhor para eles.
O primeiro foi o Avelino que levava
como estratégia ver mal do olho direito.
Com o esquerdo via tudo, V H C U P V H C U P
V H C U P com o esquerdo trocava
tudo, do V um U, do H um A, do C um S, do U um 0, do P um R.
O médico perguntou-lhe:
- És alérgico a alguma coisa?
- Não, que eu saiba.
- Tens pé chato?
- Não, que eu saiba.
- Levanta o pé.
Avelino levantou-o:
- Parece o Arco da Rua Augusta e da
vista não te preocupes, aprendes a disparar à esquerda que esse olho direito é
uma maravilha.
Pum, pum. O carimbo bateu na almofada
da tinta e no papel e desenhou “Apurado” na sua ficha.
- Vai-te vestir, outro!
O outro era Ludovino que não se podia
esquecer da palavra “amparo”.
- Alergias?
- Não, mas Senhor Doutor Capitão, eu
sou órfão de pai, vivo com a minha mãe e uma irmã, sou o único homem da casa,
sou amparo.
- E como amparas? Onde trabalhas?
- Estou à procura de emprego...
- Então estás desempregado.
- Por enquanto...
- Ótimo, menos uma boca em casa a
ajudar o esforço da tua mãe.
Pum, pum, “Apurado”.
- Vai vestir-te, outro!
Sebastião aprendeu a dizer
“toxicodependente”, pois sabia que não queriam drogados na tropa. Precisavam de
gente, mesmo coxos, que a guerra estava para acabar, dizia-se, com o 25 de
Abril há poucos meses, mas dizia-se... os homens estavam lá e a política de
recrutamento não tinha sido alterada, pelo menos até agora.
Antes que o oficial médico lhe dissesse
algo, Sebastião disse logo:
- Sou toxicodependente!
- Cavalo?
- Para a cavalaria não posso ir, não
sei andar de cavalo e sou alérgico ao pêlo.
O médico levantou a cabeça:
- Heroína.
- Conheço algumas, mas a que mais
gosto é da Padeira de Aljubarrota.
Não sem uma gargalhada, pum-pum,
“Apurado”.
Assim se conheceram os três amigos,
desde essa altura e até hoje completamente inseparáveis.
(...a ser escrito...)