viernes, 20 de marzo de 2020

A TABERNA DE AVELINO CAMEJO (UM PRIMEIRO CHEIRINHO)







13. O acidente

A Fernanda Sardinha era espírita. Daquelas que sabiam de cor o livro de Allan Kardec. Às vezes falava comigo e dizia-me que todas as crianças que morriam eram anjinhos pois apenas tinham vindo a este mundo para cumprir uma pequena parte do ciclo que lhes faltava. O povo, sem essa consciência implícita, tinha noção da raridade desses acontecimentos e acabava por os sepultar em urnas brancas e vestirem-nos de anjinhos, de primeira comunhão e se já adolescentes vestidas de noivas se eram raparigas.
Falávamos às vezes, até gostava de a ouvir e dizia-me que quando as pessoas morriam de repente não se apercebiam que estavam mortas, justificava até que mesmo que lhe amputassem um membro, durante muito tempo e embora o mesmo lá já não estivesse, sentiam dores no mesmo e que aos poucos iam perdendo a noção da sua posse, sentindo-o cada vez mais curto.
Ouvia-a porque conhecia o João Malagueta, a quem tinham cortado uma perna de uma malvada mina na Guiné, era contínuo da Sociedade Alentejo, onde se jogava bilhar, ping-pong e laranjinha e manipulava a cadeira de rodas com uma facilidade dos diabos, mas que muitas vezes me dizia:
- Hoje esta puta dói-me que se farta, como se cá estivesse – e apontava o coto com a perna das calças dobradas e presas com alfinetes de dama.
Por isso ia ouvindo a Fernanda falar.
- Mortes de repente, são as piores para as almas que se continuam perpetuadas no corpo e eu, que tenho este dom de ver o martírio, já vi muitas ainda nos funerais rodeando as esposas, os filhos, dizendo-lhes, estou aqui, não me vês? Caramba que se passa?
É por isso que mesmo que apesar de todos os pêlos de João Fernando estarem de pé, arrepiados, mesmo que o seu corpo tivesse sido esmagado e com uma rótula que só dias mais tarde apareceu na beira da estrada, não viu as luzes do outro carro que afocinhou no seu, elevado sobre ambas as viaturas, estava já morto sem o saber.
A morte de João Fernando foi quase a morte da mãe, cujo coração inchou quando soube da notícia.
Tudo mudou, José Boavida acreditou que tal tristeza fosse um castigo de Deus e nunca mais ninguém o viu com outras mulheres. Já Pituca, transportou a dor para o resto da vida e foi nessa altura que a irmã lhe entregou o filho, quase definitivamente, Avelino, que passou a ter uma infância onde nada lhe faltava mas com sustos e medos que nunca contou. 
Acordava muitas vezes a meio da noite, com a tia fazendo-lhe festas na cara, beijando-o e deixando cair lágrimas grossas enquanto lhe chamava João Fernando.
Um dia ouviu choros na sala, levantou-se e foi espreitar, na parede estavam a ser projetados “slides”, do João Fernando com o seu camuflado de alferes, em corpo inteiro, do tempo em que esteve em África e a tia, com a sua sombra de braços abertos, negra, sem luz, na parede onde deixava os beijos e os abraços:
- Querido filho, não fiquei sem ti lá para ficar sem ti aqui.
Avelino foi pé ante pé meter-se na cama, encolhido, rezando para que a tia não deixasse a parede e se fosse agarrar a ele.
Viveu assim a sua infância entre o amor e o medo.
O tio levava-o à pesca, ensinou-o a meter os chumbinhos nas bóias, os nomes dos peixes, ensinava-lhe tudo o que não fez com o filho e ao contrário da tia, queria esquecer, não gostava de falar sobre o assunto e até as fotografias do João Fernando o incomodavam, era uma forma de sofrimento que tentava obstaculizar.

A.M.
in A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
(...a ser escrito...)

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