13. O acidente
A Fernanda Sardinha era espírita. Daquelas que sabiam de cor o livro de
Allan Kardec. Às vezes falava comigo e dizia-me que todas as crianças que
morriam eram anjinhos pois apenas tinham vindo a este mundo para cumprir uma
pequena parte do ciclo que lhes faltava. O povo, sem essa consciência
implícita, tinha noção da raridade desses acontecimentos e acabava por os
sepultar em urnas brancas e vestirem-nos de anjinhos, de primeira comunhão e se
já adolescentes vestidas de noivas se eram raparigas.
Falávamos às vezes, até gostava de a ouvir e dizia-me que quando as pessoas
morriam de repente não se apercebiam que estavam mortas, justificava até que
mesmo que lhe amputassem um membro, durante muito tempo e embora o mesmo lá já
não estivesse, sentiam dores no mesmo e que aos poucos iam perdendo a noção da
sua posse, sentindo-o cada vez mais curto.
Ouvia-a porque conhecia o João Malagueta, a quem tinham cortado uma perna
de uma malvada mina na Guiné, era contínuo da Sociedade Alentejo, onde se
jogava bilhar, ping-pong e laranjinha e manipulava a cadeira de rodas com uma
facilidade dos diabos, mas que muitas vezes me dizia:
- Hoje esta puta dói-me que se farta, como se cá estivesse – e apontava o
coto com a perna das calças dobradas e presas com alfinetes de dama.
Por isso ia ouvindo a Fernanda falar.
- Mortes de repente, são as piores para as almas que se continuam
perpetuadas no corpo e eu, que tenho este dom de ver o martírio, já vi muitas
ainda nos funerais rodeando as esposas, os filhos, dizendo-lhes, estou aqui,
não me vês? Caramba que se passa?
É por isso que mesmo que apesar de todos os pêlos de João Fernando estarem
de pé, arrepiados, mesmo que o seu corpo tivesse sido esmagado e com uma rótula
que só dias mais tarde apareceu na beira da estrada, não viu as luzes do outro
carro que afocinhou no seu, elevado sobre ambas as viaturas, estava já morto sem o saber.
A morte de João Fernando foi quase a morte da mãe, cujo coração inchou
quando soube da notícia.
Tudo mudou, José Boavida acreditou que tal tristeza fosse um castigo de
Deus e nunca mais ninguém o viu com outras mulheres. Já Pituca, transportou a dor para
o resto da vida e foi nessa altura que a irmã lhe entregou o filho, quase
definitivamente, Avelino, que passou a ter uma infância onde nada lhe faltava
mas com sustos e medos que nunca contou.
Acordava muitas vezes a meio da noite,
com a tia fazendo-lhe festas na cara, beijando-o e deixando cair lágrimas grossas
enquanto lhe chamava João Fernando.
Um dia ouviu choros na sala, levantou-se e foi espreitar, na parede estavam
a ser projetados “slides”, do João Fernando com o seu camuflado de alferes, em
corpo inteiro, do tempo em que esteve em África e a tia, com a sua sombra de
braços abertos, negra, sem luz, na parede onde deixava os beijos e os abraços:
- Querido filho, não fiquei sem ti lá para ficar sem ti aqui.
Avelino foi pé ante pé meter-se na cama, encolhido, rezando para que a tia
não deixasse a parede e se fosse agarrar a ele.
Viveu assim a sua infância entre o amor e o medo.
O tio levava-o à pesca, ensinou-o a meter os chumbinhos nas bóias, os nomes
dos peixes, ensinava-lhe tudo o que não fez com o filho e ao contrário da tia,
queria esquecer, não gostava de falar sobre o assunto e até as fotografias do
João Fernando o incomodavam, era uma forma de sofrimento que tentava obstaculizar.
A.M.
in A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
(...a ser escrito...)
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