XLVI. De órfã a criada de servir
Por
detrás do sotaque de seminarista de Salazar, da guerra livro-os eu, da fome
livrarei ou não, Esperança rebentava em beleza, mudava a pele como cobra na
primavera, porque era mulher, e a pele de criança sofrida era abandonada porque
a de mulher a começava já a arroupar.
Quando
as freiras das Criaditas de Santa Zita a encaminharam para trabalhar na quinta
de uma ilustre família, ela sabia que era a forma de sair daquele cheiro de
velas e incenso, daquele bafio em que a tinham educado para servir homens e
mulheres diferentes, não como ela que acreditava profundamente que o seu lugar,
no mundo que Deus lhe dera para viver, era aquele, de fita e avental branco, de
costuras e de cozinhas, de fazer as camas a quem nelas gozou, e de ser pecado,
até mesmo imaginar ser condenável, perante Deus e os homens, aquela sede imensa
de que lhe tocassem o corpo, rebelde e espigado em caldeirada hormonal, de quem
quer viver, rir, gozar e ser feliz.
Chegou
à herdade com as melhores referências das Criaditas de Santa Zita.
As
heranças eram (e ainda são), as correias de transmissão das divisões das
classes, e no Alentejo, as herdades as suas raízes. Filho de herdeiro, herdeiro
nascia, outros, sem nada para herdar, restava-lhes a possibilidade de servir os
herdeiros que lhe couberam na herança, não escrita por notário, mas pelo berço.
Assim,
sempre assim, até hoje.
A
senhora recebeu-a na sala enquanto tomava chá, nessa sala que ela limparia duas
vezes por dia, e da qual estaria pendente numa linha reta, a sua, entre a sala
e a cozinha.
-
Mostra-me as mãos!
Esperança
esticou-as.
-
Vira-as!
Esperança
obedeceu.
- As
unhas sempre cortadas, as mãos limpas, entendido?
Esperança
baixou os olhos quando a mulher de Romão Papafina lhe ajeitou a touca e lhe
abotoou o decote:
-
Assim. Botões fechados, que isto é uma casa de respeito – bateu as palmas como
quem enxota as galinhas – vamos, vamos, para a cozinha, há muito para fazer e o
senhor está a chegar.
O
quarto de Esperança ficava no primeiro andar, pequenino, cama de palha e
lençóis de pano.
Desconhecia
que a mãe, aquela mulher de que se não lembrava, mas que todos lhe diziam ser
bonita, como ela, que a abandonou um dia, logo após nascer, para a salvar, pois
não resistiria à longa viagem, à longa fuga para a Argentina, às incertezas e
obstáculos que se adivinhavam, nunca a tinha esquecido.
Viveu a infância com os
tios, que tudo lhe contaram do pouco que sabiam, mas que vítimas, da malvada
tuberculose que andava solta pelo país, a tia, e do álcool, o tio, acabaram por
se ver obrigados a entregar a menina ao asilo das raparigas que funcionava na
Corredora de cima, frente ao jardim municipal.
Daí até
Santa Zita, a escola de hotelaria da época, foi um passo, entre missas e
terços.
Quando
chegou à herdade de Romão Papafina, nunca poderia imaginar que a mãe, quinze
anos antes, fizera parte daquela casa, sendo rainha do quarto grande e do
coração do patrão.
Não o
sabia ela, nem a senhora virtuosa que lhe mandara mostrar as mãos, nem Romão
Papafina, que apenas viu nela, uma bela moçoila, pronta para ser devoradamente
submissa.
(...)
in A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL
Filigrana Editora