sábado, 20 de junio de 2020

A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL / OFERTA CAPÍTULO XLVI





                                                      XLVI. De órfã a criada de servir

Por detrás do sotaque de seminarista de Salazar, da guerra livro-os eu, da fome livrarei ou não, Esperança rebentava em beleza, mudava a pele como cobra na primavera, porque era mulher, e a pele de criança sofrida era abandonada porque a de mulher a começava já a arroupar.

Quando as freiras das Criaditas de Santa Zita a encaminharam para trabalhar na quinta de uma ilustre família, ela sabia que era a forma de sair daquele cheiro de velas e incenso, daquele bafio em que a tinham educado para servir homens e mulheres diferentes, não como ela que acreditava profundamente que o seu lugar, no mundo que Deus lhe dera para viver, era aquele, de fita e avental branco, de costuras e de cozinhas, de fazer as camas a quem nelas gozou, e de ser pecado, até mesmo imaginar ser condenável, perante Deus e os homens, aquela sede imensa de que lhe tocassem o corpo, rebelde e espigado em caldeirada hormonal, de quem quer viver, rir, gozar e ser feliz.

Chegou à herdade com as melhores referências das Criaditas de Santa Zita.

As heranças eram (e ainda são), as correias de transmissão das divisões das classes, e no Alentejo, as herdades as suas raízes. Filho de herdeiro, herdeiro nascia, outros, sem nada para herdar, restava-lhes a possibilidade de servir os herdeiros que lhe couberam na herança, não escrita por notário, mas pelo berço.

Assim, sempre assim, até hoje.

A senhora recebeu-a na sala enquanto tomava chá, nessa sala que ela limparia duas vezes por dia, e da qual estaria pendente numa linha reta, a sua, entre a sala e a cozinha.

- Mostra-me as mãos!

Esperança esticou-as.

- Vira-as!

Esperança obedeceu.

- As unhas sempre cortadas, as mãos limpas, entendido?

Esperança baixou os olhos quando a mulher de Romão Papafina lhe ajeitou a touca e lhe abotoou o decote:

- Assim. Botões fechados, que isto é uma casa de respeito – bateu as palmas como quem enxota as galinhas – vamos, vamos, para a cozinha, há muito para fazer e o senhor está a chegar.

O quarto de Esperança ficava no primeiro andar, pequenino, cama de palha e lençóis de pano.

Desconhecia que a mãe, aquela mulher de que se não lembrava, mas que todos lhe diziam ser bonita, como ela, que a abandonou um dia, logo após nascer, para a salvar, pois não resistiria à longa viagem, à longa fuga para a Argentina, às incertezas e obstáculos que se adivinhavam, nunca a tinha esquecido. 

Viveu a infância com os tios, que tudo lhe contaram do pouco que sabiam, mas que vítimas, da malvada tuberculose que andava solta pelo país, a tia, e do álcool, o tio, acabaram por se ver obrigados a entregar a menina ao asilo das raparigas que funcionava na Corredora de cima, frente ao jardim municipal.

Daí até Santa Zita, a escola de hotelaria da época, foi um passo, entre missas e terços.

Quando chegou à herdade de Romão Papafina, nunca poderia imaginar que a mãe, quinze anos antes, fizera parte daquela casa, sendo rainha do quarto grande e do coração do patrão.

Não o sabia ela, nem a senhora virtuosa que lhe mandara mostrar as mãos, nem Romão Papafina, que apenas viu nela, uma bela moçoila, pronta para ser devoradamente submissa.

(...)

in A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL
Filigrana Editora

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