SINOPSE
A descoberta de uma falange, de uma falanginha, de uma
falangeta e de uma rótula, nas valas onde se enterravam os porcos durante a
calamitosa Peste Suína Africana, leva-nos a descobrir uma aldeia que cresce
graças a uma Santa que foi enterrada viva.
Uma carta recebida da Argentina empurra-nos para uma ferida
aberta pela guerra civil espanhola que influencia Portugal
clandestinamente.
Uma emigrante que limpa o pó ao "abuelo"
embalsamado.
O primeiro amor de Perón.
Behamonde o herói aviador republicano, irmão do
general Franco.
O acidente do avião da Madeira.
Pinceladas de Buenos Aires, Açores, Mulhacén, o Vale dos
Caídos, La Roca de la Sierra, mas também Arronches, Elvas, Portalegre, Ribeira
de Nisa... Alentejo.
Cheiros de um tempo em que as criadas de servir serviam
para tudo, criadas por quem serviam.
Uma escola reprodutora do sistema com personagens que o
mantinham.
Uma igreja que se cansava de manter um regime.
Personagens de loucura, Cinha Cinhona, o Engoletudo, Paulo
Macedónia, o primo Júlio, o padre Cabral, a Dona Antónia, o Zé da Coelha,
Papafina de Jesus, o Ventoinha, o Zarolho, o Espanhol, Salazar o Cigano,
Patrocínio Marques casada com Salustiano Perez Román, o sargento espanhol, e
muitas outras, que se cruzaram, se tocaram, mas não se encontraram.
Um romance vertiginoso onde se misturam tempos e memórias e
onde a Mulher, nua e crua, é central no desenrolar da história que se conta.
A Mulher do Sargento
Espanhol é ficção pura, marioneta nos dedos da realidade.
A Mulher do Sargento Espanhol é um livro para quem
gosta de se perder no passar ritmado das páginas, uma aventura de leitura, um
tambor tocado pelo destino.
OFERTA DE LEITURA
65. O pacífico e a
úlcera.
Tinha razão Patry, João Maria Relvas era
mesmo um homem bom, ninguém lhe conhecia conflitos. Afastava-se deles.
Esquivava-se a dar opinião, não julgava nada nem ninguém. Afastava-se mesmo das
pessoas a quem adivinhava fervura. Tirava-as do seu caminho como quem cura uma
gripe.
Tinha sempre um sorriso, um cumprimento e uma úlcera.
Por isso nada
entendeu como naquele dia se alterou, ao ponto de tocar a violência.
O Barata tinha nascido torto. Sem sorte
mesmo, uma paralisia infantil, chamada pelos cultos de poliomielite, atacou-lhe
as pernas e porque a vacina das gotinhas amargas ainda não tinha sido colocada
na língua, começou a roer-lhe as forças, ao ponto de se dobrarem e não se terem
em pé.
Meteram-lhe uns ferros como andaimes que nasciam de umas botas grossas e
o Barata, passou a infância correndo como um robot com umas pernas com talas metálicas, esqueleto fora da pele
com parafusos de aço.
Fazia tudo o que faziam os outros, mas sempre de uma
forma rectilínea, direita e fria.
Nos jogos da bola, era um defesa exímio, que
os adversários evitavam pela dureza da pancada das botas.
O corpo, torre Eiffel
de duas patas, duras e dolorosas para quem as investia ou era investido.
Mas
não eram só de ferro as partes exteriores das suas pernas, também por dentro,
peito, alma e coração eram de metal. Cresceu odiando a vida, revoltado com ela
foi ganhando ódio e quando acabou sentado numa cadeira de rodas, que movia
dando à manivela centrada à altura dos braços, vendendo lotaria, a sorte grande
para os outros, esse ódio era já doentio e soltava-se-lhe da língua através de
insultos, ameaças, despropósitos que se lhe perdoavam atendendo à sua limitação
física.
Com o passar do tempo, ia piorando e passou a ser insuportável, ao
ponto das pessoas mudarem de passeio quando ele circulava, de rua quando se
adivinhava e até de jardim, largo ou avenida quando a sua presença se
denunciava.
Não fossem os peregrinos da Santinha Queimada e as lotarias não se
venderiam e o Barata não comeria, pois só com os da terra seria impossível,
sendo muito raros os que não tinham sentido já o ferrão, deixado pela vespa da
ponta da sua língua.
Naquele dia, coube ao pobre do João Maria,
que se cuidava em não molestar vespa nenhuma, incapaz de matar mosca ou mesmo
pisar formiga, apanhar pela frente o azedume do Barata, reforçado ainda por
cima, pela valentia da companhia de quatro ou cinco fedelhos adolescentes, que
no risco do gozo do pisar a linha da delinquência social, se juntavam ao
Barata, colocando-o no centro da anormalidade de grupo, com que desafiavam
descobrindo, o ócio irracional das borbulhas na cara, sem entender os porquês
dos corpos que se transformavam, rebentando em fealdade, como girinos.
- Então não trazes a velha? Ainda fazia um
par de meias solas, boazona como ela está…
Não foi com meias solas, mas com solas
inteiras que o pacifico Relvas atacou à biqueirada e depois das patadas aos
guarda-costas juvenis, agarrou o Barata pelos colarinhos e com a mão solta
aventou-lhe dois estalos, um de cada lado:
- Toma e toma, que não és aleijado das
bochechas.
A aldeia comentava com gosto, as lambadas do
Barata como se de toda a gente fosse o gostinho.
Parece que desde aquele dia, a úlcera de João
Maria Relvas, deixou de incomodá-lo, como se tivesse sido curada milagrosamente
pela Santinha da terra, e se duraram pouco os comentários sobre o acontecido
entre o Barata e o Relvas, foi porque se aproximava o dia do julgamento de
Papafina de Jesus e se faziam apostas, agora mesmo com valores que se viam,
sobre a origem dos ossos, que como os ferros das pernas do Barata, tinham
Papafina de Jesus aparafusado ao medo e pendente do laboratório criminal, que
tardava e tardava, a dizer de uma vez por todas de quem eram os ossos e quem os
enterrou.
Tudo se ouvia e de tudo se falava. Afinal aquele "prazeirinho" de meu
caro Watson que todos carregamos, andava solto pela aldeia.
Ouviam-se histórias
e identificava-se a vítima, adivinhavam-se culpados, afinal o que se sabia era
intrigante.
Sabia-se ser uma fêmea, sabia-se a década e meia que teria na hora
da morte e sabia-se até, maravilhas da investigação científica, que estava
grávida, imaginem morta tão nova com um filho dentro.
Não poderia haver perdão
para o enterrador, embora a todos parecesse que Papafina de Jesus fosse incapaz
de tamanha monstruosidade.
(...)
in A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL
Editado por Filigrana Editora
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