viernes, 29 de mayo de 2020

A TABERNA DE AVELINO CAMEJO / CAPÍTULO 16 / OFERTA DE LEITURA





16. Os primos

Avelino Camejo não era muito de cemitérios e por isso, os funerais eram algo que o faziam, sempre que possível, não estar presente.

Foi ao do senhor José, não por ele, mas por Dona Beatriz, tão velhinha que se adivinhava não ir viver muito mais depois daquele desgosto, o que se veio a confirmar dez dias depois, por Preciosa que se encontraria orfã e sozinha no mundo e por Sebastião, com mãe já num lar, pois começava a não conhecer ninguém, a esquecer-se da vida e muitos dias até do filho e foi, porque Matilde, indignada lhe disse claramente:

- Não penses nem vir!

Foi, mas ficou para último à saída da igreja, vendo de longe o sofrimento de quem acompanhava o defunto, acompanhando à distância as lágrimas de Preciosa, mas deixou-se ficar no final do cortejo, feito a pé, desde a igreja até aos ciprestes, naquele último passeio de quem não passearia mais. 

Depois, já lá dentro, num repente que não gostaria de ter tido, acendeu-se aquele neurónio intermitente que às vezes o fazia ter a sensação de conhecer a mulher de Sebastião. 

Estava mais velha, era verdade, as feições mudaram com o tempo, mas naquela fragilidade de menina sofredora, reconheceu-a.

Voltou atrás no tempo. Àquele verão caloroso. O tio morrendo na cama do hospital, a tia Pituca sempre ao seu lado, ares condicionados todos sem trabalhar, suor empapando a morte no terceiro piso do hospital:

- Quero falar com o Picado antes de morrer, vê se o encontras Avelino.

O Senhor Picado, mais conhecido por “Pica-Peixe”, era um grande amigo de José Boavida, anos de paródias, pescarias e conversas. 

Foram fundadores do Clube de Pesca da Cidade cujas estantes estavam recheadas de taças e troféus, poeirentos.

Avelino foi a sua casa:

- O meu tio quer falar consigo.

- Como é que ele está desde esta manhã?

- Piorou, a minha tia chamou o padre para lhe dar a extrema-unção. Tem que vir Senhor Picado, pois a última coisa que quer é falar consigo.

- Vamos no meu carro - e montaram-se no Fiat 850 cinzento do Senhor Picado.

- O pior é parar com tantos espanhóis a comprar atoalhados, cães de loiça, terrinas floridas e relógios de banho de cobre e estilo barroco.

- Fico no carro, se vier a polícia tiro-o.

O Senhor Picado subiu as escadarias de granito do hospital, margeadas de arcadas de mármore, que unidas, faziam um corrimão frio de largura razoável.

Cruzou-se com Pituca na escadaria larga e segura, majestosamente segura:

- Vi-os chegar da janela do quarto, sobe Picado, eu vou ter com o meu sobrinho, vou a casa buscar uma ventoinha. O calor é demais.

Podem ter demorado cerca de uma hora, pois Pituca, já que estava em casa, não resistiu a fazer um chá de camomila com gelo e bebê-lo calmamente desfrutando do sofá da sala.

Falou com Avelino:

- O tio Zé já não sai do hospital, nunca mais ficará sentado nesta sala. Quando eu morrer estás a ver este quadro?

Era uma moldura pequena que envolvia um alfabeto desenhado e bordado a ponto cruz. 

Pituca tirou-o da parede, por trás, forrada a fita-cola estava uma chave.

Avelino ficou surpreso.

- Só tu é que sabes, esta chave é da gaveta de baixo da cómoda do quarto do meu querido João Fernando, onde tu ficaste como filho que o meu coração adoptou. Dentro está um testamento que fiz com o teu tio há alguns anos, pouco depois de mudarmos de cidade.

Avelino ouvia pasmado e com atenção.

- Está dentro de um envelope lacrado e leva-o ao Dr. Sampaio, que sempre foi o advogado da família, ele saberá o que fazer com ele.

- Tia Pituca, mas a tia está viva.

- Graças a Deus e bastantes anos Deus ainda me traga por cá. Digo-te isto pois morrerei na tua casa, para onde quero ir. Um dia que eu me fine (benzeu-se), nesse mesmo dia, quero que venhas aqui e tranques a porta da minha casa. Não deixes entrar ninguém, nem mesmo da família. Ninguém mesmo. Tiras a chave do quadro e levas o testamento. Depois só abres a casa após a sua leitura pois o original ficou com o advogado e cópia no tribunal. Prometes?

- Sim tia, prometo.

- Bem vamos lá buscar a ventoinha que o Picado, sedento como é e sem uma cerveja à mão, deve estar contando os minutos.

Ao chegarem ao hospital o Senhor Picado já estava na rua, esperando, branco como a cal da parede e chapéu na mão, dando passos para a frente e para trás como um soldado de guarda à porta de um quartel.

Pituca:

- Está tudo bem?

- Sim, deixou-se dormir e o calor era muito...

Virou-se depois para Avelino que levava já a ventoinha na mão.

- Depois de montar isso no quarto, baixe, eu fico aqui, preciso de lhe falar.

Quando Avelino, Pituca e a ventoinha chegaram ao quarto, o tio estava deitado de lado, olhos abertos, mas sem conseguir falar, a mulher fez-lhe uma festa, ele agarrou-lhe a mão e colocou-a nas costas.

Pituca começou a coçá-lo o que lhe parece ter trazido mais alívio, fechou os olhos e apenas se sabia que estava vivo porque respirava alto, grunhidos, como os porcos das matanças, já depois da faca espetada, esperando a morte.

Avelino tentou fugir dali, mas dava-lhe pena a tia...

- Vai Avelino, vai ter com o Picado que algo te quer, a tia fica bem e também preciso ficar sozinha com ele, porque o tio não passa de hoje. Fez-lhe uma festa na testa enquanto com a outra mão, lhe coçava as costas menos suadas.

Notava-se a ventilação da ventoinha.

Avelino saiu daí e desceu as escadarias duas a duas, precisava chegar à rua, de se sentar, de fumar um cigarro, de ver gente e carros a passar, de ver vida.

Picado quando o viu, foi direito a ele, estava aflito, com o lenço limpava a testa mas também a espuma dos cantos da boca.

- Entre para o carro Avelino, conduza, nem sei como lhe dizer isto. Arranque a caminho da Aldeia do Cano e quando sair da cidade, pare à beira da estrada pois tenho algo muito importante para lhe contar e tem que me prestar atenção.

Avelino arrancou, mas intrigado perguntou:

- Alguma coisa de grave?

O Senhor Picado respondeu apenas:

- Porque me escolheu a mim para uma coisa destas? Vamos ver se chegamos a tempo.

- Onde?

- Pára o carro quando puderes.

Já na estrada, aproveitou uma entrada para um monte que tinha um portão fechado e uma pequena entrada já fora da estrada e meteu o carro aí. Travou-o. Desligou o motor.

- Conte Senhor Picado, não aguento a curiosidade e o seu aspecto é de que algo de grave se passou. Foi a conversa que teve com o meu tio Zé Boavida?

- Dá-me um cigarro aceso.

- Mas o Senhor Picado não fuma.

- Pois vou fumar. Conheço o teu tio há mais de cinquenta anos e nunca me falou deste assunto, que desconhecia completamente, mas que me meteu numa hora destas dentro dele. Pediu-me que não contasse a ninguém, nem a ti, mas caramba és um homem e eu não me sinto preparado para fazer sozinho o que ele me pediu. Vem comigo por favor e nunca contes à tua família, pois é um segredo que só ele e Pituca sabem e que Pituca nunca o deixou tão pouco pensar nisso, nunca mais, quanto mais falar. Um segredo que preciso que me ajudes e esqueças também. Disse-lhe que sim, para não o deixar morrer com esse remorso de consciência. Bem, Avelino, tens uma prima.

- Tenho várias.

- Sim, mas tens uma do teu tio, filha de uma criada que lá trabalhou em casa.

- O meu tio com uma filha? Da criada? Porque precisa de me contar?

- Porque tens que vir comigo à Aldeia do Cano, procurá-la e dizer-lhe que o pai está a morrer e quer vê-la.

- Não lhe pediu a si? Não lhe contou a si? Que vou eu lá fazer?

- Ajudar-me, não me deixes sozinho, não tens que dizer nada. A mãe chama-se Beatriz, casou e a menina, deve ter agora mais de vinte anos, Quem a perfilhou casando com a mãe, chama-se João. Só temos que perguntar pelo sítio onde vivem, pois compraram uma quinta próximo da Aldeia.

- Tenho mesmo que ir?

- Agradecia-te muito.

Avelino meteu de novo o carro na estrada e chegando à aldeia foi fácil saber onde moravam. Era uma Quinta grande. Pararam longe do portão da entrada, viram gente a trabalhar e uma moçoila, franzina e loira sobre um trator.

 Fizeram sinais. 

Chamaram:

- Ó da casa! Ó da casa! – enquanto levantavam os braços para serem vistos.

A rapariga olhou, apesar da distância e do ruído do motor da máquina e aproximou-se. 

Tinha um chapéu de palha e uns olhos azuis que não deixavam dúvidas quanto ao pai. 

O trator ficou ao lado do muro.

- Precisam de alguma coisa?

Foi o Senhor Picado que falou:

- A menina deve ser filha da Senhora Dona Beatriz...

- Sim, sou eu.

Picado continuou:

_ Trago-lhe uma notícia triste, o seu paizinho, José Boavida, está a morrer no hospital da Cidade e queria vê-la antes de fechar os olhos para sempre.

Empertigou-se, levantou-se do banco, ficou de pé sobre o trator, zangada mesmo, revoltada e a perder as estribeiras. Apontou para o fundo da quinta onde um homenzito cavava:

- Vê aquele homem ali a trabalhar? Esse sim é, e será sempre o meu pai, criou-me e deu-me amor. Diga isso a esse senhor e que morra rápido, que o inferno o espera há muito tempo.

Meteu a primeira no trator e começou a afastar-se, terra abaixo, recomeçando o trabalho como se nada se tivesse passado.

Picado e Avelino ficaram a olhar um para o outro.

- Que fazemos agora?

- Nada. Eu digo-lhe que a não encontrei, não lhe dou um desgosto destes.

Não foi preciso, pois quando chegaram ao hospital, já Pituca se agarrou a eles, ainda o viram, mas já morto.

- Foi melhor assim – pensou Picado.

Aquela cara ficou-lhe escondida na memória, era ela, Preciosa, a mulher de Sebastião era filha do tio José Boavida e só ali, naquele funeral triste, olhando para ela, chorosa mas altiva, recebendo do coveiro a chave da urna, triste pelo suicídio, se deu conta de onde a conhecera.

Quando se despediram no fim do enterro, abraçou-a e beijou-a, mas por dentro sentiu-se envergonhado, quase culpado, pelo que quando abraçou Sebastião teve que dizer-lhe:

- Amigo, logo que te sintas melhor, que tenham feito o vosso luto, temos que falar.

Abraçou-o com força:

- Lamento imenso!

                                                               (...)


in A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
A publicar por Filigrana Editora

No hay comentarios:

Publicar un comentario