35.
Entrara já sem receios a noite. Tudo estava
adormecido. O monitor de serviço ao primeiro piso ressonava prazenteiramente.
Os rapazes meio destapados, pernas caídas das camas, sonos soltos, sonhavam com
heróis e gaivotas.
Apenas dois estavam acordados esperando a
totalidade da noite e do silêncio.
- Estás pronto?
Os rapazes deslizaram das camas, passaram
ao corredor de mãos dadas entre a aventura e o medo.
Frente à porta do quarto
vazio de Sérgio, pararam.
- O professor ainda cá não dorme. Anda,
descemos pela janela do quarto dele.
Entraram os dois no quarto e fecharam a
porta.
- Podes acender a luz, mesmo que o monitor
veja luz por baixo da porta não se atreve a dizer nada, porque pensa que é o
“profe”.
Popular olhou para a mala aberta e com as
camisas ainda alinhadas sobre a cama, depois para Chico Orelhas:
- Não lhe tocamos. Até ver, o “gajo” não
parece chato, até deu tabaco à malta.
- Engraçado pá, parece que conheço aquele
sacana de qualquer lado…
- Deixa lá isso. O que é que fazemos agora?
Aonde vamos?
- Fazer uma visita ao quarto do Director que está de fim-de- semana.
Popular abriu a janela do quarto e saltou
para o alpendre. Chico imitou-o. Já na rua correram com as sombras para o bloco
da Direcção.
Treparam a janela.
Partiram o vidro e entraram.
- Sacaste os fósforos na cozinha?
- Estão aqui.
- Acende um.
Uma luz ténue iluminou o local.
- É aqui que o labrego dorme. Olha está ali
uma vela.
- Porra! Queime-me. Onde é que está a vela?
Sobre a mesa de cabeceira do quarto do
Director estava uma vela que logo foi acesa.
Chico Orelhas disse baixinho:
- Se os “gajos” sabem que nós aqui
estivemos…
- Vão saber que cá esteve gente – disse
Popular – mas daí até saberem que fomos nós… - e com um esticão tirou a roupa
da cama e atirou com ela ao chão.
Chico abriu a gaveta da mesa de cabeceira e
exclamou admirado:
- Franco, está aqui uma pistola.
O Popular pegou nela. Observou-a.
- Está carregada.
- O sacana tem medo de nós e à noite dorme
com esta merda… carregada. Seria capaz de nos dar um tiro?
Abriu a porta debaixo da mesinha, tirou o
bacio, urinou nele e atirou a pistola lá para dentro.
- Também tenho vontade – abriu as calças –
cá vai disto.
Depois ataram as peúgas que estavam na
gaveta umas às outras e penduraram-nas do candeeiro do tecto.
- Chico, olha o que aqui está!
- Camisas de vénus?
- Mas p´ra qué c´o gajo as quer? Quem é que
aqui dorme com ele? Estas vou eu levá-las.
Guardou o pacote de preservativos no
bolso das calças.
- Vamos tirar os quadros das paredes e as
roupas do roupeiro.
Quando o quarto estava em desalinho,
Popular tirou o fio de prata do bolso, olhou para Chico e sorriu.
- Mas isso é o fio do Pirata.
- Também tu o conheces. Toda a gente o conhece
– e deixou cair o fio de prata junto de um dos pés da cama.
Só aí Chico Orelhas percebeu tudo e
satisfeito disse:
- Vamos embora, está tudo feito.
- Tudo ainda não. Mas já não é aqui. Vamos
embora.
Saltaram para o chão deixando a janela
aberta. Atravessaram todo o pátio. Treparam ao alpendre e entraram pelo quarto
destinado a Sérgio que ainda se mantinha com a luz acesa.
Depois, pé ante pé, dirigiram-se para a camarata
onde perto da cama do Pirata o Franco disse ao Chico:
- Vai além e tira o saco que está debaixo
da cama do porco, com cuidado não vá ele acordar.
Chico, deslizando, apanhou o saco do
Pirata, abriu-o e Popular tirou do bolso o pacote dos preservativos e atirou-o
lá para dentro. Tornaram a fechá-lo e meteram-no novamente debaixo da cama do
Pirata.
Deitaram-se depois calmamente e ficaram em
silêncio a olhar o tecto.
Anicharam-se mais nas suas camas.
Puxaram as cobertas.
Chico Orelhas disse baixinho:
- Franco, agora sim está tudo pronto – e
ambos comprimiram as bocas contra as almofadas, tal era a força das gargalhadas
que teimavam em sair contra o silêncio.
- Morde a língua!!
E ambos com a língua entre os dentes,
oprimindo o riso e o nervoso, esperaram o amanhecer.
(...)
in Margens de um Rio Violento
Publicado por Filigrana Editora.
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