19. Os sapatos
Não sem um sorriso, sempre que tirava a
caixa onde estavam guardados os seus melhores sapatos, azuis escuros, de
camurça aveludada, Avelino olhou para eles, tirou-lhes os papelões que lhe
mantinham o formato e calçou-os.
Era um dia importante, o baptizado da
filha de Sebastião e Preciosa, e onde os padrinhos seriam Ludo e Mabilde, a
esposa de Avelino, deixando-o de fora assim como Teo.
Todos concordaram, não podia a criança
ter tantos padrinhos e madrinhas e assim estava reposta a amizade entre todos,
embora, Preciosa fosse quem mais insistisse nesta solução, no fundo, dos dois
amigos do marido, Avelino era o que menos gostava e ia-se transformando pouco a
pouco em silêncio entre ambos e num respeito surdo impeditivo de gracejos.
Afinal Pituca, vivia com o sobrinho e mesmo que se esforçasse, um resistente
odiozinho tinha-se instalado nela.
Um dia Avelino disse-lhe:
- Prima...
- Somos de família há tempo insuficiente
para me tratares assim. Chamo-me Preciosa, como sempre.
Desde esse dia, Avelino escolhia as
palavras e embora risse e partilhasse das brincadeiras, com ela, tentava sempre
não se precipitar.
Olhou para os sapatos nos seus pés, no
fato claro que a Primavera já chegaria e trancaria o escuro para os festejos do
Inverno. Viu-se ao espelho. Faltava a gravata pendurada e o nó do pescoço, mas
isso seria Mabilde a fazê-lo, por isso, enquanto ela estava na casa de banho
maquilhando-se, bateu à porta e sem abrir disse-lhe:
- Tens que me dar o nó da gravata.
- Já vou amor, estou quase.
Avelino sentou-se na cama, olhou os
sapatos e recordou a morte do tio José Boavida.
Foi a tia que o vestiu com a ajuda de
uma amiga e ele apenas o ia virando, depois de o terem lavado com uma esponja, lhe
terem feito a barba e até, imaginem, lhe terem cortado as unhas dos pés.
- Ajuda aqui.
Avelino colocou-o de lado para lhe
vestirem uma camisa, calças perna a perna, meias e gravata azul. Colocaram-lhe
os óculos, juntaram-lhe as mãos e conseguiram meter-lhe na boca os dentes
postiços.
Parecia um noivo adormecido. Penteado e limpo, mas quando a tia
apareceu com os sapatos achou que estavam velhos e usados.
- Avelino, vai lá acima à Rua do
Comércio, à sapataria do Lino e compra um par de sapatos novos para calçarmos
ao tio. Diz-lhe que a tia depois faz contas com ele.
Avelino, necessitado de sair daí,
aproveitou e foi comprar uns sapatos ao tio morto.
Tinha estado, durante os
dias em que chegou o internamento do Tio Zé, pelas manhãs perdendo-se num
gastar de tempo, até chegar a hora das visitas.
Dentro do quarto apenas podia estar a tia
e se houve coisa que o atraísse como as séries da MEO, eram as lojas, onde se
perdia nas suas montras, enquanto o relógio passava e uma delas era a da
sapataria do Lino, onde a família era cliente há muito tempo.
Na montra tinha uns sapatos bonitos,
azuis, pareciam camurça e tinham um azul escuro aveludado.
Olhou para eles
vários dias em que subia e descia a Rua do Comércio, abalroada de gente e
carros.
Dizia-se nessa altura que a Câmara a
queria transformar em via peatonal.
Os sapatos eram tão bonitos que várias
vezes esteve para comprá-los, mas tinham que ser muito bons, porque o preço era
impeditivo.
Talvez no Natal, com o subsídio de
férias...
Foi por isso que quando a tia lhe pediu
para comprar os sapatos, custassem o que custassem, o primeiro que fez foi ir à
loja do Lino comprá-los.
Antes do empregado os meter na caixa,
tocou-lhes, dobrou-os e sentiu a elasticidade, afagou-os e sentiu a suavidade
da pele, eram cosidos, uns sapatos perfeitos.
- A minha tia depois faz contas consigo.
- Dê os nossos sentimentos à sua tia e
ela que não se preocupe agora com isso.
Continuou a olhar o espelho e Mabilde
saiu da casa de banho, maquilhada, perfeita.
Ainda conseguia estar mais bonita do que
nas fotografias espalhadas pela aldeia, de chapéu e óculos escuros, o nome por
cima de IVAP, que as eleições estavam à porta.
Sempre acabaram por ter de pagar uma
multa pelos acentos agudos, uma ninharia, porque a justiça é barata para a
política, limparam as placas identificativas das entradas da Aldeia, da Vila e
da estrada de circunvalação.
- Estás tão bonito, Avelino.
- Tu sim, estás bonita, porque não te
pintas assim sempre, para mim?
Mabilde riu e começou a vestir-se.
Avelino baixou à cozinha onde já estava
a filha pronta para o baptizo.
- Pai, há quanto tempo não te vejo tão
bonito, de fato, gravata, sapatos elegantes, a cheirar tão bem...
Avelino fez um café de saco e sentou-se
para o beber, mas logo que se sentou, os olhos caíram de novo para os sapatos e
começou novamente a recordar.
Lembrou-se de quando chegou com eles à
casa da tia.
- São bonitos, foram caros?
- Um pouco – e disse-lhe o preço.
- Bem, o melhor para o tio, e ficam bem
com a gravata.
Pituca começou a desapertar os sapatos
que já tinha para lhe calçar os novos e foi aí que Avelino soltou:
- Mas esses sapatos estão bons, pensava
que estavam piores, é uma pena levar estes, afinal num par de meses já estão
piores dos que tem calçados.
A tia Pituca pensou:
- Isso é verdade, mas já estão
comprados, parece mal devolvê-los ao Lino.
- A tia não disse que tem roupa do tio
que quer deitar fora e se eu a queria?
- E bastante contente fiquei de não te
importares de ficar com a sua roupa, ele também era muito teu amigo.
- Tia, também não me importava de ficar
com os sapatos, e escusa de passar pela vergonha de devolvê-los.
- Tens razão, é uma pena serem
enterrados.
Foi assim que Avelino ganhou um par de
sapatos, novos, a estrear.
Mabilde desceu, vinha linda, saltos
altos, vestido claro que lhe assentava como uma luva, Avelino impecável no seu
fato e a filha, sempre bonita, desta vez com um toque de sombra nos olhos que a
mãe autorizou.
Mabilde fez-lhe o nó da gravata e assim saíram os três rumo à igreja da
cidade onde estava marcado o baptizo e depois dali para o local do repasto,
telefones carregados para as fotografias.
- Está tudo? Não falta nada? Levas as
velas e os presentes? A concha de prata para o Padre utilizar e o frasco com
água do mar Morto que pediste à Odete quando foi com o pai de excursão? a
Israel? que trouxe para baptizares a tua afilhada? E a vela com o lacinho? E os
cartões da tipografia para os convidados?
- Levo tudo!
- Ai, por falar em vela eu esqueci a da
minha prenda – disse a filha, que levava de presente um livro para as
fotografias e uma vela gorda com números até cem, para que em cada ano
acendesse, pois segundo lhe disse o vendedor, demorava 24 horas a arder de
número para número – vou por ela ao quarto. Espera.
Saíram finalmente de casa, no novo carro
que Avelino tinha comprado para não utilizar a carrinha com cheiro a vinho, em
família, um Datsun 1600 de cor vermelha.
Mabilde ia ser madrinha de uma bebé
baptizada com água de Jerusalém e que anos mais tarde viria a ser enfermeira,
pois ainda muito pequena, as suas brincadeiras eram dar injecções às bonecas.
Foram os pais que lhe escolheram o nome,
Fernanda, como a avó paterna, que a menina não chegara a conhecer, mas que
influenciada pela mãe, amava sem nunca a ter visto.
Já sobre a tia de Avelino
que continuava a viver em casa da madrinha, durante todos esses anos em que se
formara como enfermeira, nunca a viu, nem nunca lá foi a casa, custava-lhe,
pois apenas conhecia a história que a mãe lhe contara, sempre com cheiro a
veneno e mal estar.
A única coisa que Avelino não esperava é
que o linguarudo do Sebastião, logo que o viu, atirou-lhe:
- Olha o sovina com os sapatos que sacou
ao velho no dia do enterro.
Maldita a hora em que lhes contou essa
história uma vez.
Ficou o grupo todo sem entender e a
olhar os sapatos bonitos de Avelino.
Não se dando por satisfeito, ainda disse
à mulher que estava como todos menos Ludovino, sem perceber nada:
- São os sapatos do teu pai.
Muito séria, quase estragando a festa,
Preciosa respondeu:
- O meu pai chamava-se João!
(...)
in A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
...a ser publicado quando a Covid passar...
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