viernes, 22 de mayo de 2020

A TABERNA DE AVELINO CAMEJO / CAPÍTULO 19.




19. Os sapatos

Não sem um sorriso, sempre que tirava a caixa onde estavam guardados os seus melhores sapatos, azuis escuros, de camurça aveludada, Avelino olhou para eles, tirou-lhes os papelões que lhe mantinham o formato e calçou-os.

Era um dia importante, o baptizado da filha de Sebastião e Preciosa, e onde os padrinhos seriam Ludo e Mabilde, a esposa de Avelino, deixando-o de fora assim como Teo.

Todos concordaram, não podia a criança ter tantos padrinhos e madrinhas e assim estava reposta a amizade entre todos, embora, Preciosa fosse quem mais insistisse nesta solução, no fundo, dos dois amigos do marido, Avelino era o que menos gostava e ia-se transformando pouco a pouco em silêncio entre ambos e num respeito surdo impeditivo de gracejos. 

Afinal Pituca, vivia com o sobrinho e mesmo que se esforçasse, um resistente odiozinho tinha-se instalado nela.

Um dia Avelino disse-lhe:

- Prima...

- Somos de família há tempo insuficiente para me tratares assim. Chamo-me Preciosa, como sempre.

Desde esse dia, Avelino escolhia as palavras e embora risse e partilhasse das brincadeiras, com ela, tentava sempre não se precipitar.

Olhou para os sapatos nos seus pés, no fato claro que a Primavera já chegaria e trancaria o escuro para os festejos do Inverno. Viu-se ao espelho. Faltava a gravata pendurada e o nó do pescoço, mas isso seria Mabilde a fazê-lo, por isso, enquanto ela estava na casa de banho maquilhando-se, bateu à porta e sem abrir disse-lhe:

- Tens que me dar o nó da gravata.

- Já vou amor, estou quase.

Avelino sentou-se na cama, olhou os sapatos e recordou a morte do tio José Boavida.

Foi a tia que o vestiu com a ajuda de uma amiga e ele apenas o ia virando, depois de o terem lavado com uma esponja, lhe terem feito a barba e até, imaginem, lhe terem cortado as unhas dos pés.

- Ajuda aqui.

Avelino colocou-o de lado para lhe vestirem uma camisa, calças perna a perna, meias e gravata azul. Colocaram-lhe os óculos, juntaram-lhe as mãos e conseguiram meter-lhe na boca os dentes postiços. 

Parecia um noivo adormecido. Penteado e limpo, mas quando a tia apareceu com os sapatos achou que estavam velhos e usados.

- Avelino, vai lá acima à Rua do Comércio, à sapataria do Lino e compra um par de sapatos novos para calçarmos ao tio. Diz-lhe que a tia depois faz contas com ele.

Avelino, necessitado de sair daí, aproveitou e foi comprar uns sapatos ao tio morto. 

Tinha estado, durante os dias em que chegou o internamento do Tio Zé, pelas manhãs perdendo-se num gastar de tempo, até chegar a hora das visitas.

Dentro do quarto apenas podia estar a tia e se houve coisa que o atraísse como as séries da MEO, eram as lojas, onde se perdia nas suas montras, enquanto o relógio passava e uma delas era a da sapataria do Lino, onde a família era cliente há muito tempo.

Na montra tinha uns sapatos bonitos, azuis, pareciam camurça e tinham um azul escuro aveludado. 

Olhou para eles vários dias em que subia e descia a Rua do Comércio, abalroada de gente e carros.

Dizia-se nessa altura que a Câmara a queria transformar em via peatonal.

Os sapatos eram tão bonitos que várias vezes esteve para comprá-los, mas tinham que ser muito bons, porque o preço era impeditivo.

Talvez no Natal, com o subsídio de férias...

Foi por isso que quando a tia lhe pediu para comprar os sapatos, custassem o que custassem, o primeiro que fez foi ir à loja do Lino  comprá-los.

Antes do empregado os meter na caixa, tocou-lhes, dobrou-os e sentiu a elasticidade, afagou-os e sentiu a suavidade da pele, eram cosidos, uns sapatos perfeitos.

- A minha tia depois faz contas consigo.

- Dê os nossos sentimentos à sua tia e ela que não se preocupe agora com isso.

Continuou a olhar o espelho e Mabilde saiu da casa de banho, maquilhada, perfeita.

Ainda conseguia estar mais bonita do que nas fotografias espalhadas pela aldeia, de chapéu e óculos escuros, o nome por cima de IVAP, que as eleições estavam à porta.

Sempre acabaram por ter de pagar uma multa pelos acentos agudos, uma ninharia, porque a justiça é barata para a política, limparam as placas identificativas das entradas da Aldeia, da Vila e da estrada de circunvalação.

- Estás tão bonito, Avelino.

- Tu sim, estás bonita, porque não te pintas assim sempre, para mim?

Mabilde riu e começou a vestir-se.

Avelino baixou à cozinha onde já estava a filha pronta para o baptizo.

- Pai, há quanto tempo não te vejo tão bonito, de fato, gravata, sapatos elegantes, a cheirar tão bem...

Avelino fez um café de saco e sentou-se para o beber, mas logo que se sentou, os olhos caíram de novo para os sapatos e começou novamente a recordar.

Lembrou-se de quando chegou com eles à casa da tia.

- São bonitos, foram caros?

- Um pouco – e disse-lhe o preço.

- Bem, o melhor para o tio, e ficam bem com a gravata.

Pituca começou a desapertar os sapatos que já tinha para lhe calçar os novos e foi aí que Avelino soltou:

- Mas esses sapatos estão bons, pensava que estavam piores, é uma pena levar estes, afinal num par de meses já estão piores dos que tem calçados.

A tia Pituca pensou:

- Isso é verdade, mas já estão comprados, parece mal devolvê-los ao Lino.

- A tia não disse que tem roupa do tio que quer deitar fora e se eu a queria?

- E bastante contente fiquei de não te importares de ficar com a sua roupa, ele também era muito teu amigo.

- Tia, também não me importava de ficar com os sapatos, e escusa de passar pela vergonha de devolvê-los.

- Tens razão, é uma pena serem enterrados.

Foi assim que Avelino ganhou um par de sapatos, novos, a estrear.

Mabilde desceu, vinha linda, saltos altos, vestido claro que lhe assentava como uma luva, Avelino impecável no seu fato e a filha, sempre bonita, desta vez com um toque de sombra nos olhos que a mãe autorizou.

Mabilde fez-lhe o nó da gravata e assim saíram os três rumo à igreja da cidade onde estava marcado o baptizo e depois dali para o local do repasto, telefones carregados para as fotografias.

- Está tudo? Não falta nada? Levas as velas e os presentes? A concha de prata para o Padre utilizar e o frasco com água do mar Morto que pediste à Odete quando foi com o pai de excursão? a Israel? que trouxe para baptizares a tua afilhada? E a vela com o lacinho? E os cartões da tipografia para os convidados?

- Levo tudo!

- Ai, por falar em vela eu esqueci a da minha prenda – disse a filha, que levava de presente um livro para as fotografias e uma vela gorda com números até cem, para que em cada ano acendesse, pois segundo lhe disse o vendedor, demorava 24 horas a arder de número para número – vou por ela ao quarto. Espera.

Saíram finalmente de casa, no novo carro que Avelino tinha comprado para não utilizar a carrinha com cheiro a vinho, em família, um Datsun 1600 de cor vermelha.

Mabilde ia ser madrinha de uma bebé baptizada com água de Jerusalém e que anos mais tarde viria a ser enfermeira, pois ainda muito pequena, as suas brincadeiras eram dar injecções às bonecas.

Foram os pais que lhe escolheram o nome, Fernanda, como a avó paterna, que a menina não chegara a conhecer, mas que influenciada pela mãe, amava sem nunca a ter visto. 

Já sobre a tia de Avelino que continuava a viver em casa da madrinha, durante todos esses anos em que se formara como enfermeira, nunca a viu, nem nunca lá foi a casa, custava-lhe, pois apenas conhecia a história que a mãe lhe contara, sempre com cheiro a veneno e mal estar.

A única coisa que Avelino não esperava é que o linguarudo do Sebastião, logo que o viu, atirou-lhe:

- Olha o sovina com os sapatos que sacou ao velho no dia do enterro.

Maldita a hora em que lhes contou essa história uma vez.

Ficou o grupo todo sem entender e a olhar os sapatos bonitos de Avelino.

Não se dando por satisfeito, ainda disse à mulher que estava como todos menos Ludovino, sem perceber nada:

- São os sapatos do teu pai.

Muito séria, quase estragando a festa, Preciosa respondeu:

- O meu pai chamava-se João!

                                                                 (...)

in A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
...a ser publicado quando a Covid passar...


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