lunes, 11 de mayo de 2020

A TABERNA DE AVELINO CAMEJO / CAPÍTULO 14 (Cheirinho)



14. Cobarde de amor.


João sabia finalmente o que fazer. Fechou a porta devagar para que não acordasse Beatriz e evitou, entrar no quarto de Preciosa, que dormia com o seu marido.

Falariam dele sim, mas não pelo real sucedido e o tempo, tudo apagaria.

Foi o primeiro a entrar na taberna de Avelino Camejo:

- Bom dia!

- Por aqui tão cedo Senhor João? Que lhe ponho?

-Nada Avelino, tenho aqui um garrafão vazio de água do Luso e gostava que mo enchesses de aguardente, daquela tua, da boa, do alambique que escondes no sótão e não podes vender ao balcão.

-É uma chatice ter que servir aguardentes em garrafa para os copos dos clientes, garrafas com marcas, mas cujo líquido é como os melões. 

Coisas da lei e a puta das multas vão até ao encerramento da casa.

- Mas podes vender-me cinco litros? É para oferecer a uma amiga que vou visitar.

- Amiga? E amiga de bom gosto, porque não há como a minha aguardente. Porque pensa que sai tanto sol e sombra aqui na casa?

Avelino não fez perguntas e com um funil, encheu-lhe a garrafa, deixando-lhe a parte de cima cheia de pequenas pérolas que lhe garantiam a qualidade e referiu-o:

- Pérolas para uma amiga vejam que rico colar... – e apontou com o dedo o cimo transparente do garrafão de plástico, enquanto lhe enroscou a tampa.

- Um colar de pérolas.

- Tenha cuidado Senhor João que amigas na sua idade são um problema.

- Não a vejo há muitos anos conheci-a em África, ainda novo, no tempo da guerra, nunca mais pensei ter contato com ela, até porque é feia – riu-se- encontrei necessidade da ver depois destes anos todos e quis o destino que a encontrasse, por acaso.

Um dia disse que me encontraria e parece que o adivinhou. Bem, para lhe dizer a verdade, fui eu que lhe marquei o encontro.

- De África...é branca ou preta?

- Preta, como a noite, mas amiga e fiel, daquelas que não nos esquecem nunca e são capazes de nos dar conforto até à eternidade. Vivi com ela dezoito meses em Angola, noite e dia, na caserna e no mato.

Pagou e despediu-se.

- Até logo Avelino que lá mais pela tarde nos veremos.

Deixou o garrafão no jipe e foi a pé até à loja dos chineses.

-Bom dia, precisava de fazer um estendal para a roupa, uma amiga que me pediu, tem cordas e molas da roupa?

- Sim e "ter" estendal já feito, grande e pequeno, desmancha e arruma, quer ver?

- Não, quero ser eu a fazer.

- Tem rolo de três, cinco e dez metros.

- Quero um de dez metros que o quintal é grande.

- Cor?

- Pode ser azul, que é a cor do céu, e molas?

- Ter sacos com doze mas cores de mistura, não pode “escoler”. Pode ser “amalelo”, “vermelo”, Azul, misturado, sacos de doze.

- São também dois sacos com molas...

- Eu não sair do balcão, há na segunda fileira.

Foi assim que João foi buscar a corda plástica e as molas, já meio aborrecido com o chinês que nada fazia sem ser indicar os caminhos, mas sem largar a caixa registadora que guardava o dinheiro e poucas faturas fazia. Olhava os espelhos redondos como o dos cruzamentos das ruas que tinha colocado nos cantos superiores da loja, tecnicamente e de onde, vigiava todas as prateleiras.

João colocou a corda plástica e as molas no balcão e pediu para pagar.

- Prego não quer?

- Não, tenho em casa.

- Quer saco?

- Sim.

- Tem que pagar saco à parte.

- Não, guarde a merda do saco, levo na mão!
Raio de Chinês!

-Não precisa falta educação, não quer não quer - e praguejou em chinês.

Levou as compras, meteu-se no jipe e foi até à courela, arrendada a Avelino e onde havia bastantes coisas já feitas e muitas trazidas, entre elas, os porcos com pocilgas feitas e o trator verde com garagem das alfaias acabada. Vigas de madeira e folhas de zinco.

Tirou o cadeado do portão, abriu-o e meteu dentro também o jipe, junto da palha e dos utensílios agrícolas.

Fechou depois ambas as portas e meteu a tranca de pinho no interior  encaixada nas albardas aparafusadas às vigas onde as portas estavam depositadas.

Ali, só poderia entrar quem ele autorizasse.

Sentou-se num fardo de palha, deitou num copo de plástico a aguardente do Avelino, bebeu um e dois e três e ficou e ficou e foi ficando à espera da amiga, talvez para ganhar força para esse encontro que sabia ter que se realizar.

Repassou-lhe a vida dos últimos anos enquanto os sentidos lhe iam turvando os pensamentos e as memórias.

Deixou no jipe as molas da roupa quando foi buscar a corda azul cor de céu.

Subiu à roda traseira do trator verde e passou-a por cima da trave onde foram assentes as folhas de zinco.

Puxou ambas as partes, fez uma argola numa delas por onde passou a outra ponta. Cortou-a com um isqueiro aceso, depois de lhe tirar as medidas necessárias. Baixou do trator. Esticou-a e atou-a ao gancho do reboque. Subiu à roda grande novamente, primeiro pelo degrau de subida, passou o corpo pelo lado das mudanças e colocou os dois pés sobre o banco onde tantas vezes Preciosa esteve sentada.

Do banco um primeiro pé sobre o grande guarda lama verde, depois o outro. Alargou a argola grande e meteu-a na cabeça. Olhou a trave, depois acompanhou com a vista a ligação ao reboque e meteu o dedo no pescoço experimentando com a outra mão o fechar e abrir do colar.

Meteu a mão no bolso da camisa, tirou um cigarro, acendeu-o e começou a fumar.

Sabia que a amiga negra chegaria quando o cigarro acabasse.

Assim foi, atirou a pirisca e deu um passo em frente, dois ou três movimentos, até que a amiga morte chegou.

Silêncio.

Deixou de baloiçar e ali ficou em linha reta, os olhos curiosamente abertos, os pés a trinta centímetros do chão.

Para ele, tudo tinha terminado.

Já não ouviu o cão, alentejano de cabeça enorme, que começou a ladrar sem parar, da parte de fora do portão fechado.

in A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
...a ser escrito...


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