14. Cobarde de amor.
João sabia finalmente o que fazer.
Fechou a porta devagar para que não acordasse Beatriz e evitou, entrar no
quarto de Preciosa, que dormia com o seu marido.
Falariam dele sim, mas não pelo real
sucedido e o tempo, tudo apagaria.
Foi o primeiro a entrar na taberna de
Avelino Camejo:
- Bom dia!
- Por aqui tão cedo Senhor João? Que lhe
ponho?
-Nada Avelino, tenho aqui um garrafão
vazio de água do Luso e gostava que mo enchesses de aguardente, daquela tua, da
boa, do alambique que escondes no sótão e não podes vender ao balcão.
-É uma chatice ter que servir
aguardentes em garrafa para os copos dos clientes, garrafas com marcas, mas
cujo líquido é como os melões.
Coisas da lei e a puta das multas vão até ao encerramento da casa.
Coisas da lei e a puta das multas vão até ao encerramento da casa.
- Mas podes vender-me cinco litros? É
para oferecer a uma amiga que vou visitar.
- Amiga? E amiga de bom gosto, porque
não há como a minha aguardente. Porque pensa que sai tanto sol e sombra aqui na
casa?
Avelino não fez perguntas e com um
funil, encheu-lhe a garrafa, deixando-lhe a parte de cima cheia de pequenas
pérolas que lhe garantiam a qualidade e referiu-o:
- Pérolas para uma amiga vejam que rico
colar... – e apontou com o dedo o cimo transparente do garrafão de plástico,
enquanto lhe enroscou a tampa.
- Um colar de pérolas.
- Tenha cuidado Senhor João que amigas
na sua idade são um problema.
- Não a vejo há muitos anos conheci-a em
África, ainda novo, no tempo da guerra, nunca mais pensei ter contato com ela,
até porque é feia – riu-se- encontrei necessidade da ver depois destes anos
todos e quis o destino que a encontrasse, por acaso.
Um dia disse que me encontraria e parece
que o adivinhou. Bem, para lhe dizer a verdade, fui eu que lhe marquei o
encontro.
- De África...é branca ou preta?
- Preta, como a noite, mas
amiga e fiel, daquelas que não nos esquecem nunca e são capazes de nos dar
conforto até à eternidade. Vivi com ela dezoito meses em Angola, noite e dia,
na caserna e no mato.
Pagou e despediu-se.
- Até logo Avelino que lá mais pela tarde
nos veremos.
Deixou o garrafão no jipe e foi a pé até
à loja dos chineses.
-Bom dia, precisava de fazer um estendal
para a roupa, uma amiga que me pediu, tem cordas e molas da roupa?
- Sim e "ter" estendal já feito, grande e
pequeno, desmancha e arruma, quer ver?
- Não, quero ser eu a fazer.
- Tem rolo de três, cinco e dez metros.
- Quero um de dez metros que o quintal é
grande.
- Cor?
- Pode ser azul, que é a cor do céu, e
molas?
- Ter sacos com doze mas cores de
mistura, não pode “escoler”. Pode ser “amalelo”, “vermelo”, Azul, misturado,
sacos de doze.
- São também dois sacos com molas...
- Eu não sair do balcão, há na segunda
fileira.
Foi assim que João foi buscar a corda
plástica e as molas, já meio aborrecido com o chinês que nada fazia sem ser
indicar os caminhos, mas sem largar a caixa registadora que guardava o dinheiro
e poucas faturas fazia. Olhava os espelhos redondos como o dos cruzamentos das
ruas que tinha colocado nos cantos superiores da loja, tecnicamente e de onde,
vigiava todas as prateleiras.
João colocou a corda plástica e as molas
no balcão e pediu para pagar.
- Prego não quer?
- Não, tenho em casa.
- Quer saco?
- Sim.
- Tem que pagar saco à parte.
- Não, guarde a merda do saco, levo na
mão!
Raio de Chinês!
-Não precisa falta educação, não quer
não quer - e praguejou em chinês.
Levou as compras, meteu-se no jipe e foi
até à courela, arrendada a Avelino e onde havia bastantes coisas já feitas e
muitas trazidas, entre elas, os porcos com pocilgas feitas e o trator verde com
garagem das alfaias acabada. Vigas de madeira e folhas de zinco.
Tirou o cadeado do portão, abriu-o e
meteu dentro também o jipe, junto da palha e dos utensílios agrícolas.
Fechou depois ambas as portas e meteu a
tranca de pinho no interior encaixada
nas albardas aparafusadas às vigas onde as portas estavam depositadas.
Ali, só poderia entrar quem ele
autorizasse.
Sentou-se num fardo de palha, deitou num
copo de plástico a aguardente do Avelino, bebeu um e dois e três e ficou e
ficou e foi ficando à espera da amiga, talvez para ganhar força para esse
encontro que sabia ter que se realizar.
Repassou-lhe a vida dos últimos anos
enquanto os sentidos lhe iam turvando os pensamentos e as memórias.
Deixou no jipe as molas da roupa quando
foi buscar a corda azul cor de céu.
Subiu à roda traseira do trator verde e passou-a por cima da trave onde foram assentes as folhas de zinco.
Puxou ambas as partes, fez uma argola numa delas por onde passou a outra ponta. Cortou-a com um isqueiro aceso, depois de lhe tirar as medidas necessárias. Baixou do trator. Esticou-a e atou-a ao gancho do reboque. Subiu à roda grande novamente, primeiro pelo degrau de subida, passou o corpo pelo lado das mudanças e colocou os dois pés sobre o banco onde tantas vezes Preciosa esteve sentada.
Do banco um primeiro pé sobre o grande guarda lama verde, depois o outro. Alargou a argola grande e meteu-a na cabeça. Olhou a trave, depois acompanhou com a vista a ligação ao reboque e meteu o dedo no pescoço experimentando com a outra mão o fechar e abrir do colar.
Meteu a mão no bolso da camisa, tirou um cigarro, acendeu-o e começou a fumar.
Sabia que a amiga negra chegaria quando o cigarro acabasse.
Assim foi, atirou a pirisca e deu um passo em frente, dois ou três movimentos, até que a amiga morte chegou.
Silêncio.
Deixou de baloiçar e ali ficou em linha reta, os olhos curiosamente abertos, os pés a trinta centímetros do chão.
Para ele, tudo tinha terminado.
Já não ouviu o cão, alentejano de cabeça enorme, que começou a ladrar sem parar, da parte de fora do portão fechado.
in A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
...a ser escrito...
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