Foi para o rio talvez
procurando a sua corrente, que tudo leva e tudo lava. As mulheres, que como
correntes de água se cruzaram na vida de Alfredo Frazão, estavam catalogadas
por ele, armazenadas nos cinco oceanos.
Conheceu mulheres frias, belas
como os glaciares, escondidas na enormidade da surpresa, revelando apenas as
pontas, icebergues que apenas se revelavam superficialmente, com todo um
mistério submerso, medo e armadilha nas profundezas, mais escondido na escuridão
do que o que mostravam frente à luz. Não prolongava as relações, eram curtas,
duravam o suficiente para saber que tinha que sair daí. Nada era produtivo, as
sementes não se fixavam, não originavam novas vidas, novas esperanças. Eram
apenas momentos, belos e aventureiros, adrenalina de sobrevivência, lindos e
raros em fotografias, não conhecidas pelo mundo, artesanato onde nenhuma peça é
igual entre si, mas cansativas pela continuidade do colorido. Inseto preso
momentaneamente em teia de aranha invisível. Cruéis, punhais gélidos erguidos
ao céu, mas que bastava uma ponta de calor, para lhes inverter a direção.
Passava Alfredo rapidamente a alvo das suas lâminas de gelo afiado. Pouco
confiáveis, sem conseguirem ser porto de abrigo, temia-as e com o tempo, foi-se
afastando delas, fechando portas e janelas, regressando ao calor do berço.
Abandonou-as na prateleira do
Ártico e do Antártico.
Conheceu também mulheres azuis-escuras
e profundas. Enormes, vastas até ao infinito. Céu coberto de milhões de
estrelas. Mulheres que se deixavam tocar nos seus limites por outras águas,
outros caminhos. Calmas e embaladoras em linhas sem horizontes nem fronteiras.
Gigantescas e tranquilas na pose, no seu território com caráter. Albergadoras
de ilhas, milhares, como filhos amados. Braços e dedos abertos na vastidão,
mas…há sempre um mas…com limites, que uma vez ultrapassados as tornavam
ciclónicas, iradas, devastadoras, ondas de cinquenta metros, rodopiando em
todos os sentidos e ventos despertos e cansados de tanta calmia, transformados
em remoinhos sem controlo, devoradores de barcos e passaporte para as terras
que as comprimiam, levando gentes engolidas na raiva da espuma. Sabia-se que
depois dessa fúria, regressava sempre a bonança, como em qualquer temporal e
também sabia Alfredo, que essas fúrias eram passageiras. Conheceu bastantes,
temperamentais, mas meigas, bofetada e carícia. Às vezes procurava na
prateleira, Pacífico, a memória de uma ou outra que gostava de recordar.
Também conheceu mulheres de
canela, mais odores que cheiros, mais sabores do que gostos. Mulheres curiosas,
ou espelhos da sua curiosidade? Diferentes, mistérios a descobrir debaixo das
sedas coloridas, das danças teatrais com cheiros a incenso ou dos pés descalços
debaixo do tecido grotesco, mas simples, bordado pelas suas mãos nos seus
teares artesanais, que faziam nascer as cores. Nunca soube distinguir uma
chamuça de um cabelo comprido, um pescoço altivo de um cheiro a sândalo. Mesmo
quando os rostos lhe estavam vedados por telas que lhe impediam de sentir o
respirar, descobria nos olhos, batiam como um coração e levavam-no, a adivinhar
o que escondiam e a aumentar o prazer, depois da queda do pano, neste caso da
abertura, como num teatro, recheado de mistério e aguçado pela descoberta.
Nunca se atreveu a trazer nenhuma, a não ser uma vez uma macaense, uma mistura
diasporiana, que rapidamente se deu conta que estava matando dia a dia, como
papoila arrancada da terra no Alentejo. Deixou-a ir, soltou-a. Tudo menos vê-la
a definhar-se-lhe nos braços. As mulheres que conheceu nessas paragens, só
podiam ser saboreadas lá, nunca trazidas para mundos desconhecidos. Guardava-as
todas numa prateleira a que chamava, Indico.
Restavam as Atlânticas, as que mais e melhor conheceu. Deram-lhe filhos continuadores de vidas. Caravelas. Caminhos. Saltos de Oceano em Oceano. Mestiçagem.
A mulher que guardava na
prateleira Atlântico era um caldo de destinos, história e culturas. E não me
venham falar desenquadradamente da escravatura. Sim, fora de contexto, de
ignorância temporal. Escravos aqueles que trabalham hoje por pouco ou nenhum benefício.
As que continuam a ser vítimas de violência de género e todos os que apesar do
conhecimento dos dias de hoje, fecham os olhos às desigualdades, neste mundo
hoje globalizado onde tudo se sabe, mas nada se faz. Mas as nossas origens, a
nossa história é a das descobertas, a dos passos em frente, a da curiosidade,
mesmo que forçada, no atrevimento de conhecer, de experimentar, de destapar, de
perceber o que estava no outro lado da cortina do conhecimento, num mapa plano
que acabava no Cabo Finisterra, na Galiza. Era nacionalista Alfredo Frazão e
orgulhoso da sua terra. O Atlântico, como as mulheres que guardava aí, nessa
prateleira de catálogo, era caminho e mudavam de cor e ritmos, entre a Europa,
a África ou o Brasil. Caminho e mistura de abraços de outros oceanos, outras
gentes.
Mas caramba, Fernanda não podia ser catalogada. Tinha o pior de cada oceano. Amanhã, quando falasse com Avelino, era forçoso tomar decisões. Iria contar-lhe tudo e pedir-lhe ajuda, que mais não fosse, um ombro.
Vinham-lhe à cabeça as piores imagens da sua vida e amaldiçoava a hora em que dissera a Sebastião que a filha podia ficar na sua casa. Deveria ter empregado um “poderia”, condicional a que tivesse acrescentado um “se”. Agora era tarde, não passava de um pobre velho nas mãos de uma vivente de experiências para ele desconhecidas.
(...)
In "A Taberna de Avelino Camejo"
No prelo.
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