miércoles, 18 de agosto de 2021

UM CHEIRINHO / Capítulo 48 de "A TABERNA DE AVELINO CAMEJO", muito em breve nas casas de leitores e amigos.


48. Água

Foi para o rio talvez procurando a sua corrente, que tudo leva e tudo lava. As mulheres, que como correntes de água se cruzaram na vida de Alfredo Frazão, estavam catalogadas por ele, armazenadas nos cinco oceanos.

Conheceu mulheres frias, belas como os glaciares, escondidas na enormidade da surpresa, revelando apenas as pontas, icebergues que apenas se revelavam superficialmente, com todo um mistério submerso, medo e armadilha nas profundezas, mais escondido na escuridão do que o que mostravam frente à luz. Não prolongava as relações, eram curtas, duravam o suficiente para saber que tinha que sair daí. Nada era produtivo, as sementes não se fixavam, não originavam novas vidas, novas esperanças. Eram apenas momentos, belos e aventureiros, adrenalina de sobrevivência, lindos e raros em fotografias, não conhecidas pelo mundo, artesanato onde nenhuma peça é igual entre si, mas cansativas pela continuidade do colorido. Inseto preso momentaneamente em teia de aranha invisível. Cruéis, punhais gélidos erguidos ao céu, mas que bastava uma ponta de calor, para lhes inverter a direção. Passava Alfredo rapidamente a alvo das suas lâminas de gelo afiado. Pouco confiáveis, sem conseguirem ser porto de abrigo, temia-as e com o tempo, foi-se afastando delas, fechando portas e janelas, regressando ao calor do berço.

Abandonou-as na prateleira do Ártico e do Antártico.

Conheceu também mulheres azuis-escuras e profundas. Enormes, vastas até ao infinito. Céu coberto de milhões de estrelas. Mulheres que se deixavam tocar nos seus limites por outras águas, outros caminhos. Calmas e embaladoras em linhas sem horizontes nem fronteiras. Gigantescas e tranquilas na pose, no seu território com caráter. Albergadoras de ilhas, milhares, como filhos amados. Braços e dedos abertos na vastidão, mas…há sempre um mas…com limites, que uma vez ultrapassados as tornavam ciclónicas, iradas, devastadoras, ondas de cinquenta metros, rodopiando em todos os sentidos e ventos despertos e cansados de tanta calmia, transformados em remoinhos sem controlo, devoradores de barcos e passaporte para as terras que as comprimiam, levando gentes engolidas na raiva da espuma. Sabia-se que depois dessa fúria, regressava sempre a bonança, como em qualquer temporal e também sabia Alfredo, que essas fúrias eram passageiras. Conheceu bastantes, temperamentais, mas meigas, bofetada e carícia. Às vezes procurava na prateleira, Pacífico, a memória de uma ou outra que gostava de recordar.

Também conheceu mulheres de canela, mais odores que cheiros, mais sabores do que gostos. Mulheres curiosas, ou espelhos da sua curiosidade? Diferentes, mistérios a descobrir debaixo das sedas coloridas, das danças teatrais com cheiros a incenso ou dos pés descalços debaixo do tecido grotesco, mas simples, bordado pelas suas mãos nos seus teares artesanais, que faziam nascer as cores. Nunca soube distinguir uma chamuça de um cabelo comprido, um pescoço altivo de um cheiro a sândalo. Mesmo quando os rostos lhe estavam vedados por telas que lhe impediam de sentir o respirar, descobria nos olhos, batiam como um coração e levavam-no, a adivinhar o que escondiam e a aumentar o prazer, depois da queda do pano, neste caso da abertura, como num teatro, recheado de mistério e aguçado pela descoberta. Nunca se atreveu a trazer nenhuma, a não ser uma vez uma macaense, uma mistura diasporiana, que rapidamente se deu conta que estava matando dia a dia, como papoila arrancada da terra no Alentejo. Deixou-a ir, soltou-a. Tudo menos vê-la a definhar-se-lhe nos braços. As mulheres que conheceu nessas paragens, só podiam ser saboreadas lá, nunca trazidas para mundos desconhecidos. Guardava-as todas numa prateleira a que chamava, Indico.

Restavam as Atlânticas, as que mais e melhor conheceu. Deram-lhe filhos continuadores de vidas. Caravelas. Caminhos. Saltos de Oceano em Oceano. Mestiçagem.

A mulher que guardava na prateleira Atlântico era um caldo de destinos, história e culturas. E não me venham falar desenquadradamente da escravatura. Sim, fora de contexto, de ignorância temporal. Escravos aqueles que trabalham hoje por pouco ou nenhum benefício. As que continuam a ser vítimas de violência de género e todos os que apesar do conhecimento dos dias de hoje, fecham os olhos às desigualdades, neste mundo hoje globalizado onde tudo se sabe, mas nada se faz. Mas as nossas origens, a nossa história é a das descobertas, a dos passos em frente, a da curiosidade, mesmo que forçada, no atrevimento de conhecer, de experimentar, de destapar, de perceber o que estava no outro lado da cortina do conhecimento, num mapa plano que acabava no Cabo Finisterra, na Galiza. Era nacionalista Alfredo Frazão e orgulhoso da sua terra. O Atlântico, como as mulheres que guardava aí, nessa prateleira de catálogo, era caminho e mudavam de cor e ritmos, entre a Europa, a África ou o Brasil. Caminho e mistura de abraços de outros oceanos, outras gentes.

Mas caramba, Fernanda não podia ser catalogada. Tinha o pior de cada oceano. Amanhã, quando falasse com Avelino, era forçoso tomar decisões. Iria contar-lhe tudo e pedir-lhe ajuda, que mais não fosse, um ombro.

Vinham-lhe à cabeça as piores imagens da sua vida e amaldiçoava a hora em que dissera a Sebastião que a filha podia ficar na sua casa. Deveria ter empregado um “poderia”, condicional a que tivesse acrescentado um “se”. Agora era tarde, não passava de um pobre velho nas mãos de uma vivente de experiências para ele desconhecidas.

(...) 

In "A Taberna de Avelino Camejo"

No prelo.

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