Do Nosso Cantinho para o vosso Cantão
Novo ano letivo e um Senhor chamado Sampaio
Talvez da idade, quem sabe, cada vez que começa a escola,
menos vontade tenho de trabalhar. Quarenta e dois anos de serviço e aí estou,
com sessenta e quatro de idade, a fazer mais um, nesta reforma que tarda e vai
aumentando, não em benefícios, mas em tempo. Agora, aumentaram mais um mês,
grão a grão vão enchendo o papo da galinha, sessenta e seis anos e sete meses.
Os meus colegas tratam-me por você, alguns foram alunos meus
e andam com contratos a prazo, correndo o país, numa volta a Portugal, paga do
seu bolso, procurando uma camisola amarela que lhes permita parar, casar, ter
filhos, e alguns, andam nesta volta há 15 anos, contrato a contrato, quilómetro
a quilómetro.
Comecei ontem, depois de com duas doses da vacina, me terem
de novo escarafunchado o nariz. Precavidos, ao mesmo tempo que entregam aos
alunos manuais escolares já escritos e mal apagados, metendo na casa de cada
um, para uso diário, livros que vêm sabe lá de quem, apagados por gente que se
desconhece e cortando aquela alegria que todos nós tivemos dos livros e
materiais novos, que nos faziam começar o ano cheios de curiosidade. Desinfetam
mesas e cadeiras a toda a hora, cada professor recebeu um conjunto de máscaras
e marcadores para escrever nos quadros, individuais, não podem os alunos trocar
materiais o – empresta-me uma borracha? – acabou, é perigoso, mas metem livros
inapropriados, usados na casa de milhões de crianças portuguesas, sem se saber
as suas origens, enquanto as bibliotecas escolares, têm fitas vermelhas e
brancas, a trancar os livros que não podem ser requisitados…pela pandemia que
continua.
Talvez seja da idade, mas ando confuso e tenho preguiça até
de reclamar. Tenho tanta coisa que gostava de fazer ainda, e a escola come-me o
tempo, sem entender que já não corro, não salto à corda, não brinco da mesma
forma com os meus alunos, só sentado na cadeira ou no sofá ou ainda, no chão
com o meu neto.
Sou avô.
A minha escola está cheia de avós e apesar de vários
concursos abertos, não há professores. Não há mais corredores de fundo para
entrarem na corrida da volta a Portugal. Na escola de formação de professores
do meu distrito, este ano, saíram zero professores. Ainda se matricularam três,
mas mudaram de curso a meio.
Tenho preguiça e ontem, senti vergonha de a ter.
Portugal acordou de luto com o desaparecimento de Jorge
Sampaio. Desde as lutas académicas, passando pela Câmara de Lisboa onde
erradicou as barracas, pela Presidência da República onde se empenhou na causa
de Timor-Leste, onde foi pessoalmente três vezes, muitas noites sem dormir, uma
vontade indomável de apoiar uma saída digna para aquele povo, e já velho,
mandou parar o carro quando viu os senhores da Troica a tomarem café numa
pastelaria. Entrou nela aquele furacão ruivo, como lhe chamou Marcelo Rebelo de
Sousa, aproximou-se da mesa, dedo erguido e com o seu inglês perfeito
confrontou-os:
- Os senhores não sabem nada deste país!
Foi olhando para a vida deste Homem, que senti vergonha da
minha preguiça, da minha desistência.
Vou continuar.
Há pessoas que nos fazem mudar com seu exemplo.
Aragonez Marques
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