As Ferras
Catorze? Quinze? Dezasseis
anos? Foi por essa altura que decorriam “as ferras” de que vos falo.
Pediu-me a Noudar que
escrevesse algo. Touros, o tema, ou Toiros, talvez nao saibam que se pode
dizer de ambas as maneiras. Touros, mais campestre, mais rural, mais Alentejo,
mais sol de praça, Toiros, mais cidade, mais finura, mais português de academia
se academia houvesse, mais lugares à sombra.
Lembro-me, de cima deste meio
século que tenho, de um barracao, onde se guardavam as alfaias agricolas, que
nesse dia, o dia da “ferra”, se transformava em grande salao de comidas e
bebidas. Uma grande mesa ao meio, muitos cavaletes a sustê-la. Toalhas grandes,
de pano, algumas bordadas, sobrepostas nas pontas, esticadas, muitas, cobriam o
tampo da enorme mesa e as patas dos cavaletes. Sobre elas, uma imensidade de
pratos e iguarias. Nada de garfo e faca nesse dia, à mao, navalhas abertas e
cortantes.Um exagero de comida que definia, às vezes por presunção, o lavrador
que nao lavrava, o dono da terra, do barracao, das alfaias, dos cavaletes,
das toalhas, dos pratos, das iguarias e dos toiros.Toiros. Que quem os cuidava
chamava Touros.
Eram gentes de sol.
Por essa altura, teria o meu
pai, que nos deixou há três meses para sempre e cujo luto ainda nao tive tempo
de fazer, pouco menos do que a idade que tenho hoje, e era pela sua mao, pois
trabalhava nas veterinárias, que eu tinha contacto com esse dia, o dia da
“ferra”.
Logo cedo, as vacas e os
aprendizes de touro, eram metidas num redondel e contratavam-se “os forcados”,
um grupo dos próximos, o de Portalegre, o de Sousel... que os de Alcochete,
Vila Franca de Xira, Coruche ou Santarém, estavam destinados às “ferras”
Ribatejanas, para agarrarem o gado, um a um, que depois de bem sustido e caído
no chao, era alvo dos ferros em brasa que dormitavam com as pontas alaranjadas
de calor, no escaldante braseiro ateado
pela manha e que durava enquanto houvesse vaca ou cria que nao fosse ferrado.
Aproveitavam os donos essa imobilidade do bicho, e se agarrados uma vez, tudo
se faria aproveitando o momento, nao só a “ferra” como a vacinaçao e a
recolha de amostras de sangue para análise da brucelose, que nessa altura,
amedrontava os bolsos dos ganadeiros, e era aqui, que aparecia o meu pai e
entrava eu, catorze, quinze, dezasseis anos? Nao sei bem, mas que importa o
tempo se tudo continua igual, ou parecido, só que eu, deixei de ser convidado,
e agora, com o meu pai em viagem infinita e sem retorno, darei por encerradas
presenças fisicas, e manterei apenas as memórias que partilharei com filhos,
netos, amigos e com você.
Depois da “ferra” ( a vacinaçao
e a prevençao de doenças) nao é mencionada na especialidade deste dia, apenas
o ferro, a posse, o cheiro a carne queimada, o mugir agudo das reses...vinha a
festa.
Mas nao é critica esta
partilha consigo desta vivência juvenil, e nao o é, porque gostava, direi
mais, adorava, e sabendo que ia acompanhar o meu pai, bem antes dele acordar,
já eu estava desperto, excitaçao no corpo, e a enorme expectativa do dia diferente
que iria nascer para mim.
Levávamos o velho Lange Rover
dos Serviços Pecuários de Portalegre, a velha Intendência Pecuária de que o meu
pai era funcionário, e o cheiro do campo misturado com o “pecuzanol” e o
“tibenzol” dentro do gipe, os saltos do carro pela estrada de terra, os fatos
de macaco brancos e aqueles amanheceres, ainda ocupam um espaço previligiado
nos meus sentidos.
Depois do trabalho, seguia-se
o almoço, manchando as toalhas com nódoas de azeitona, molhos de cabrito, sopa de
cachola, pimenta que apaladava os
queijos frescos (comidos antes das análises), e um sem fim de sobremesas desde
o arroz doce até às “mousses” de todas as qualidades, cores e paladares.
Comia-se de pé. Todos sabíamos
porquê, ou quase todos, pois os noviços de nada se precaviam. O meu pai,
enquanto metia um panado na boca segurando com a outra mao o prato, dizia-me
sempre “ nao tires os olhos dos portoes”.
Eram portoes grandes, capazes
de engolir as ceifeiras debulhadoras, um em cada ponta do barracao, e entao,
quando menos se esperava, entrava por um deles uma vaca brava, tao assustada
como nós, correndo a caminho do outro portao, por onde entrava a luz e sabia
que estava a liberdade. Quanto aos comensais, largavam pratos e copos, saltavam
por cima das toalhas bordadas, entornavam jarros de pura cêpa, e as senhoras
também, e as crianças que os pais arrebatavam num impulso salvador. Depois,
quando a vaca saia, eram os risos, os comentários, o sangue que se aquecia com
os copos que se enchiam, a festa da “ferra”.
Descansava-se depois por ali,
debaixo dos sobreiros, as crianças andando de burro, as maes vigiando, os pais
curtindo a pançada ressonando pelas sombras, debaixo das azinheiras ou
protegidos pelas paredes exteriores do sítio da festa.
E às cinco horas, sempre às
cinco, havia um encontro marcado no redondel.
Era o culminar.
As senhoras e as crianças
recolhidas sobre as zorras dos tractores, ou das carroças de madeira fechadas
em círculo. Os homens, os rapazes, como um ritual, adrenalina à tona, esperando
a saída do novilho, as correrias à sua frente, os volteios, as fintas, os
medos, os risos da assistência. Começava entao a aparecer no público, canas ao
alto, rachadas nas pontas, com notas de escudo entaladas. Os moços, do grupo
convidado, que utilizavam “as ferras” para treinos das corridas de verdade, com
touros de verdade, sem nada receberem em troca do que o enaltecer da sua
vaidade, faziam-se caros. Deixavam que mais canas com notas subissem ao alto, e
quando contavam uma maquia interessante, saltavam para o redondel demonstrando
bravura. Alinhavam-se em fila indiana, o
primeiro chamava o novilho, pé ante pé, pavoneava-se frente a frente com o
animal. Batia-lhe as palmas, mais um passo curto, um salto chamativo, maos nas
ancas, “ei, touro lindo”, “ei, touro, touro, touro lindo”, e o novilho
arrancava, nobre, olhos fechados, como fechados ficavam os braços do forcado
galopando na sua cabeça.. Depois saltavam-lhe em cima os restantes moços,
desmanchando a fila, e um, o último a largar o touro, o rabojador, agarrado à
cauda do touro e flectindo um joelho, contrário à perna esticada, riscava um círculo no chao, como um compasso
marcando a terra.
Recolhiam depois as notas das
canas que se lhes apontavam, era a paga do seu esforço.
A sua bravura, a coragem que
aparentavam, estava arroupada pela técnica, por muitas “pegas” repetidas, por
muitas instruçoes passadas pelos mais velhos e concentradas no “cabo” do
grupo.
Podem na praça, reencontrar-se
com o animal da “ferra”, quatro, cinco anos depois, e aí sim, todo o trabalho
aparece na montra da praça.
Também esses dias fazem parte
da minha memória.
Tinha a sorte da corrida das
festas da minha terra, durar para mim todo o dia. Enquanto começava para a
maior parte do público às seis da tarde, todos os anos, religiosamente no dia
23 de Maio, Dia da Cidade de Portalegre, comemorando o foral que lhe foi
outorgado pelo rei D.Joao III, para mim, começava às oito horas da manha,
visitando os curros com o meu pai, verificando se os touros estavam em condiçoes,
assistindo ao sorteio dos animais pelos representantes dos cavaleiros, à
embolaçao dos touros, vendo as apostas feitas neste ou naquele animal.
Toda a manha se falava da corrida da tarde, e
curiosamente esse nao era para mim o melhor momento. Começava o crepúsculo da festa,
e por cada hora que passava o final aproximava-se doentio. Depois da
corrida, onde por decisao da lei portuguesa nao se matam os touros na praça,
assistia com mágoa ao desenrolar dos bastidores. Já nao ia ao jantar dos
toureiros, onde se cantava o fado. O meu pai levava-me para casa, mas um
dia vi.
Vi como sofriam os touros
depois da corrida portuguesa.
Sao colocados dois barrotes atravessados num
curto corredor, um por cima e o outro por baixo do pescoço do touro, tornando-o
num animal sem qualquer defesa. Sao-lhe depois arrancadas as farpas, com uma
navalha que lhes retalha a carne e deixa a nú buracos disformes de carne viva.
Depois, para que nao infecte (disseram-me), regam-se os buracos com creolina enquanto o touro berra e movimenta as partes traseiras sem sucesso de
liberdade. Várias horas depois, o animal tem febres altas, e ou morre no
matadouro doente e febril ou dizem, sao levados de novo para os prados onde se
curarao ou nao. Nao sei. Fui testemunha do matadouro, nunca acompanhei a
devoluçao do animal aos campos. Dizem que sim, que se curam, dizem até que sao
novamente vendidos para serem corridos em praças pequenas em negócios
fraudulentos e perigosos para os toureiros.
Talvez por isso, recorde “as
ferras”, a alegria que sentia tao cerca do touro, ou toiro.
Sol e Sombra.
Aragonez
Marques- in Revista Noudar
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