martes, 30 de enero de 2018

Resultados finais do Prémio Literário Joaquim Mestre
e
Cerimónia de Entrega do Prémio


Na sequência da 1.ª edição do Prémio Literário Joaquim Mestre, instituído pela ASSESTA - Associação de Escritores do Alentejo, em parceria com a Direção Regional de Cultura do Alentejo e com o apoio da Câmara Municipal de Beja, as entidades promotoras têm a honra de divulgar, por ocasião do 2.º aniversário da ASSESTA, os resultados desta primeira edição, que contou um total de 22 textos originais recebidos para concurso, o que entendemos como uma participação relevante.

Foram apurados 14 trabalhos finalistas, tendo sido atribuídas as seguintes distinções: menção honrosa para os textos «A Mulher do Sargento Espanhol», da autoria de  Aragonez Marques, e «Alentejo, Alentejo», da autoria de Ivo Daniela Lima de Carmo e na categoria de texto vencedor do prémio «Um certo incerto Alentejo», da autoria de António José da Costa Neves.

O prémio é instituído com o objetivo de promover, defender e valorizar a Língua Portuguesa e a Identidade e Diversidade cultural da Região Alentejo, suas tradições, de promover e incentivar a Criação Literária nas modalidades de conto e romance, o gosto pela Leitura e pela Escrita e ainda, simultaneamente, homenagear o romancista e contista alentejano Joaquim Mestre.

cerimónia de entrega do prémio e das menções honrosas terá lugar dia 10 de Fevereiro de 2018, às 16 horas, na Biblioteca Municipal José Saramago, de Beja, e contamos com todos para festejar a literatura, o livro e a leitura.
http://www.cultura-alentejo.pt/destaques,0,4870.aspx

domingo, 28 de enero de 2018

CRUZ DE PAU


CRUZ DE PAU

A primeira mulher que vi nua na minha vida estava deitada numa mesa de mármore na casa mortuária do cemitério da cidade onde nasci.

Era mais branca do que a mesa, tinha os pés juntos, as unhas pintadas de cor-de-rosa e os braços colocados ao lado do corpo como se estivesse em sentido.

Os olhos fechados deixavam adivinhar pelo tom das pálpebras uma cor clara, talvez verde mais do que azul, por ser escuro o triângulo perfeitamente desenhado por baixo do ventre.

Mas era o buraquinho vermelho, por onde saíra a bala, lavado e como a marca de um beijo, que sobressaia apesar da pequenez.

 Por ele fora empurrada a vida, fria e rápida, montada na velocidade do disparo que lhe queimou as costas e arrebatou a alma quente e lenta.

Dela apenas se sabia ser mulher, entre os vinte e os trinta anos, que usava na hora da morte umas botas altas e uma saia curta, guardadas na entidade forense que decretou que se expusesse ali, e as portas fossem abertas, de duas em duas horas, para que o povo a pudesse identificar.

Eu ia pela mão do padre, director do internato onde estava, desde que o meu pai ali me deixara, depois de a minha mãe, dizem, que ainda hoje não sei bem, nos ter abandonado para ir viver com outra família, a de um homem com quatro filhos, viúvo e com carência de afectos que descobriu nos de minha mãe, assim me contaram, a solução dos problemas da sua família.

O padre levava-me pela mão, bem apertada, não fosse perder-me naquele carrossel de pessoas que andavam à volta, passo a passo, nova corrida nova viagem, observando cada traço da mulher assassinada.

Lembro-me da ponta dos seus sapatos de verniz, ora tapa que esconde, debaixo da sotaina comprida e eu, olhava para cima guiado pela fileira de botões que passando pelo colarinho branco, como uma fronteira, destapava do outro lado um rosto esguio e sorridente com uma boca que se abria e fechava e soltava sons “é bonita não é?”

Eu baixava a cabeça envergonhado e o padre apertava-me a mão com mais força.

Naquele orfanato, passei anos com agasalho e comida, com oitenta irmãos de infortúnio que compartilhavam o mesmo quarto, onde oitenta camas ordenadas, lado a lado, de ferro azul claro e colcha de pano branco, denunciavam a camarata pelo cheiro de couro e humidade que escorria, escondida, pelas paredes pintadas de cinzento.

O meu pai todos os meses me visitava e quando calhava também.

 Quando os domingos tinham sol, levava-me a lanchar, uma laranjada e um bolo de arroz, antes de me entregar aos padres e às paredes, até que me visitasse de novo, se pudesse, se juntasse, se tivesse trabalho, para a viagem de Lisboa ali.

As suas visitas, começavam muito antes de me visitar.

Soube da morte do meu pai no dia que me chamaram ao director sem ser pelo altifalante do pátio.

Tinha dezoito anos e estava a semanas de abandonar, por idade, a instituição.

O bom padre, que o tempo tinha marcado com o ritmo do nosso crescimento moveu os lábios grossos “já não sofre mais”.

Houve um período de tempo em que deixou de me visitar. 

Não sentia a falta do bolo e da laranjada nos domingos com sol, mas do cheiro do seu casaco e da rudeza das suas mãos grossas e grandes, ou as minhas eram pequenas e finas.

Diziam-me os padres que estava de viagem, que voltaria se Deus quisesse e que as minhas orações eram importantes. 

Por isso levei dias e dias soltando rezas, orações e sacrifícios.

Levei anos a rezar, à noite, ao levantar, várias vezes durante o dia, quando o cheiro do seu casaco me despertava a saudade.

Quando finalmente voltou a visitar-me estava diferente. 

Mais triste e mais calado. 

Os cabelos tinham mudado de cor e as suas mãos eram mais leves e trémulas.

Só no dia que me informaram da sua morte me disseram que a sua viagem foi feita parado, numa ilha longe de todos, numa camarata de adultos por ordem de um juiz.

Quando larguei a instituição, o velho director deu-me a chave de um quinto andar numa travessa dos arredores de Lisboa, Cruz de Pau, o nome da terra onde viveu os últimos dias. 

A casa estava em meu nome, uma conquista sua, um orgulho, duas divisões, uma cozinha e uma casa de banho, de camas enferrujadas onde iria por testamento começar a minha vida sozinho.

Deu-me dinheiro, a morada de uma fábrica onde deveria pedir trabalho e um bilhete de comboio.

Cheguei numa quarta-feira, meti a chave na porta e rodei. 

Empurrei devagar e abri o começo da minha vida adulta.

Duas camas, duas banquinhas de cabeceira, uma televisão com antena interna, um frigorífico vazio com seis garrafas vazias ao lado.

A minha casa.

Fui adulto durante vinte minutos, até que tocou a campainha e apareceu Deolinda “ Raúl? Meu menino, o teu pai falou-me muito de ti” e começou a falar-me dele, homem triste, sempre infeliz, onde eu aparecia na sua vida como vida “ se não fosse pelo menino Raul, há muito que nos tinha deixado e não só agora”.

As garrafas vazias ao lado do frigorífico eram a prova da sua infelicidade, fígado em explosão de combate à tristeza.

“Gostava muito de si, era eu que lhe cuidava da roupa, lhe limpava a casa, lhe respondia quando lhe apetecia falar.”

Deolinda era uma mulher madura, calma, os cabelos desarranjados por ter deixado de acreditar em si, mas uma ternura capaz de me olhar e de me chamar “menino”.

O seu paizinho pediu-me que lhe desse esta chave, da caixa que está em cima do guarda-fato e talvez incomodada com a barba que despontava na minha cara, reparei que passara a tratar o “menino” por você.

Nessa noite, abri a caixa.

Tinha dentro vários montinhos de cartas com laço.

O meu pai e a minha mãe tinham-se amado, num tempo, num momento.

Pela noite, tomei banho colocando em ruído os canos oxidados da casa de banho, pequena mas minha.

Sentei-me na cama, abri a gaveta da banquinha de cabeceira. 

Uma fotografia de uma mulher com um bebé ao colo, um pano de flanela verde envolvendo alguma coisa pesada e um frasco de verniz cor-de-rosa já ressequido.

Abri o pano verde como quem desembrulha um caramelo gigante e depois das voltas apareceu uma pistola negra.

Lembrei-me das pontas dos sapatos envernizados do director do meu orfanato, da sua mão apertando a minha no dia em que descobri numa mesa de mármore a primeira mulher nua que vi na minha vida.

Só então entendi que o bom sacerdote me tinha levado pela mão a despedir-me da mulher que me tinha trazido ao mundo.

Aragonez Marques 
2015 
(...  publicado numa colectânea
de contos de escritores ibéricos
em Espanha...) 

                                                       


CRUZ DE PALO
 (Original em Castelhano)


La primera mujer que vi desnuda en mi vida estaba tendida en una mesa de mármol en el tanatorio del cementerio de la ciudad donde nací. Era más blanca que la mesa, tenía los pies unidos, las uñas pintadas de rosa y los brazos colocados junto al cuerpo. Los ojos cerrados dejaban adivinar, por el tono de los párpados, un color claro, más verde que azul, por ser oscuro el triángulo perfectamente dibujado bajo el vientre. Pero era el agujerito rojo, por donde había salido la bala, lavado y como la marca de un beso, el que sobresalía a pesar de su pequeñez. A través de él le había sido empujada la vida, fría y rápida, montada en la velocidad del disparo que le quemó la espalda y le arrebató el alma caliente y lenta. De ella sólo se sabía que era mujer, entre los veinte y los treinta años y que llevaba, en la hora de la muerte, unas botas altas y un vestido morado, guardados en la entidad forense que decretó que el cadáver estuviese allí expuesto y que las puertas se abrieran, cada dos horas, para que la gente lo pudiese identificar.
Yo iba de la mano del sacerdote, director del reformatorio donde estaba desde que mi padre allí me dejase, después de que mi madre, dicen, que todavía hoy no lo sé bien, nos abandonara para ir a vivir con otra familia, la de un hombre con cuatro hijos, viudo y con carencia de afectos que descubrió, en los de mi madre, la solución a los problemas de su familia.
El sacerdote me llevaba de la mano, bien apretada, para que no me perdiese en aquel carrusel de personas que andaban alrededor, paso a paso, nueva carrera, nuevo viaje, observando los trazos de la mujer asesinada.
Recuerdo la punta de sus zapatos de charol, ora asoma, ora esconde, debajo de la larga sotana que yo miraba desde abajo guiado por la hilera de botones que, pasando por el blanco alzacuello como una frontera, destapaba del otro lado un rostro enjuto y sonriente con una boca que se abría y se cerraba y soltaba sonidos “es guapa, ¿verdad?”. Yo bajaba la cabeza, avergonzado. El sacerdote me apretaba la mano con más fuerza.
En aquel reformatorio pasé años con abrigo y comida junto a otros hermanos con los que compartía la misma habitación en la que ochenta camas ordenadas, de lado a lado, de hierro de color azul claro y colcha blanca, denunciaban la caserna con un olor a botas de cuero y a la humedad que escurría, escondida, por las paredes pintadas de gris.
Mi padre venía a verme todos los meses y cuando caía, normalmente cuando los domingos tenían sol, me llevaba a merendar, una naranjada y un pastel, antes de entregarme otra vez a los curas y a las paredes hasta su próxima visita, al mes siguiente, si pudiese, si juntase, si hubiese tenido trabajo para costearse el viaje desde la capital hasta allí. Sus visitas comenzaban mucho antes de su llegada.
Supe de la muerte de mi padre el día que me llamaron al director sin ser por el altavoz del patio. Tenía dieciocho años y me quedaban semanas para abandonar, por edad, la institución. El buen sacerdote, al que el tiempo había marcado con el ritmo de nuestro crecimiento, movió los gruesos labios “ya no sufrirá más. Reza por sus pecados”.
Hubo un periodo de tiempo en el que dejó de visitarme. No sentía la falta del pastel y de la naranjada pero sí del olor de su chaqueta y de la rudeza de sus manos robustas y grandes. Los curas me decían que estaba de viaje, que volvería si era voluntad de Dios y que mis oraciones eran importantes. Por eso pasé días y días soltando rezos, oraciones y sacrificios. Me pasé años rezando por la noche, al levantarme, varias veces durante el día; siempre que el olor de su chaqueta me despertaba la añoranza.
Cuando finalmente volvió a visitarme estaba diferente, más triste y más callado. El cabello le había cambiado de color y sus  manos eran más ligeras y trémulas. Sólo el día que me informaron de su muerte me dijeron que su viaje lo había hecho parado, en una isla lejos de todos, en una celda aislada por orden de un juez.
Cuando dejé la institución, el viejo director me dio la llave de un quinto piso situado en una travesía de los alrededores de la capital. Cruz de Palo era el nombre de aquel pueblo donde mi padre vivió sus últimos días. La casa la había puesto a mi nombre, una conquista suya, un orgullo. Dos habitaciones, una cocina y un cuarto de baño de tuberías oxidadas donde empezaría, por testamento, mi vida en solitario. Junto con la llave, también me dio un poco de dinero, la dirección de una fábrica donde podía pedir trabajo y un billete de tren.
Llegué un miércoles, metí la llave en la puerta y la giré. Empujé despacio y abrí el comienzo de mi vida adulta. Una cama, dos mesillas de cabecera, un armario, una televisión con antena interna, un frigorífico vacío con seis botellas vacías junto a él… mi casa. Adulto durante veinte minutos,  hasta que sonó el timbre y apareció Angélica “¿Raúl?, mi niño, tu padre me habló mucho de ti”. Comenzó a hablarme de él, me dijo que fue un hombre triste, siempre infeliz y que yo fui lo único que apareció en su vida como vida. “De no haber sido por su niño Raúl haría ya mucho tiempo que nos habría dejado”. Las botellas vacías del frigorífico eran la prueba de su infelicidad, hígado en explosión de combate a la tristeza. “Te quería mucho. Yo le lavaba la ropa, le limpiaba la casa, le escuchaba cuando tenía ganas de hablar”.
Angélica era una mujer madura, tranquila y con el pelo descuidado, por haber dejado de creer en sí misma, pero con una ternura capaz de verme y de tratarme como a un “niño”.
“Tu papá me pidió que te diera esta llave, es de la caja que está encima del armario”.
Esa tarde, abrí la caja. Tenía dentro varios atadijos de cartas sujetos con un lazo. Mi padre y mi madre, la mujer que para mí siempre había sido un misterio, se habían amado, en un tiempo, en un momento.
Por la noche me metí en la bañera, activando el barullo de las tuberías oxidadas del cuarto de baño, pequeño pero mío.
Me senté en la cama, abrí el cajón de la mesilla. Una fotografía de una mujer con un bebé en su regazo, un paño de franela verde envolviendo algo pesado y un frasco de esmalte de uñas rosa.
Abrí el paño verde, como el que abre un caramelo gigante, y apareció una pistola negra.
Me acordé de las puntas de los zapatos brillantes del director de mi reformatorio, de su mano apretando la mía, el día en que descubrí en una mesa de mármol la primera mujer desnuda que vi en mi vida.
Sólo entonces entendí que el buen sacerdote me llevó de la mano a despedirme de la mujer que me había traído al mundo.                                     


Aragonez Marques 
2015 
(...  publicado numa colectânea
de contos de escritores ibéricos
em Espanha...) 

sábado, 20 de enero de 2018

UM CONTO CHAMADO 115


Este espelho é tão velho como eu.

Não se lhe nota o passar do tempo, como eu também não vi o seu passar. 

Faço diante dele a barba todos os dias, ano após ano, e não me vi envelhecer.

Os retratos sim, esses param o tempo.

Sou mesmo aquele da fotografia da festa de anos da minha filha?

O bolo tem quatro velas.

Ela sim está diferente. 

Muito mais diferente do que eu.

Ainda me identifico com a fotografia reconhecendo-me. 

Ela não. 

Com vinte e dois anos, hoje, não tem fisicamente qualquer semelhança.

Estes anos também passaram sobre mim... só que o meu espelho me tem iludido.

Senti saudades, não do tempo, mas dela naquele tempo.

Agora reparo que tenho uns pelos brancos na barba.

Não é grave.

Grave, muito grave é o sentir-me tão branco por dentro.

Branco, não de puro, mas de vazio.

Vazio de amor.

A minha mulher, a quem há longos tempos escrevia longos poemas, fazia longas promessas e me auxiliava a desenhar longas esperanças de futuros, passou simplesmente a ser mãe e longamente dona de casa.

Mulher apenas, deixou cair frivolamente a minha, e eu, aos poucos, também deixei de ser dela.

Somos assim dois adultos que fingem sermos pertença um do outro ao pé dos outros.

Refugiados no trabalho, usamos para o seu escrupuloso desempenho o pretexto das filhas, e transformámo-nos em irmãos, às vezes amigos, defendendo espaços, mas culpando-nos mutuamente, ferozmente também, por termos deixado fugir o amor, e termos tido a infelicidade de que o destino nos tenha escolhido para enfrentar o medo do futuro.

Tratámos o nosso amor como algo que uma vez adquirido pensamos ser eterno, em vez de o tratarmos como um frágil bonsai que se tem que cuidar dia a dia.

Não trocamos as mãos nem as ideias há muito, nem os lábios em saudação, muito menos os corpos em prazer.

Houve tempos em que o fazíamos por gozo, depois por rotina, mais tarde por obrigação, obviamente amadurecidos pelo tempo e entrincheirados pelos problemas diários, deixámo-nos disso.

Passou a ser quando calha e menos apetece, normalmente após uma festa com amigos onde o álcool supera, ou esconde, a realidade.

Agora, já nem assim, e sentimos, angustiosamente que é a menoridade da filha mais nova que nos empurra a partilhar a casa e o desconforto de se ver passar os dias sem planos.

Mãos suadas nos bolsos, pensamentos em torvelinho de tentativas de fuga, Carlos Santiago abriu o porta-chaves, escolheu uma e meteu-a no carro.

A porta abriu-se e sentou-se nele. Fechou-a, ligou o rádio e recostou a cabeça no encosto do banco. 

Metade de uma vida perdida, tantas coisas que gostava ainda de fazer...

O Paco cantou-lhe por rádio "a ternura dos quarenta".

Levantou o som.
Meteu a primeira e arrancou.

Apetecia-lhe beber algo.

As luzes da discoteca confundiram-lhe o humor.

Entrou e pediu um whisky com duas pedras de gelo.

Uma mão tocou-lhe no ombro, era o Luís:

- Anda, vens mesmo a calhar, tenho aqui uma surpresa para ti.

Levou-o para uma mesa, onde lhe apresentou duas jovens, com vida e sonhos.

Enquanto o Luís saltou para a pista, ficou sentado com a que restou.

Apetecia-lhe conversar.

- Que fazes?
- Sou psicóloga.

Falou-lhe do eu, dos desenvolvimentos cognitivos, dos estádios onde se agrupam as resoluções de conflitos, da adolescência, da sexualidade, da sida, dos preservativos...

E o Luís dançava, dançava, dançava e bebia... e nunca mais vinha.

Chegou finalmente.

- Está tudo pago. Vamos embora daqui. Trouxeste carro? Óptimo, ela vai contigo e vens sempre atrás de nós.

Ordens consecutivas, que se cumpriram sem perguntas.

Encontrou-se no carro em plena noite com uma adolescente tardia a seu lado, à frente seguia o Luís noutra viatura com outra adolescente de quem ele nunca haveria de saber o nome.

Cruzaram a cidade, parando e arrancando ao ritmo dos semáforos.

O Luís parou à porta de um hotel grande. 

Catorze, quinze andares, garagem por baixo.

Saiu do carro, entrou na recepção e tornou a sair.

Trazia duas chaves nas mãos.

- Um quarto para cada um. Vou meter o carro na garagem. Venham atrás de mim.

Santiago olhou a companhia nos olhos.

Vestida de preto tentava aparentar mais idade, puxando conversas que tentassem comprovar o alto conhecimento que tinha da vida, mas que os poucos anos atraiçoavam.

Santiago olhou para ela:

-É uma situação inesperada. Queres mesmo subir?

Fez-se silêncio.

- E tu queres?
- Eu por mim...
- Mete o carro na garagem.

Carlos Santiago assim fez. Estacionou, chamou o elevador e ela deu-lhe a mão.

O pedaço grande de chapa presa à chave marcava o número 115.

Parou no 1º andar.

O Luís já lá estava, eufórico, macho e feliz, os filhos pequenos em casa da avó que a mulher, enfermeira, estava de turno naquela noite deixando-lha toda, inteirinha para ele.

- Mostra o teu quarto pá, é igual ao nosso. Amanhã o primeiro a acordar chama o outro. Divirtam-se.

E trancou-se no 116.

No 115, a história estava diferente. Santiago sentou-se na cama, enquanto a jovem despia a saia com cuidado e começava a desabotoar as mangas da camisa.

- Que se passa? Não te despes?

Santiago levantou-se, lembrou-se dos pelos brancos da barba e do branco do seu vazio, do espelho, da sua vida.

Colocou-lhe as mãos na cintura e perguntou-lhe:

- Acabaste o curso há muito tempo?
- Não, ainda estou a estagiar...
- Que idade tens?
- Vinte e dois anos.

Santiago afagou-lhe os cabelos, olhou-a com ternura nos olhos e disse-lhe:

- Não se vai passar nada entre nós.

Ela sorriu, apenas exclamou:

- Eu sabia...
- Onde queres que te leve?
- Fico em casa dela este fim de semana, foi o que disse aos meus pais...
- Bebeste muito, deita-te e tenta descansar.

Deixou-se dormir num repente.

Santiago puxou um cobertor e tapou-a. Parecia uma criança dormindo. O álcool tinha-a afectado bastante. Lembrou-se das suas filhas, e enquanto a via dormir, afagava-lhe a testa e aconchegava-lhe a roupa.

Estava a amanhecer depressa.

Santiago foi para a varanda do quarto e fumou, um, dois, três, muitos cigarros.

As luzes da cidade foram-se desmaiando com a claridade do dia.

Eram 5 horas da manhã.

No 116 tudo estava tranquilo. Mesmo assim arriscou-se a bater.

- Luís, abre.

Olhos de sono e muita bebida abriram-lhe a porta.

- Olha, a amiga da tua amiga está a dormir no quarto. Depois leva-as. Eu vou-me embora.
- Passou-se alguma coisa?
- Nada, absolutamente nada.

Desceu o elevador, meteu-se no carro e foi direito a casa.

Meteu a chave na porta e subiu ao quarto das filhas. Beijou-as, tapou-as e foi para o seu.

Despiu-se devagar para não acordar a mulher, embora adorasse que ela despertasse, e o amasse, e o acariciasse, e lhe deixasse pelo menos descansar entre os seus braços.

Deitou-se.

A mulher ao senti-lo disse-lhe meio a dormir:
- Cheiras mal da boca, vira para lá a cara.

Santiago olhou o tecto ainda meia hora. Quando sentiu que as lágrimas estavam a rebentar nos olhos, levantou-se, vestiu-se, saiu sem ruído, meteu-se no carro e avançou precipitadamente para a auto-estrada. 

As faixas de rodagem eram dele àquela hora. 

Cento e vinte, cento e trinta, abriu a janela e o vento da manhã lavou-lhe a cara e soltou-lhe o cabelo colando-lho e retirando-lho do rosto, cento e quarenta...

Ligou o rádio, novamente o Paco Bandeira cantando, outra vez,  "... a ternura dos quarenta...", cento e cinquenta...

Duas horas mais tarde o telefone tocou na sua casa.

O 115, o seu número da noite, tinha ligado para a policia, e a polícia para a sua residência.

A mulher atendeu. Subiu ao quarto das filhas e agarrou-se a elas em pranto:

- Meninas, meninas o papá está muito mal no hospital, teve um acidente e dizem que é grave.

Não teve coragem de lhes dizer nada mais.

A essa hora, Carlos Santiago já estava morto.


A.M.
1996


in- Retratos Esquecidos de uma Velha Gaveta ( na gaveta ).


lunes, 8 de enero de 2018

O MISSIONÁRIO




"Nascer no Alentejo, ao pé de uma estação de caminho de ferro, crescer com o hábito dos sons dos comboios, sentir o carrossel das luzes rápidas rompendo o silêncio das noites quentes de verão, e ficar.

Ficar sempre, sem ir nem vir, preso no cais de embarque, na planície pintada de sobreiros, sem nunca embarcar.

Ver a luz da máquina, farol minúsculo ao longe, aumentando cada vez mais até passar veloz, como cometa que arrasta a cauda luminosa e desaparece com ela no infinito dos carris de ferro.

A passagem por ele do comboio era sempre uma estrela cadente."



Fechou o caderno e pensou.
Não tinha nascido perto de qualquer estação de comboios. No Alentejo sim, naquela imensa terra de horizontes que se não atingem, por mais que se ande, se ande e se ande...

 A passagem rápida das janelas iluminadas vira-as nalgum filme, talvez.

Andado de comboio, uma vez, quando foi "às sortes", inspecção militar, com uma guia de marcha onde o exército lhe ofereceu um passeio de ida e volta ao Centro de Recrutamento Militar de Leiria, para se despir, todo em pelota, na frente de camuflados gigantescos que avaliavam as capacidades físicas para uma outra viagem, um outro bilhete, de barco, para outras terras e outros mares.

Mas entendia o pedaço de texto que acabara de escrever.

Entendia essa angustia de ter que ficar quando os empurrões para a partida eram tantos, e neste caso, ali, mesmo à mão, só que distante da coragem de enfrentar o novo.

Não tinha um espírito de aventureiro, no sentido da adrenalina. Tinha-o escondido na desculpa inconsciente do auxílio do outro como forma de se auxiliar a si mesmo.

De pequeno fascinava-o a revista "Audácia", que um amigo do pai, acabado de fazer um curso de cristandade, desses que com três dias mudam radicalmente os comportamentos por serem capazes de modificar os objectivos de vidas sem sentido, com afectos "de colores", lhe oferecera com uma assinatura anual.

Era uma revista feita por missionários para jovens.

Aquele trabalho de missão fascinava-o, não tanto por questões de fé, ou pelas heroicidades dos padres Josués que construíam igrejas no meio do mato. Agora a construção de hospitais sim, a multiplicação de escolas também, as lutas para conseguir alimentos ou mesmo os pequenos afagos aos negritos de enormes barrigas e pernas franzinas, de cujos rostos magros sobressaiam olhos grandes... era mesmo o que o impressionava.

Depois viver lá, calções e barba comprida, com tarefas diárias que tinham sempre resultados palpáveis.
Que se viam.
Trabalhar em função dos outros. Sem riquezas, longe de televisões, discotecas, bancos e repartições de finanças, apenas ali, perdido na descoberta, pores de sol como travesseiros, onde encostar a cabeça e dormir.

Casou no entanto, tirou um curso e se ambas as coisas não eram incompatíveis para que tal fosse possível, já os filhos nascidos desse casamento passaram a ter peso na decisão, peso porque teriam que decidir também e para eles, África, por toda uma informação colonial que lhes era distribuída por meios de comunicação ou filmes da moda não inocentes, era um paraíso a desfrutar. Um paraíso de prazer, com cocos e palhinhas, marisco, festas e hotéis, românticos, que madrugavam em frutas tropicais e águas límpidas de praias em toplesse com bandeiras portuguesas ondulando nos edifícios públicos.

A guerra, a fome, essas não ficavam por ali, era lá para o interior, porque o continente africano é enorme e de uma ponta, não se vê a desgraça da outra.

Se a família fosse para África, tomariam lá, certamente, rumos diferentes.
Ficaram.
Ele no entanto com aquele sonho reprimido, a família sem nunca mais se lembrar de tal coisa.
Passaram os anos.
Os filhos cresceram à velocidade da luz.

Com os filhos criados, o casal deixou de sentir a necessidade de o ser.

No tempo dos seus pais, o casamento era "até que a morte os separasse" e quando entrava a velhice, mais necessidade sentiam de se protegerem uns aos outros, dois a dois, agora que os filhos já não estavam.

Hoje é diferente.

Os casais recusam-se a envelhecer, descobrem no outro o reflexo do tempo, como num espelho, e porque a imagem lhes é ingrata, recusam-se a olhá-la.

Separam-se.

Elas, puxam em plásticas as peles do rosto e esticam-nas, forçando sorrisos de quem já não consegue fechar a boca e começam a vestir mini-saias.

Eles, calvos à frente, deixam crescer os cabelos que sobram, atam com elástico um rolinho atrás, cravam um brinco tímido e pequeno na orelha, vestem camisas de marca, compram óculos escuros que lhes disfarcem os papos dos olhos, vestem calções e bebem nas discotecas, onde deixam à porta bem visíveis, os carros desportivos.

Não se necessitam uns e outros, no fundo temem encontrar-se evitando um diálogo entre si, para não terem que recordar um passado que os envelhece.

Procuram misturar-se com gente mais nova, e esta, sem instrução e formação onde tenham estado presentes os cavaleiros andantes ou os príncipes encantados, alinham com estas meias-idades portadoras de cartões de crédito.

Também neste casal tal se passou, e a distância entre ambos era cultivada, para resultar o mais duradoura possível.

Apesar dos filhos terem mais de vinte anos (hoje fazendo parte de uma nova classe de adolescência devido à dependência paterna), o que lhes daria uma proximidade vertiginosa aos cinquenta anos, negavam-se determinantemente  a envelhecer, e ambos queriam começar tudo de novo. Como se tivessem vivido e terminado uma vida já, e houvesse tempo de viver uma segunda. Tudo de novo, a adolescência, as roupas, a música, até novos namorados, porque não?

Separam-se.

Os filhos, rodados nestas experiências pelas experiências múltiplas da maior parte dos seus colegas, aceitam bem.

Para eles até foi melhor.

Mais liberdade, se não deixava o pai, autorizava a mãe. Dinheiro tinham sempre pois os pais disputavam-se para ver quem dava mais, a custo sei lá de quê, trocando moedas em tentativas de substituir o amor que sabiam não dar conscientemente. Tinham até duas casas, duas portas sempre abertas em dois lugares distintos da cidade, e com essas duas portas abriram-se dezenas de mais. Durmo em casa do pai. Durmo em casa da mãe.

Depois por telefone:

- Dormiram aí em casa?

- Não, eu pensei  que estivessem contigo.

Tinham dormido por aí.

A separação dos pais tinha sido para eles uma liberdade precoce, uma autonomia para que não tinham sido preparados.

Custava-lhes às vezes encontrar os namorados dos pais nas suas casas. Por mais que estes se esforçassem, nos jantares ou no cinema, não conseguiam nunca substituir a mãe se fosse a namorada do pai ou o pai se fosse o namorado da mãe.

Tinham até manifestações de ciúmes que traduziam em comunicações ao outro lado.

Como a mãe ficava furiosa quando lhe diziam que no dia anterior ao jantar a namorada do pai estava lá...

Como o pai ficava furioso quando lhe diziam que no dia anterior, depois de jantar, o namorado da mãe os foi levar à discoteca e passou a buscá-los às seis horas da manhã…

Os filhos gostavam de ver os pais reagirem como crianças:

- Ele levou-os a ver o Benfica? Vocês sabem que ao Estádio da Luz só vão comigo. Sempre foram só comigo. Esse “gajo” é tanto do Benfica como eu do Clube de Freixo-de-Espada-à-Cinta. E ela foi? Comigo nunca queria ir.

- Ela é que vos cortou o cabelo? Quem autorizou? Olhem para a tua cabeça, estás horrível, deve ter aprendido na espelunca da cabeleireira onde costuma ir. O teu pai varreu os cabelos do chão? Comigo nunca pegou numa vassoura…

Haveria neste ciúme alguma réstia de amor?

E foi num desses dias em que a autoridade estava diminuída, que algo muito grave aconteceu.

- São duas da manhã, devem estar com a mãe.

- São quatro da manhã, devem estar com o pai.

Ambos pensaram que deveriam telefonar um ao outro, mas não pensaria o outro que se estava dando parte fraca, depois da última discussão em que entre gritos, insultos e ameaças se afirmou que nada mais havia para dizer, tendo-se a partir daí transformado os filhos em mensageiros?

- Deviam lá estar certamente – pensaram ambos acerca da casa um do outro.

Dormiram.

A única coisa comum que tiveram nessa noite em cada uma das suas casas, foi sem o saberem terem visto o mesmo filme na televisão, e o ciúme de que os filhos tivessem preferido dormir na casa do outro.

O relógio avançava dia dentro e a manhã de domingo surgiu ao mesmo tempo que o telefone tocou em casa dele.

Ouviu-o tocar lá ao longe, como a manhã, depois olhou o relógio de cabeceira e ergueu-se de um salto, era mesmo o telefone.

- Diga?

- Estou a falar com o Senhor Raul dos Santos Costa Brás?

Aquele seu nome completo dito assim do outro lado por voz desconhecida, deixou-o intranquilo.

Houve um acidente. Falo do hospital. Deveria vir…

- A minha mulher?

- Não…

Deixou cair o auscultador, enfiou as calças, a camisa, desceu a escadaria do prédio, meteu-se no carro e partiu como um sonâmbulo.

A mulher já estava no átrio do hospital, quando o viu chegar correu para ele e embrulhou-se em pranto e dor.

Foi a primeira vez que sentiram a nítida necessidade de se abraçarem.

Viram-se pela última vez no funeral.

Dela, ninguém mais ouviu falar.

Ele é hoje um missionário triste e barbudo, amando cada criança da Guiné com a dor de ver em cada um deles os filhos que ajudou a vida a roubar.

Há gentes que deveriam seguir logo os seus destinos, para que as suas vidas não tivessem que ser livros com folhas arrancadas a meio. Livros com capítulos em branco só com dor e vazio.

Só que, no fundo, é isto que nos define como seres humanos, cabe aos deuses determinar os carris.



A.M.
1996


in- Retratos Esquecidos de uma Velha Gaveta ( na gaveta ).