Este espelho é tão velho como eu.
Não se lhe nota o passar do tempo, como eu também não vi o seu passar.
Faço diante dele a barba todos os dias, ano após ano, e não me vi envelhecer.
Os retratos sim, esses param o tempo.
Sou mesmo aquele da fotografia da festa de anos da minha filha?
O bolo tem quatro velas.
Ela sim está diferente.
Muito mais diferente do que eu.
Ainda me identifico com a fotografia reconhecendo-me.
Ela não.
Com vinte e dois anos, hoje, não tem fisicamente qualquer semelhança.
Estes anos também passaram sobre mim... só que o meu espelho me tem iludido.
Senti saudades, não do tempo, mas dela naquele tempo.
Agora reparo que tenho uns pelos brancos na barba.
Não é grave.
Grave, muito grave é o sentir-me tão branco por dentro.
Branco, não de puro, mas de vazio.
Vazio de amor.
A minha mulher, a quem há longos tempos escrevia longos poemas, fazia longas promessas e me auxiliava a desenhar longas esperanças de futuros, passou simplesmente a ser mãe e longamente dona de casa.
Mulher apenas, deixou cair frivolamente a minha, e eu, aos poucos, também deixei de ser dela.
Somos assim dois adultos que fingem sermos pertença um do outro ao pé dos outros.
Refugiados no trabalho, usamos para o seu escrupuloso desempenho o pretexto das filhas, e transformámo-nos em irmãos, às vezes amigos, defendendo espaços, mas culpando-nos mutuamente, ferozmente também, por termos deixado fugir o amor, e termos tido a infelicidade de que o destino nos tenha escolhido para enfrentar o medo do futuro.
Tratámos o nosso amor como algo que uma vez adquirido pensamos ser eterno, em vez de o tratarmos como um frágil bonsai que se tem que cuidar dia a dia.
Não trocamos as mãos nem as ideias há muito, nem os lábios em saudação, muito menos os corpos em prazer.
Houve tempos em que o fazíamos por gozo, depois por rotina, mais tarde por obrigação, obviamente amadurecidos pelo tempo e entrincheirados pelos problemas diários, deixámo-nos disso.
Passou a ser quando calha e menos apetece, normalmente após uma festa com amigos onde o álcool supera, ou esconde, a realidade.
Agora, já nem assim, e sentimos, angustiosamente que é a menoridade da filha mais nova que nos empurra a partilhar a casa e o desconforto de se ver passar os dias sem planos.
Mãos suadas nos bolsos, pensamentos em torvelinho de tentativas de fuga, Carlos Santiago abriu o porta-chaves, escolheu uma e meteu-a no carro.
A porta abriu-se e sentou-se nele. Fechou-a, ligou o rádio e recostou a cabeça no encosto do banco.
Metade de uma vida perdida, tantas coisas que gostava ainda de fazer...
O Paco cantou-lhe por rádio "a ternura dos quarenta".
Levantou o som.
Meteu a primeira e arrancou.
Apetecia-lhe beber algo.
As luzes da discoteca confundiram-lhe o humor.
Entrou e pediu um whisky com duas pedras de gelo.
Uma mão tocou-lhe no ombro, era o Luís:
- Anda, vens mesmo a calhar, tenho aqui uma surpresa para ti.
Levou-o para uma mesa, onde lhe apresentou duas jovens, com vida e sonhos.
Enquanto o Luís saltou para a pista, ficou sentado com a que restou.
Apetecia-lhe conversar.
- Que fazes?
- Sou psicóloga.
Falou-lhe do eu, dos desenvolvimentos cognitivos, dos estádios onde se agrupam as resoluções de conflitos, da adolescência, da sexualidade, da sida, dos preservativos...
E o Luís dançava, dançava, dançava e bebia... e nunca mais vinha.
Chegou finalmente.
- Está tudo pago. Vamos embora daqui. Trouxeste carro? Óptimo, ela vai contigo e vens sempre atrás de nós.
Ordens consecutivas, que se cumpriram sem perguntas.
Encontrou-se no carro em plena noite com uma adolescente tardia a seu lado, à frente seguia o Luís noutra viatura com outra adolescente de quem ele nunca haveria de saber o nome.
Cruzaram a cidade, parando e arrancando ao ritmo dos semáforos.
O Luís parou à porta de um hotel grande.
Catorze, quinze andares, garagem por baixo.
Saiu do carro, entrou na recepção e tornou a sair.
Trazia duas chaves nas mãos.
- Um quarto para cada um. Vou meter o carro na garagem. Venham atrás de mim.
Santiago olhou a companhia nos olhos.
Vestida de preto tentava aparentar mais idade, puxando conversas que tentassem comprovar o alto conhecimento que tinha da vida, mas que os poucos anos atraiçoavam.
Santiago olhou para ela:
-É uma situação inesperada. Queres mesmo subir?
Fez-se silêncio.
- E tu queres?
- Eu por mim...
- Mete o carro na garagem.
Carlos Santiago assim fez. Estacionou, chamou o elevador e ela deu-lhe a mão.
O pedaço grande de chapa presa à chave marcava o número 115.
Parou no 1º andar.
O Luís já lá estava, eufórico, macho e feliz, os filhos pequenos em casa da avó que a mulher, enfermeira, estava de turno naquela noite deixando-lha toda, inteirinha para ele.
- Mostra o teu quarto pá, é igual ao nosso. Amanhã o primeiro a acordar chama o outro. Divirtam-se.
E trancou-se no 116.
No 115, a história estava diferente. Santiago sentou-se na cama, enquanto a jovem despia a saia com cuidado e começava a desabotoar as mangas da camisa.
- Que se passa? Não te despes?
Santiago levantou-se, lembrou-se dos pelos brancos da barba e do branco do seu vazio, do espelho, da sua vida.
Colocou-lhe as mãos na cintura e perguntou-lhe:
- Acabaste o curso há muito tempo?
- Não, ainda estou a estagiar...
- Que idade tens?
- Vinte e dois anos.
Santiago afagou-lhe os cabelos, olhou-a com ternura nos olhos e disse-lhe:
- Não se vai passar nada entre nós.
Ela sorriu, apenas exclamou:
- Eu sabia...
- Onde queres que te leve?
- Fico em casa dela este fim de semana, foi o que disse aos meus pais...
- Bebeste muito, deita-te e tenta descansar.
Deixou-se dormir num repente.
Santiago puxou um cobertor e tapou-a. Parecia uma criança dormindo. O álcool tinha-a afectado bastante. Lembrou-se das suas filhas, e enquanto a via dormir, afagava-lhe a testa e aconchegava-lhe a roupa.
Estava a amanhecer depressa.
Santiago foi para a varanda do quarto e fumou, um, dois, três, muitos cigarros.
As luzes da cidade foram-se desmaiando com a claridade do dia.
Eram 5 horas da manhã.
No 116 tudo estava tranquilo. Mesmo assim arriscou-se a bater.
- Luís, abre.
Olhos de sono e muita bebida abriram-lhe a porta.
- Olha, a amiga da tua amiga está a dormir no quarto. Depois leva-as. Eu vou-me embora.
- Passou-se alguma coisa?
- Nada, absolutamente nada.
Desceu o elevador, meteu-se no carro e foi direito a casa.
Meteu a chave na porta e subiu ao quarto das filhas. Beijou-as, tapou-as e foi para o seu.
Despiu-se devagar para não acordar a mulher, embora adorasse que ela despertasse, e o amasse, e o acariciasse, e lhe deixasse pelo menos descansar entre os seus braços.
Deitou-se.
A mulher ao senti-lo disse-lhe meio a dormir:
- Cheiras mal da boca, vira para lá a cara.
Santiago olhou o tecto ainda meia hora. Quando sentiu que as lágrimas estavam a rebentar nos olhos, levantou-se, vestiu-se, saiu sem ruído, meteu-se no carro e avançou precipitadamente para a auto-estrada.
As faixas de rodagem eram dele àquela hora.
Cento e vinte, cento e trinta, abriu a janela e o vento da manhã lavou-lhe a cara e soltou-lhe o cabelo colando-lho e retirando-lho do rosto, cento e quarenta...
Ligou o rádio, novamente o Paco Bandeira cantando, outra vez, "... a ternura dos quarenta...", cento e cinquenta...
Duas horas mais tarde o telefone tocou na sua casa.
O 115, o seu número da noite, tinha ligado para a policia, e a polícia para a sua residência.
A mulher atendeu. Subiu ao quarto das filhas e agarrou-se a elas em pranto:
- Meninas, meninas o papá está muito mal no hospital, teve um acidente e dizem que é grave.
Não teve coragem de lhes dizer nada mais.
A essa hora, Carlos Santiago já estava morto.
A.M.
1996
in- Retratos Esquecidos de uma Velha Gaveta ( na gaveta ).