jueves, 16 de abril de 2020

CAPITULO 59 . O AEROPORTO ( A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL )




59. No aeroporto.

Aquela varanda do aeroporto era uma rampa de lançamento para o horizonte. Os monstros com janelinhas, quando começavam a roncar e a rolar pela pista, levavam com eles os olhos que se tornavam pequeninos e perdidos quando o transporte cheio de mistérios misturados, alegrias ou tristezas, certezas ou dúvidas, diminuía no céu, cada vez mais diminuto, até desaparecer nas nuvens, quietas. Era aí que os olhos que os seguiam, caiam e ficavam sobre as mesas e o perfume da esplanada do aeroporto.
Rita Gil baixou os óculos escuros da cabeça para os olhos, o lenço cor-de-rosa do pescoço caído para trás, esticou as pernas e puxou as saias acima dos joelhos aproveitando o sol, pediu ao empregado um gim com soda e fechou os olhos protegidos ao calor do corpo. Patry, mão adolescente por dentro na mão de Relvas, apontava para as pistas, onde o companheiro depositava a curiosidade enlaçada com os aviões, os autocarros, as escadas móveis, os carrinhos com malas, o movimento de quem via pela primeira vez aquela ponta de um salto enorme.
- Gostas?
- Nunca andei de avião.
- Eu houve um tempo em que tive muito medo, depois…
- Correste o mundo…
- Todo não, mas voar…
Contou-lhe a sua amizade com Bahamonde atirando para o passado o pensamento, solto e feliz, com as palavras atropelando-se nas imagens que revia. Relvas escutava-a tentando adivinhar a vida daquela mulher, que tinha viajado por terra, mar e ar, ele não, nunca tinha saído da aldeia, mas levara toda uma vida a entregar mensagens de todos os lados do mundo, muito mais, quando a emigração passou a espalhar os homens pelos cinco continentes, e os rapazes pelos cantinhos de África, sofrida.
Nunca viajara, mas fora sempre portador das palavras viajeiras. Palavras de amor e ódio, alegrias e tristezas. As suas mãos foram durante anos as mãos que abriam os laços das caixas com letras como surpresas. Muitas vezes o povo esperava mesmo por elas, por essas mãos, há carta para mim? e se havia, um largo sorriso, e se não havia, sentia-se culpado esquecendo que as suas mãos, que davam ou não, eram apenas mensageiras.
Olhando Patry, sentia a sua vida diminuta, escrita num passado de anos igual e rotineiro, e se ela tinha sido sempre uma interventora de uma vida larga, ele tinha como um caracol, escondido no peso da protecção da casa perto, andado lento por ela, como por uma vereda com principio e fim, para a frente e para trás, com muitos passos, horas, dias e anos de passos, mas sempre na mesma vereda, ora para lá, ora para cá. Não tinha conhecido muita gente, mas a que conhecia, andou consigo anos e anos a fio no seu caminho estreito com princípio e fim, volta, princípio e fim. Sempre volta e revolta, mas gente de sempre e o que ele mais prezava, amigos de sempre. Podia não ter feito parte da história, não ser daqueles que da lei da morte se foram libertando, nem por egoísmos e glórias épicas camonianas, nem por fracassos gigantescos, holocaustos dantescos, que influenciaram a humanidade, mas todos fizeram parte dela, com as suas histórias de dia-a-dia, com os seus feitios, feitos menores e taras. 
Gostava deles e não os trocaria por nada, por isso contava a Patry as suas histórias, ria com as suas proezas, comovia-se com os seus desaires e era feliz por tê-los ao seu lado no ir e vir do seu caminho.
O Tonho Zarolho, por exemplo, que dizem que por desconfiado desde pequeno e tanto se ter esforçado por colocar um olho no burro e outro no cigano, ou politicamente mais correto, com um olho no sol da eira e outro na água do nabal, ficou com cada um para o seu lado de forma perpétua. Estrábico, vesgo e Zarolho para o povo. Quando falava para alguém, olhava sempre vinte e cinco centímetros para o lado e se lhe perguntavam em grupo - Estás a falar comigo ou com ele? - ficava irritado e a resposta era sempre igual - Para os dois!!
Um dia, nos tempos em que a Felícia que punha selos nos Correios e na testa do marido com o secretário da Junta, segredo a vozes na aldeia, boca baixinha e murmurante orelha a orelha, achou o Zarolho que era indecente ser o marido da Felícia o único a que a boca nada segredava. Toda a aldeia sabia menos ele, o coitado, não era justo, até porque começava a ser ridículo ouvi-lo, sempre que dizia, a minha Felicinha para cá, a minha Felicinha para lá, o tonto, enganado até ao tutano.
Por isso e por mais, achava o Zarolho que algo teria que ser feito afinal, todos eram cúmplices no gozo do pobre, e o machote do secretário da Junta cada vez mais emproado, cheiroso, arrogante, vaidoso mesmo.
Naquele dia, pela tarde, tinha visto entrar o secretário à socapa, na casa da Felícia, torceu o nariz e por sorte ou azar, logo a seguir encontrou o marido da Felicinha na taberna, feliz, bebendo alegrote com o Zé Ratinho.
Não aguentou e chegando ao pé dos dois homens, cumpriu com honra: - Em vez de estares nos copos, vai já a casa que encontras a mulher a roçar-se com o secretário da Junta – e ainda reforçou – Vai homem, todos aqui sabem, dizem que o corno é sempre o último a saber e é verdade.
Entre a confirmação envergonhada de todos os presentes, os dois homens desataram a correr, cada um para a sua casa. Tiveram todos que sair a correr também, atrás do Zé Ratinho, transformado em Spide Gonzalez ciumento, e foi por pouco que o conseguiram agarrar antes de chegar a casa e cometer alguma barbaridade por culpa do olhar enviesado do estrábico a quem chamavam Zarolho.
Ou o Chico Unhas de Fome, que todos pensavam ser por graça e folia que depois dos petiscos em casa com os amigos, que por sinal levavam os comes, uma lebre um dia, umas patinhas de rã no outro, umas carpas quando alguém pescava e até “leitão da serra”, o nome que enganava por ser proibido o manjar que se fazia às vezes, ouriço, que o cabo da guarda sabia cozinhar como ninguém, mandava a mulher trazer o peru.
- Joaquina traz o peru!
A graça passou a ser praxe e no fim de cada petiscada, eram já os amigos que punhos na mesa e alegria de tinto na alma, gritavam em exigência e coro:
- O peru, o peru… - e lá vinha a mulher do Chico Unhas de Fome, o peru quieto já do hábito, que logo que colocado sobre a mesa impávido e ignorando os risos e as palmas picotava a toalha, limpando os restos migalha a migalha.
Acabou-se a graça numa terça-feira de Carnaval, onde era costume os foliões atirarem milho uns aos outros antes, durante e depois do cortejo. 
A rua ficava carregadinha de bagos de milho e o Chico Unhas de Fome não aguentou ver tanto desperdício.  Em segredo pagou a três gaiatolas que ainda nesse mesmo final de dia e durante toda a quarta e quinta-feira seguintes, até chegar a brigada de limpeza da Junta de Freguesia, lhe passearam para cima e para baixo o galinheiro. Dezoito galinhas, cordel na pata, três pontas de fio em cada uma das mãos dos rapazotes, com galinhas na ponta, encheram o papo. Não fosse pelo galo que andava solto por não dar mão e que ninguém se aproximava por ser conhecido das brigas, orgulho do Chico por ser conhecido pelo Galo do Unhas, e ainda hoje ninguém sabia que o avarento estava por trás do assunto, as galinhas eram suas e o que à primeira vista parecia uma inocente brincadeira de gaiatos, era um plano de avaricia do Unhas-de-fome, que deixou de colocar o peru na mesa por ter perdido a graça, aliás, nesse mesmo Natal, comeu-o.

Patry estava fascinada com as histórias da aldeia, aquelas personagens que faziam parte da vida de Relvas.

O Zeca Bomba… - Patry interrompeu-o – que raio de nomes os da tua aldeia – espera que já vais saber porquê – e continuou: - O Zeca Bomba nada tem a ver com explosões ou guerras, nem festejos com foguetes, tudo tem a ver com uma bomba de gasolina.
Era verdade, fora aquela viagem a Almada, no primeiro carro que o Zeca comprou com o dinheiro da venda do olival do avô, à empresa de mármores que começou a fazer subir o preço das árvores arrancadas, pagando por elas mortas cem vezes mais do que vivas, um “boca de sapo”, que foi buscar directamente a França, novinho em folha, no auge de uma nova riqueza que lhe entrara casa dentro, para beneficio seu e desgraça de netos e bisnetos, deixados no futuro numa terra sem terra.
Mas era o sinal dos tempos, o tempo em que se matavam as galinhas dos ovos de ouro pela lentidão da postura.
O Zeca era de família burguesa pelo trabalho, nem ricos nem pobres, que conseguiram mandar estudar os filhos ao ponto do Zeca ser o primeiro engenheiro da família e o segundo da aldeia, depois de ter tirado na “mitra” em Évora, um curso de Regente Agrícola, que lhe permitiu o tratamento de engenheiro durante as negociações da venda das oliveiras do avô.
Gigante de vaidade dentro daquele Citroen, agressivo e meigo, parou para atestar no Fogueteiro, já de regresso para casa no fim de um dia de estreia, que a rodagem estava feita de França para Portugal. Já com a noite em princípio, esperou junto da bomba que viesse algum empregado para lhe encher o depósito. Mas nada, absolutamente ninguém, apesar das luzes de uma estação de serviço das mais modernas que já vira indicar que não estava fechada. Foi então que uma voz saída da bomba lhe disse:
- Gasóleo ou gasolina?
Perante o insólito, olhou para os lados e não vendo ninguém falou a medo para a bomba:
- Gasolina Súper.
A voz fez-se de novo ouvir:
- Pegue na mangueira e introduza-a, por favor.
Lembrou-se então daquele programa da televisão que dava uma vez por semana do Joaquim Letria, o “Tal e Qual”, braço do semanário de poucas folhas e muita língua e que na televisão paralisava o país com os primeiros “Apanhados” que Portugal via.
Meteu a cabeça na janela do carro e disse para a mulher:
- Isto é para os “Apanhados”, a mim não me enganam, vais ver a música que lhes dou.
Admirada por aquela bomba falante, também a mulher se convenceu, coisa muito difícil nela, filha única do Zé do Lagar e de Ermelinda, que a estragaram com mimos, desde que nasceu e a cuidaram como coisa sua, dando-lhe o nome de Zelinda, o Zé do pai mais o linda da mãe, assim chamada por todos. Tinha um feitiozinho dos diabos, caprichosa, fora ela que tivera a ideia do “boca de sapo”, azul, aproveitando os escudos frescos do olival esburacado, entranhas abertas, blocos de mármore como tripas ao sol, do avô do marido. Acompanhou-o na viagem a Paris e num riquismo desabituai por novo, passara a não dizer “sim” mas “oui”, logo seguido por “perdão, é que cheguei há pouco de França”. Se ela estava convencida, o marido tinha carta-branca para brilhar e quando se ouviu repetir de novo: - Pegue na mangueira e introduza-a por favor! – Olhou para a bomba, enrolou o bigode com ar de engate, autorizado por Zelinda, e respondeu-lhe:
- Introduzo onde, cherry?
A voz vinda da bomba falou de novo:
- Meta o combustível.
Confiado na filmagem e nos minutos de glória que teria na TV respondeu com ar de macho latino:
- Onde queres que te meta o combustível, guapa?
A voz ouviu-se de novo:
- Tira a mangueira…
- “Madmoiselle”, como quer que tire a mangueira com a minha mulher no carro?
A voz irritada:
- Olhe para aqui, olhe aqui para cima, à direita, pacóvio, olhe para aqui!
O Zeca olhou para o primeiro andar do edifício iluminado, onde uma rapariga, microfone na boca lhe gritava:
- Meta o combustível homem de Deus, é auto-serviço.
Reconhecendo a figura de tonto acabada de fazer, meteu-se no carro e arrancou envergonhado. Parou na primeira pensão que encontrou e só no outro dia regressou à terra, depois de ter enchido o “boca de sapo” noutra estação de serviço que procurou.
Aquela tinha sido a primeira vez que vira uma bomba de gasolina moderna, sem empregados, que de pronto se reproduziriam no país como tortulhos num dia de sol depois de dois dias de chuva.
Quando na aldeia se conheceu a história, solta no cabeleireiro pela Zelinda, Bomba agarrou-se ao Zé para sempre. Até no carro, onde um Z, não de zorro, mas de Zé e Zelinda, em autocolante mandado  fazer de propósito em serigrafia, e colado no capô, foi acrescentado, com um B de papel de jornal colado maldosamente com cola Pica-Pau.
Aquele casal de regentes, ele agrícola e ela escolar, mantiveram quase sempre uma quase boa vida, quase engenheiro, quase professora, quase ricos. Essa vida de quase, foi sempre também um quase desafogo. Tiveram dois filhos quase bonitos, quase excelentes alunos, e que quase foram chamados pelos seus nomes, pois à medida que cresciam passaram a ser conhecidos por Bombinhas primeiro, depois por filhos do Zeca Bomba e hoje por Zico Bomba e Zulmira Bomba. O Z e o B continuaram a ser a marca da família.

Patry era uma enamorada das histórias delirantes de João Maria, através delas, ia-se apaixonando cada vez mais pela aldeia, e o carteiro, continuava a ser um mensageiro de palavras, só que desta vez, suas.
- Fala mais dos teus amigos, João.

O Engoletudo era o tonto da aldeia, chamava-se na realidade Pio Paulo Mendes Rabaça, Pio e Paulo impostos pela avó beata, que a mãe, Rosa Mendes, casou e pariu tardia, tão tardia como primeiriça, o que a levou a não resistir ao parto. 
Pio Paulo, foi arrancado a ferros para uma vida com menos sentidos ainda, do que aqueles que dominava a custo. Porque na sorte como no infortúnio nunca há duas sem três, com a morte de Rosa Mendes, tudo se complicou Paulo Pio, a leite de vaca cortado com água dado pela avó numa mamadeira improvisada, enquanto o Rabaça mamava copos e copos de tinto no Café Costa, para lhe afagar a tristeza e esquecer que vivia, naquele acordar sem Rosa, sem filho musculado e inteligente que imaginara, sem esperança, sem sentido. Acobardou-se e foi perdendo tudo, do trabalho à dignidade. Em poucos anos, o álcool competia com o sangue, numa mistura que lhe circulava pelas veias e lhe percorria todo o corpo, dos pés à cabeça. Como uma bomba de bicicleta, começou a soprar-lhe o fígado e a inchá-lo como um balão, até se notar já por fora o dilatar sólido de uma barriga isolada, como bandeira visível, em barco fraco e abandonado no oceano. Perdeu a casa, os móveis, os amigos e a fé, enquanto o filho era criado pelas ruas, comendo à porta dos vizinhos.
- Queres comer?
- Sim.
- Queres mais?
Abanava a cabeça com a boca cheia e, quero mais, as pessoas já lhe davam a comida por gozo, anda que engoles tudo, e engolia, mesmo as misturas estúpidas que os graciosos lhe davam, toma bebe, toma come, e Pio Paulo bebia tudo, comia tudo, engolia tudo.
A maior parte das vezes fazia-o não por fome, mas por amor.
Riam-se dele, mas ele precisava sentir o toque das pessoas e não tinha a noção da maldade:
- Toma Engoletudo, foi feito de propósito para ti. Uma rica sopa fria.
Era aveia de cavalo, misturada com água e ração de vitelo.
- Bebe para acompanhar.
Era um líquido de urina e bagaço com açúcar.
Os adolescentes podem ser cruéis.
Estes eram.
Pio Paulo bebeu e comeu, entre risos e palmas, depois, vomitou, mas mesmo com a boca suja, babado de vómito, sorria feliz.
O pai sentia que Santa Glorieta o apadrinhava.
Passava quando sóbrio de mente e teso de carteira, horas no cemitério, arrumando os carros e guiando os passageiros dos autocarros. As moedas que recebia entregava-as logo que suficientes, no Café Costa. Tantos carros arrumou, tantos passageiros de autocarro guiou, à casa onde viveu a Santinha, à velha tasca do Esteves, que Deus tem, e até à escola onde Glorieta nunca andou, que foram muitas as moedas que levou ao Costa do Café. Tantas que um dia, pela noite, a mistura que lhe circulava nas veias e lhe soprava o fígado como um balão, soprou de tal forma, que rebentou.
- Pobre homem!
O povo sentia sempre a partida de um dos seus, como um toque a reunir na igreja, dos casamentos, dos baptizos, das promessas dos escuteiros, das comunhões e crismas, mas sempre, sempre aberta a todos, nos funerais.
O desgraçado do Rabaça ali estava mãos postas com um terço, quando certamente preferia levar em suas mãos, para o desconhecido, uma garrafa de tinto.
Pela noite a aldeia foi ao velório e as vizinhas da rua da avó de Pio pagaram entre elas o enterro. O Costa do Café deu-lhes um fato usado dos seus, para que o vestissem para a viagem. Também uma camisa e uma gravata e o mesmo fez, mas por empréstimo, para que as vizinhas vestissem o Pio Paulo e este pudesse apresentar-se dignamente no funeral do pai. Mandou isso sim, que lhe comprassem na Loja do Povo, uma camisa nova, preta, que essa era oferta dele para o cachopo. As velhas da rua aproveitaram, despiram o Engoletudo, meteram-no na banheira e lavaram-no em banho de escalda micróbios. Fizeram-lhe a barba, com espuma e lâminas Nacer, a dos crocodilos, chega-te para lá velhote, com anúncio na televisão e irritabilidade dos barbeiros de navalha.
A Junta de Freguesia achou-se na obrigação de ajudar as vizinhas a pagar o caixão e à falta de familiares de proximidade, mandou fazer uma coroa de flores com a inscrição “Descanse em paz”, o pároco, não cobrou pela missa e pelo seu acompanhamento fardado até à cova, e também o sacristão foi à borla, fardado também com um bibe de renda branco, levando a cruz ao lado do chefe.
Foi uma cerimónia muito bonita, mas o que mais impressionou o povo foi o comportamento do filho do Rabaça e da Rosa Mendes, agora órfão de pai e mãe. 
Impecavelmente vestido e para quem julgava que o moço tinha como os sentidos os sentimentos atrofiados, foi uma surpresa os urros que dava enquanto metia o dedo no colarinho da camisa, esfregando os olhos com a outra mão:
- Hum… Hum…
As pessoas comovidas pelo sofrimento do rapaz comentavam entre si:
- Pobrezinho, e o pai que não lhe ligava nenhuma.
- Coitadinho como sofre pelo pai, é parvinho, mas sofre como um filho está a dar-se conta de tudo.
Como se ouvisse os murmúrios que lhe acentuavam a dor, o pobre Pio continuava a interromper o silêncio do velório:
- Ai… Ai…
Dava pena, e até havia quem chorasse mais pelo filho vivo do que pelo pai morto.
O pobre aguentou estoicamente, gemendo, dedo no colarinho e só com o raiar do dia, poucas horas antes da missa e do último passeio, é que viram, e lhe tiraram o cartão duro e teso do interior da gola da camisa nova, abotoada até ao cimo, com dois alfinetes esquecidos ainda a sujeitá-lo.

Patry no conseguia reprimir o riso:
- Ai João Maria, vocês são um espetáculo.
Também ria o carteiro reformado, e gargalhadas a meias, é sempre cimento de relação.

O voo de França tinha chegado, com ele, António Gil Salvador. Notaram um movimento raro no aeroporto. Havia gente que corria e invadia os balcões.
1977.
Um avião dos Transportes Aéreos Portugueses tinha acabado de se despedaçar na Ilha da Madeira.
                                    (...)



In A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL
Editado por Filigrana Editora
www.filigrana-editora.pt

jueves, 9 de abril de 2020

A TABERNA DE AVELINO CAMEJO (CAPÍTULO 8 )





CAPÍTULO 8
O casamento da tia Pituca


- Tia Pituca, conta um pouco mais da tua vida.
- Ai filha vês a minha vida como se fosse um conto de fadas, mas as fadas querida afilhada, só existem quando se acredita com muita força. Onde ficámos?

- O tio Zé tinha ido a Évora no descapotável.

- Pois é verdade, foi e nem calculas a surpresa que teve quando chegou à Cidade e o Sr. Dias e  Pereira quis falar com ele.

- Conta!

- Pois bem, disse-lhe que admirava o seu talento, a sua dedicação ao trabalho, que não tinha filhos e estava a ficar velho, que não queria que a firma fechasse, já tinha falado com a mulher e que, lhe dava sociedade na oficina. Pelo que as placas de publicidade passaram a ser Dias e Pereira & José Boavida Lda.

- Passou a ser dono da oficina?

- De metade e quando cheguei para férias transitando para o segundo e último ano da Escola de Magistério em Évora, já todos me tratavam por professora e ao tio, Sr. José.

- E o teu pai?

- Olha filha, neste mundo triste em que vivemos parece que estamos na Índia, divididos em castas.

- Castas?

- Sim, dividido por classes sociais, bem aqui melhor porque se pode mudar de casta e aí não. Pois o tio Zé, mudou de casta, e foi convidado a pedir a minha mão, mas só quando fosse o final do meu curso, em julho do próximo ano.

- Boa!

- Não foi tão fácil, porque a visita do tio Zé a Évora foi o apressar de tudo. Fomos guardar o carro ao armazém, demos as mãos, deu-me um beijo pela primeira vez e outro, e outro, comecei com os calores, aqueles olhos grandes e azuis e depois filha, tem que se ter muito cuidado com os homens...

A menina pensou que os calores eram assim como o cio das gatas, que chegavam a sair de casa, miando para chamar os gatarrões para lhes tirar as quenturas.

- Mariazinha, pela tua cara não estás a perceber, havia amor, ele sabia muito destas coisas e tocou-me meigamente em sítios que a tia nunca tinha sido tocada, nem vista por outras pessoas. Deixei-me ir filha, e quando chegou o Natal, não fui a casa, dizendo que tinha que estudar, mas o meu medo era que me vissem a barriguinha que já se notava um pouco.

- Um bebé?

- Sim, o João Fernando já estava dentro de mim. A tia cuja casa eu ocupava em Évora, talvez pela língua da prima com quem eu dormia, apercebeu-se e telefonou à minha mãe.

- Ai tia! e depois?

- Depois a minha mãe contou ao meu pai.

O pai:
- Sacana, agora que é alguém já julga que pode fazer o que quer.

A tia continuou a contar à sobrinha. A minha mãe andava preocupada, quando dias depois de muitos silêncios, o encontrou no quintal na casa das tintas, pincéis e ferramentas que estava ao pé da laranjeira e viu-o a limpar a caçadeira.

Aflita, gritou-lhe:

- Ai homem que nos vamos desgraçar.

- Nada mulher, vou apenas salvar a honra da nossa filha.

- Meteu-se no carro de grandes faróis como uma coruja e saiu de casa enquanto a minha mãe ficou a rezar o terço pedindo a Nossa Senhora de Fátima que desse luz aos actos do meu pai.

A menina estava a adorar a história, mas não gostava dos silêncios que a tia fazia, eram intervalos largos como se estivesse a rever um passado, uma forma de apelo à memória dolorosa e Mariazinha como mudanças de um carro, meteu a primeira e:

- Vamos, e depois?

- Bem, depois passou com o carro pela oficina com letreiro luminoso que dizia “Dias e Pereira & José Boavida Lda”. Estava já fechada, avançou rumo à pensão e perguntou pelo Sr. José Boavida – quarto 27 – e o meu pai, com o nome tão grande como o meu subiu as escadas, foi quando a senhora se apercebeu que o Sr. Albuquerque de Sousa ia armado. Assustada, telefonou à Guarda que chegou a cavalo quase uma hora depois, com os bichos escorregando na calçada.

À moda dos filmes do Oeste, abriu a porta de espingarda apontada. 

O tio Zé, assustado, levantou os braços como via na televisão do café em situações idênticas. 

O meu pai então disse-lhe:
- Ou casas com a minha filha ou rebento-te os miolos.

- Sr. Albuquerque de Sousa, mas isso foi o que sempre quisemos, eu e ela.

- Não a metas neste assunto, que a conversa é entre nós. Não vais abandoná-la grávida, desonrada e com um filho nos braços, porque nunca o vou permitir.

O tio Zé colocou as mãos na cara:

- Estás a chorar meu velhaco?

Foi aí que o tio se levantou:

- É de alegria Sr. Sousa, eu não sabia, só a queria ter aqui.

Foi nessa altura que Albuquerque de Sousa viu que o rapaz nada sabia, e algo houve nessa atitude do tio, que levou o pai a baixar a arma.

A menina olhou a tia:

- Mas ele não sabia tia Pituca?

A tia baixou os olhos e riu-se:
- Nem eu tinha a certeza. Aquilo só aconteceu uma vez e doeu-me imenso, tanto que...
- Que o quê, tia?
- Nada.
- Vá, diga.
- Foi assim como que a tentar, mas como me ouviu gritar, parou.
- E mais?
- Bem, comecei a ter a falta do período, notava que a barriga estava a crescer e fui a um médico com a minha amiga.
- Falou-me de hímen complacente, de anelares, impreparados e até numa palavra rara chamada “criptomenorréia” – a tia começou a rir, foi o nome que chamámos ao nosso primeiro cãozinho do quintal, mas que como era muito grande passou a ser chamado apenas por “Cripto”.

- Tia e que palavras são essas todas?

- Não importa, lembra-te sempre é que podes ser mamã sem ter contatos completos.

- Sem relações?

- Olha daqui a tia não passa, tu que tens computador vai ver no “goglé”.

- No Google, tia.

- Ou isso!!

- Já não me contas mais nada?

- Sim, conto meu amor, mas a partir da pensão, não tens idade para certas conversas.

- Tia, eu contigo aprendo mais do que na escola.

- Bem, voltemos então à pensão. Acreditas que o tio Zé e o meu pai se abraçaram? Depois ouviram muito ruído na rua, estava cheia de gente, tinha chegado a Guarda a cavalo. Foram espreitar pelo vidro da janela e estava a começar um princípio de escândalo, mas o meu pai era muito inteligente.

- Confio em ti, José. Guarda a arma, vim entregá-la para a arranjares na oficina. Amanhã à noite quero-te na minha casa.

Fechou a porta e desceu as escadas.

O Guarda montado no cavalo perguntou-lhe:
- Algum problema?
- Isso pergunto eu, passa-se alguma coisa?
- Nada, disseram-nos que tinha entrado aqui com uma espingarda e...
- Tontaria, vim entregar a espingarda ao Sr. José Boavida para que me a limpe e arranje a abertura do baixar dos canos.
- Desculpe Sr. Albuquerque de Sousa.

Os Guardas entre eles ainda disseram, isto só a nós, depois esporearam os cavalos e subiram a rua obrigando-os a um trote.

As pessoas regressaram às suas casas.

- Ai tia, que história... e depois?

- Depois nada, na noite seguinte foram buscar-me a Évora, onde me levaram dois dias depois. O tio Zé ia com os meus pais no carro e eu estupidamente dei-lhe um aperto de mão. Jantámos em casa, conversámos num âmbito de grande alegria, família mesmo, e o João Fernando era o responsável de tamanha felicidade entre todos. Depois o meu pai disse:

- Têm que casar no Natal, depois acabas o curso e em julho ficam cá em casa que é grande. Até lá o José fica na pensão, mas pode visitar-te sempre que não seja aqui na terra, por enquanto.

- Voltei para Évora no outro dia, o tio também veio, apesar de lhe dizermos que não era necessário, eles insistiram:
- Até ao casamento, não queremos falatórios!
- E tu, tia Pituca? Como te sentias no meio disso tudo?
- Até ao Natal nunca fui tão feliz.

- E depois?

- Filha, és chatinha. Depois casámos no dia 24 de novembro, que a barriguinha mesmo apertada já queria fazer-se notar. Eu meti um atestado médico, embora o diretor andasse desconfiado, chamou-me:

- Olha, minha amiga. Espero que cases mesmo. Em janeiro traz um comprovativo, aqui não nos importa o talento ou os conhecimentos, mas sim a moral. Sois as educadoras escolhidas e pagas pelo Estado, pelo que tereis a responsabilidade de cumprir os valores principais do vosso país, Pátria, Deus e...

- Autoridade, Sr. Diretor, eu sei.

- E mais do que autoridade, a defesa dos costumes. Pelo teu terceiro período, do último ano do teu curso, quero provas do casamento religioso.

- Ai, tia, que chatos!

- Mas eu ouvia aquele blá, blá, blá, mas só pensava que o tio Zé ia ser o meu marido durante toda a vida e faltava pouco, muito pouco.

- E o casamento?

- Do outro mundo, querida afilhada. Casamos na Cidade, na Igreja de São Lourenço e fomos transportados depois para a Cervejaria “O Melhor do Mundo”, que o tio, bem, o meu pai que resolveu pagar tudo, mandou fechar só para a nossa festa, e o tio meteu o carro do nosso segredo e que ele tanto gostava no transporte dos noivos. Como só tinha dois lugares, ia de tejadilho aberto e o tio conduzia, cumprimentando as pessoas, enquanto segurava o volante.

- E a lua de mel?

- Muito pequena, num hotel – a tia aqui começou a rir como não o fazia há muito tempo – num hotel, quer dizer, na estrada, que o tio tinha bebido uns copitos e dançou com toda a gente, até cantou o fado e encostou na berma só um pouco para dormir um pedacinho. Assim que parou o carro, encostou-se a mim e começou a roncar. Só três horas depois acordou quando um camião apitou sempre seguido, por ver que estava uma noiva no carro. O tio disse estremunhado – caramba, já é de dia. Fomos para o hotel e só saímos no fim do aluguer, baixávamos apenas uma ou duas vezes para não comermos sempre no quarto.

- E onde era o hotel?

- Na Serra da Estrela e agora, acabou.

- Ó tiazinha, madrinha do meu coração, “porfa”, por favor só mais um bocadinho.
Mariazinha tinha um talento especial para fazer da tia o que queria, desde que ela não dissesse “não é não!” e não tinha dito.

- Bem, vá lá mais um bocadinho. O que queres?

- Quando vieram da Serra da Estrela foram para onde?

- Para casa, já tínhamos um quarto preparado no rés do chão e o resto das divisões estavam pintadas e desalojadas de tudo o que tinham. Nós que comprássemos as mobílias que queríamos. O meu pai abriu uma porta para a rua e fechou a parede que dava acesso ao segundo andar, enquanto fez uma cozinha e uma casa de banho no rés do chão, bem, essas inacabadas para que fossemos nós a escolher os azulejos, agora bastava o quarto e que escolhêssemos as mobílias até ao Natal. 

Quando acabasse o curso, teríamos a casa em ordem, individual e com portão de vidro para o quintal. Perguntei ao meu pai porque não ficava o tio já na casa, escusando o ter de pagar a pensão, disse-me de imediato que não, quando acabasse o curso e viesse em julho, logo começaríamos a vida. Ainda me disse o meu pai que o meu marido tinha mais dinheiro do que ele, pois negou-se a aceitar o seu dinheiro para pagar as mobílias, os azulejos e as obras que ele tinha começado.

- E quando chegaste do curso?

- Tive que interromper em fevereiro, pois nasceu o meu João Fernando. Estávamos já na parte de fazer o trabalho final, por nossa conta e risco, mas fui bastante ajudada pelas colegas do grupo. O que não esperavam é que a tua tia Pituca, quinze dias depois do bebé ter nascido, estava na escola com ele e foi a primeira vez que uma mãe amamentava numa Escola de Magistério, com quarenta colegas/tias que ajudavam. 

O Diretor nem abria o bico, pois Deus o livrasse de uma rebelião de alunas. Dizia-me era que lhe desse a mama no seu gabinete, que ele obviamente sairia, mas tinha melhores condições.

- Ó tia, que giro... e depois?

- Depois acabei o curso, voltei a casa que mobilei com o tio, o João Fernando cresceu e tive o primeiro desgosto, pois o tio Zé não me deixou trabalhar fora de casa. 

Deram-nos um cãozinho ao que chamamos Cripto e que cresceu com o teu primo. Eram dias aborrecidos, a avó tinha três quartos alugados a alunos que vinham fazer o Ensino Secundário à Cidade e eu ajudava-a. 

O tio desenvolveu a oficina, meteu umas bombas de gasolina da Sacor, ficou como representante da Fiat e começou a fazer crescer a empresa e a passar menos tempo em casa. 

Eu estava já farta e como tínhamos tantos quartos livres no primeiro e no segundo andar, aproveitámos a abertura, da Escola de Magistério na Cidade e logo no primeiro ano, fizemos uma pequena pensão onde não dava aulas, mas andava entretida com as futuras professoras. 

Todos os meses, o valor de um hóspede era metido no banco numa poupança que garantisse um curso superior ao João Fernando. 

Chegámos a ter doze raparigas em casa, três no secundário, no Liceu, e nove alunas da nova Escola do Magistério. Tinham quarto e alimentação, pelo que na cozinha tínhamos a Rosália, que ajudava nas tarefas todas, mas que levava o tempo muito ocupado com as panelas. 

As mulheres que trabalham hoje fora de casa, julgam que são mais independentes. É um engano, filha. Eu vivia bem. Ia ao mercado com a Rosália, escolhia, pagava e ela trazia os sacos para casa. Só orientava e tinha tempo para o João Fernando e até para o Cripto, enquanto ouvia as radio-novelas. 

Hoje, as pobres, trabalham tanto como os homens e depois de chegar a casa, ainda têm de cuidar dos filhos, das comidas, do aspirador... trabalham muito mais porque os homens não fazem nada. Mas não ligues, isto são conversas de velhos.

Naquele tempo vivia-se muito mal. Havia gente rica, muito rica, pobre e muito pobre. Nós éramos assim uns remediados mais para o rico, mas com muito trabalho. Nada nos faltava, mas era graças ao trabalho. A tia às vezes até cosia, tinha revistas de moda e quando calhava ainda fazia uns vestidos para mim, umas camisas para o João Fernando, e até para fora, que havia sempre amigas que gostavam do que eu fazia, até fiz vestidos para casamentos e chapéus. 
Não me dava para estar quieta.

Havia as guias de racionamento por causa da guerra, mas tudo nos aparecia em casa, sem faltas, o tio conseguia açúcar, manteiga... tudo o que era racionado (Pituca riu-se). 

Um dia mandei o meu João Fernando, tinha ele por aí nove ou dez anos, levar um vestido a casa da mulher do juiz da Cidade.

- Queres lanchar, meu menino? O meu filho está a comer uma torrada, queres uma? – João Fernando que sempre foi de boas comilonas, abanou a cabeça dizendo que sim. Comeu e por lá ficou a brincar com o novo amigo, obrigando a que eu acabasse já preocupada por ir buscá-lo.

- Entre, Dona Pilar, o menino está bem, tem brincado com o meu filho e até lanchou.

Depois, virando-se para o meu João Fernando disse-lhe:

- Gostaste da manteiga no pão? - o garoto olhou-me e com as respostas sempre na ponta da língua... respondeu à senhora:

- Sim, mas a minha mãe lá em casa mete sempre a manteiga dos dois lados da torrada.

A tia Pituca riu, gargalhou mesmo.

- Mas olha, filhota, vivia-se mesmo muito mal. Um dia, apareceu uma senhora a bater-me à porta com uma menina que ela dizia ter dezasseis anos, mas a quem eu daria treze ou catorze, do delgada que era, pequenina, mas com uma cara de sonho. Linda, muito linda, olhos de um verde escuro e límpido, numa pele escura de calor e campo, chaminé e campo, sempre campo, onde se arrancava a pulso o pão naqueles tempos sem supermercados.

- Sei quem é a senhora, dizem-me, que é boa pessoa e gostava que a minha filha fosse criada por si. Sabe fazer tudo em casa, é a mais pequena das oito irmãs. Os rapazes ficam comigo e com o pai, mas mesmo assim o chão não nos dá o suficiente para tanta boca. Trabalhará só pela comida e por aprender a ser uma pessoa de bem. Fique com ela, minha senhora e se lhe der por mês algumas moedas pode estar certa que ela entregará à família, sabe que tem gente que depende deste seu trabalho, desta sua nova casa, da segurança da barriga cheia e quem sabe, se a senhora Dona Pilar não a ensinará a ler. Faça, por favor, dela uma mulher.

- Quem lhe falou de mim?

- Foi a senhora do Sr. Doutor Juiz. A irmã ficou lá e falou-me da senhora que tem uma casa basta onde a fome e a miséria não passam da porta de entrada.

- E que fez a tia Pituca?

- Querias que fizesse o quê, meu amor? Ficou lá, comprei-lhe roupa nova de trabalho, mas também para sair, ajudava a Rosália, aprendeu a fazer camas, a trabalhar com a enceradora, mas muitos dias, deixava-a brincar no quintal com o João Fernando, pouco mais velho do que ela e com Cripto, que estava um canzarrão brincalhão e gostava dos dois companheiros de brincadeira. Nunca mais me esqueço das últimas palavras da mãe:

- Faça dela uma mulher, minha senhora.

- Por isso nos fins de semana, comecei a ensiná-la a ler, comprei cadernos de duas linhas, lápis, borracha, uma pedra e um caneto e um livro da primeira classe que curiosamente abriu e cheirou antes de ver os bonecos e as letras que em breve conheceria.

- Muito obrigada, minha senhora – quis beijar-me as mãos.

- Como se chamava a menina?

- Beatriz.


in A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
(...a ser escrito...)

jueves, 2 de abril de 2020

MENSAJE EN UNA BOTELLA




Son días de abrazar con la palabra,

de besar con los ojos,

de bailar con escobas.

Son días de mirar por la ventana

como florecen las lilas del paseo,

como el viento se lleva los letreros

de la pieza que no llegó a estrenarse.

Y de volar con la hoja en remolino,

con el jilguero que canta en las antenas

de la fábrica que como ayer dormita.

Y de pensar que, muy a pesar nuestro,

el mundo no paró, sigue corriendo…

Para muchos será el último día,

para otros, tan solo es el primero,

para ti y para mí será uno menos.

Hay que gastarlo bien,

no vuelve a repetirse.

Si viniera a buscarnos de repente

la condenada sombra y su condena

que nos encuentre vestidos de domingo,

que nos encuentre locos,

locos de ingenio y libres,

confinados al sueño,

cuidando de las flores,

inventando remedios,

escribiendo mensajes

de amor en las botellas,

que nos encuentre tocando melodías,

escribiendo unos versos,

cantando en los balcones,

pintando los jardines

que hace mucho nos tapan los tejados:

la mimosa y sus soles amarillos,

el carmesí perfume de las rosas,

la figura de un niño y su alboroto

difuminada porque ya se aleja

detrás de lo que debe ser una pelota…

Que nos encuentre amantes,

con la luz encendida,

latiendo una esperanza,

que nos encuentre humanos,

¡que nos encuentre vivos!

                                          
in Poemas da Ilha do Sândalo e Outros Versos
(no prelo) 
 Amelia Bravo Vadillo