CAPÍTULO 8
O casamento da tia Pituca
- Tia Pituca, conta um pouco mais da tua
vida.
- Ai filha vês a minha vida como se
fosse um conto de fadas, mas as fadas querida afilhada, só existem quando se
acredita com muita força. Onde ficámos?
- O tio Zé tinha ido a Évora no
descapotável.
- Pois é verdade, foi e nem calculas a
surpresa que teve quando chegou à Cidade e o Sr. Dias e Pereira quis falar com ele.
- Conta!
- Pois bem, disse-lhe que admirava o seu
talento, a sua dedicação ao trabalho, que não tinha filhos e estava a ficar
velho, que não queria que a firma fechasse, já tinha falado com a mulher e que,
lhe dava sociedade na oficina. Pelo que as placas de publicidade passaram a ser
Dias e Pereira & José Boavida Lda.
- Passou a ser dono da oficina?
- De metade e quando cheguei para férias
transitando para o segundo e último ano da Escola de Magistério em Évora, já
todos me tratavam por professora e ao tio, Sr. José.
- E o teu pai?
- Olha filha, neste mundo triste em que
vivemos parece que estamos na Índia, divididos em castas.
- Castas?
- Sim, dividido por classes sociais, bem
aqui melhor porque se pode mudar de casta e aí não. Pois o tio Zé, mudou de
casta, e foi convidado a pedir a minha mão, mas só quando fosse o final do meu
curso, em julho do próximo ano.
- Boa!
- Não foi tão fácil, porque a visita do
tio Zé a Évora foi o apressar de tudo. Fomos guardar o carro ao armazém, demos
as mãos, deu-me um beijo pela primeira vez e outro, e outro, comecei com os
calores, aqueles olhos grandes e azuis e depois filha, tem que se ter muito
cuidado com os homens...
A menina pensou que os calores eram
assim como o cio das gatas, que chegavam a sair de casa, miando para chamar os
gatarrões para lhes tirar as quenturas.
- Mariazinha, pela tua cara não estás a
perceber, havia amor, ele sabia muito destas coisas e tocou-me meigamente em
sítios que a tia nunca tinha sido tocada, nem vista por outras pessoas. Deixei-me
ir filha, e quando chegou o Natal, não fui a casa, dizendo que tinha que
estudar, mas o meu medo era que me vissem a barriguinha que já se notava um
pouco.
- Um bebé?
- Sim, o João Fernando já estava dentro
de mim. A tia cuja casa eu ocupava em Évora, talvez pela língua da prima com
quem eu dormia, apercebeu-se e telefonou à minha mãe.
- Ai tia! e depois?
- Depois a minha mãe contou ao meu pai.
O pai:
- Sacana, agora que é alguém já julga
que pode fazer o que quer.
A tia continuou a contar à sobrinha. A minha mãe andava preocupada, quando
dias depois de muitos silêncios, o encontrou no quintal na casa das tintas,
pincéis e ferramentas que estava ao pé da laranjeira e viu-o a limpar a
caçadeira.
Aflita, gritou-lhe:
- Ai homem que nos vamos desgraçar.
- Nada mulher, vou apenas salvar a honra
da nossa filha.
- Meteu-se no carro de grandes faróis
como uma coruja e saiu de casa enquanto a minha mãe ficou a rezar o terço
pedindo a Nossa Senhora de Fátima que desse luz aos actos do meu pai.
A menina estava a adorar a história, mas
não gostava dos silêncios que a tia fazia, eram intervalos largos como se
estivesse a rever um passado, uma forma de apelo à memória dolorosa e
Mariazinha como mudanças de um carro, meteu a primeira e:
- Vamos, e depois?
- Bem, depois passou com o carro pela
oficina com letreiro luminoso que dizia “Dias e Pereira & José Boavida
Lda”. Estava já fechada, avançou rumo à pensão e perguntou pelo Sr. José
Boavida – quarto 27 – e o meu pai, com o nome tão grande como o meu subiu as
escadas, foi quando a senhora se apercebeu que o Sr. Albuquerque de Sousa ia
armado. Assustada, telefonou à Guarda que chegou a cavalo quase uma hora
depois, com os bichos escorregando na calçada.
À moda dos filmes do Oeste, abriu a
porta de espingarda apontada.
O tio Zé, assustado, levantou os braços como via
na televisão do café em situações idênticas.
O meu pai então disse-lhe:
- Ou casas com a minha filha ou
rebento-te os miolos.
- Sr. Albuquerque de Sousa, mas isso foi
o que sempre quisemos, eu e ela.
- Não a metas neste assunto, que a
conversa é entre nós. Não vais abandoná-la grávida, desonrada e com um filho
nos braços, porque nunca o vou permitir.
O tio Zé colocou as mãos na cara:
- Estás a chorar meu velhaco?
Foi aí que o tio se levantou:
- É de alegria Sr. Sousa, eu não sabia,
só a queria ter aqui.
Foi nessa altura que Albuquerque de
Sousa viu que o rapaz nada sabia, e algo houve nessa atitude do tio, que levou
o pai a baixar a arma.
A menina olhou a tia:
- Mas ele não sabia tia Pituca?
A tia baixou os olhos e riu-se:
- Nem eu tinha a certeza. Aquilo só
aconteceu uma vez e doeu-me imenso, tanto que...
- Que o quê, tia?
- Nada.
- Vá, diga.
- Foi assim como que a tentar, mas como
me ouviu gritar, parou.
- E mais?
- Bem, comecei a ter a falta do período,
notava que a barriga estava a crescer e fui a um médico com a minha amiga.
- Falou-me de hímen complacente, de
anelares, impreparados e até numa palavra rara chamada “criptomenorréia” – a
tia começou a rir, foi o nome que chamámos ao nosso primeiro cãozinho do
quintal, mas que como era muito grande passou a ser chamado apenas por
“Cripto”.
- Tia e que palavras são essas todas?
- Não importa, lembra-te sempre é que
podes ser mamã sem ter contatos completos.
- Sem relações?
- Olha daqui a tia não passa, tu que
tens computador vai ver no “goglé”.
- No Google, tia.
- Ou isso!!
- Já não me contas mais nada?
- Sim, conto meu amor, mas a partir da
pensão, não tens idade para certas conversas.
- Tia, eu contigo aprendo mais do que na
escola.
- Bem, voltemos então à pensão.
Acreditas que o tio Zé e o meu pai se abraçaram? Depois ouviram muito ruído na
rua, estava cheia de gente, tinha chegado a Guarda a cavalo. Foram espreitar
pelo vidro da janela e estava a começar um princípio de escândalo, mas o meu
pai era muito inteligente.
- Confio em ti, José. Guarda a arma, vim
entregá-la para a arranjares na oficina. Amanhã à noite quero-te na minha casa.
Fechou a porta e desceu as escadas.
O Guarda montado no cavalo perguntou-lhe:
- Algum problema?
- Isso pergunto eu, passa-se alguma
coisa?
- Nada, disseram-nos que tinha entrado
aqui com uma espingarda e...
- Tontaria, vim entregar a espingarda ao
Sr. José Boavida para que me a limpe e arranje a abertura do baixar dos canos.
- Desculpe Sr. Albuquerque de Sousa.
Os Guardas entre eles ainda disseram,
isto só a nós, depois esporearam os cavalos e subiram a rua obrigando-os a um
trote.
As pessoas regressaram às suas casas.
- Ai tia, que história... e depois?
- Depois nada, na noite seguinte foram
buscar-me a Évora, onde me levaram dois dias depois. O tio Zé ia com os meus
pais no carro e eu estupidamente dei-lhe um aperto de mão. Jantámos em casa,
conversámos num âmbito de grande alegria, família mesmo, e o João Fernando era
o responsável de tamanha felicidade entre todos. Depois o meu pai disse:
- Têm que casar no Natal, depois acabas
o curso e em julho ficam cá em casa que é grande. Até lá o José fica na pensão,
mas pode visitar-te sempre que não seja aqui na terra, por enquanto.
- Voltei para Évora no outro dia, o tio
também veio, apesar de lhe dizermos que não era necessário, eles insistiram:
- Até ao casamento, não queremos
falatórios!
- E tu, tia Pituca? Como te sentias no
meio disso tudo?
- Até ao Natal nunca fui tão feliz.
- E depois?
- Filha, és chatinha. Depois casámos no
dia 24 de novembro, que a barriguinha mesmo apertada já queria fazer-se notar.
Eu meti um atestado médico, embora o diretor andasse desconfiado, chamou-me:
- Olha, minha amiga. Espero que cases
mesmo. Em janeiro traz um comprovativo, aqui não nos importa o talento ou os
conhecimentos, mas sim a moral. Sois as educadoras escolhidas e pagas pelo
Estado, pelo que tereis a responsabilidade de cumprir os valores principais do
vosso país, Pátria, Deus e...
- Autoridade, Sr. Diretor, eu sei.
- E mais do que autoridade, a defesa dos
costumes. Pelo teu terceiro período, do último ano do teu curso, quero provas
do casamento religioso.
- Ai, tia, que chatos!
- Mas eu ouvia aquele blá, blá, blá, mas
só pensava que o tio Zé ia ser o meu marido durante toda a vida e faltava
pouco, muito pouco.
- E o casamento?
- Do outro mundo, querida afilhada.
Casamos na Cidade, na Igreja de São Lourenço e fomos transportados depois para
a Cervejaria “O Melhor do Mundo”, que o tio, bem, o meu pai que resolveu pagar
tudo, mandou fechar só para a nossa festa, e o tio meteu o carro do nosso
segredo e que ele tanto gostava no transporte dos noivos. Como só tinha dois
lugares, ia de tejadilho aberto e o tio conduzia, cumprimentando as pessoas,
enquanto segurava o volante.
- E a lua de mel?
- Muito pequena, num hotel – a tia aqui
começou a rir como não o fazia há muito tempo – num hotel, quer dizer, na
estrada, que o tio tinha bebido uns copitos e dançou com toda a gente, até
cantou o fado e encostou na berma só um pouco para dormir um pedacinho. Assim
que parou o carro, encostou-se a mim e começou a roncar. Só três horas depois
acordou quando um camião apitou sempre seguido, por ver que estava uma noiva no
carro. O tio disse estremunhado – caramba, já é de dia. Fomos para o hotel e só
saímos no fim do aluguer, baixávamos apenas uma ou duas vezes para não comermos
sempre no quarto.
- E onde era o hotel?
- Na Serra da Estrela e agora, acabou.
- Ó tiazinha, madrinha do meu coração, “porfa”,
por favor só mais um bocadinho.
Mariazinha tinha um talento especial
para fazer da tia o que queria, desde que ela não dissesse “não é não!” e não
tinha dito.
- Bem, vá lá mais um bocadinho. O que
queres?
- Quando vieram da Serra da Estrela
foram para onde?
- Para casa, já tínhamos um quarto
preparado no rés do chão e o resto das divisões estavam pintadas e desalojadas
de tudo o que tinham. Nós que comprássemos as mobílias que queríamos. O meu pai
abriu uma porta para a rua e fechou a parede que dava acesso ao segundo andar,
enquanto fez uma cozinha e uma casa de banho no rés do chão, bem, essas
inacabadas para que fossemos nós a escolher os azulejos, agora bastava o quarto
e que escolhêssemos as mobílias até ao Natal.
Quando acabasse o curso, teríamos
a casa em ordem, individual e com portão de vidro para o quintal. Perguntei ao
meu pai porque não ficava o tio já na casa, escusando o ter de pagar a pensão,
disse-me de imediato que não, quando acabasse o curso e viesse em julho, logo
começaríamos a vida. Ainda me disse o meu pai que o meu marido tinha mais
dinheiro do que ele, pois negou-se a aceitar o seu dinheiro para pagar as
mobílias, os azulejos e as obras que ele tinha começado.
- E quando chegaste do curso?
- Tive que interromper em fevereiro,
pois nasceu o meu João Fernando. Estávamos já na parte de fazer o trabalho
final, por nossa conta e risco, mas fui bastante ajudada pelas colegas do
grupo. O que não esperavam é que a tua tia Pituca, quinze dias depois do bebé
ter nascido, estava na escola com ele e foi a primeira vez que uma mãe amamentava
numa Escola de Magistério, com quarenta colegas/tias que ajudavam.
O Diretor nem
abria o bico, pois Deus o livrasse de uma rebelião de alunas. Dizia-me era que
lhe desse a mama no seu gabinete, que ele obviamente sairia, mas tinha melhores
condições.
- Ó tia, que giro... e depois?
- Depois acabei o curso, voltei a casa
que mobilei com o tio, o João Fernando cresceu e tive o primeiro desgosto, pois
o tio Zé não me deixou trabalhar fora de casa.
Deram-nos um cãozinho ao que
chamamos Cripto e que cresceu com o teu primo. Eram dias aborrecidos, a avó
tinha três quartos alugados a alunos que vinham fazer o Ensino Secundário à
Cidade e eu ajudava-a.
O tio desenvolveu a oficina, meteu umas bombas de
gasolina da Sacor, ficou como representante da Fiat e começou a fazer crescer a
empresa e a passar menos tempo em casa.
Eu estava já farta e como tínhamos
tantos quartos livres no primeiro e no segundo andar, aproveitámos a abertura,
da Escola de Magistério na Cidade e logo no primeiro ano, fizemos uma pequena
pensão onde não dava aulas, mas andava entretida com as futuras professoras.
Todos os meses, o valor de um hóspede era metido no banco numa poupança que
garantisse um curso superior ao João Fernando.
Chegámos a ter doze raparigas em
casa, três no secundário, no Liceu, e nove alunas da nova Escola do Magistério.
Tinham quarto e alimentação, pelo que na cozinha tínhamos a Rosália, que
ajudava nas tarefas todas, mas que levava o tempo muito ocupado com as panelas.
As mulheres que trabalham hoje fora de casa, julgam que são mais independentes.
É um engano, filha. Eu vivia bem. Ia ao mercado com a Rosália, escolhia, pagava
e ela trazia os sacos para casa. Só orientava e tinha tempo para o João
Fernando e até para o Cripto, enquanto ouvia as radio-novelas.
Hoje, as pobres,
trabalham tanto como os homens e depois de chegar a casa, ainda têm de cuidar
dos filhos, das comidas, do aspirador... trabalham muito mais porque os homens
não fazem nada. Mas não ligues, isto são conversas de velhos.
Naquele tempo vivia-se muito mal. Havia
gente rica, muito rica, pobre e muito pobre. Nós éramos assim uns remediados
mais para o rico, mas com muito trabalho. Nada nos faltava, mas era graças ao
trabalho. A tia às vezes até cosia, tinha revistas de moda e quando calhava ainda
fazia uns vestidos para mim, umas camisas para o João Fernando, e até para
fora, que havia sempre amigas que gostavam do que eu fazia, até fiz vestidos
para casamentos e chapéus.
Não me dava para estar quieta.
Havia as guias de
racionamento por causa da guerra, mas tudo nos aparecia em casa, sem faltas, o
tio conseguia açúcar, manteiga... tudo o que era racionado (Pituca riu-se).
Um
dia mandei o meu João Fernando, tinha ele por aí nove ou dez anos, levar um
vestido a casa da mulher do juiz da Cidade.
- Queres lanchar, meu menino? O meu
filho está a comer uma torrada, queres uma? – João Fernando que sempre foi de
boas comilonas, abanou a cabeça dizendo que sim. Comeu e por lá ficou a brincar
com o novo amigo, obrigando a que eu acabasse já preocupada por ir buscá-lo.
- Entre, Dona Pilar, o menino está bem,
tem brincado com o meu filho e até lanchou.
Depois, virando-se para o meu João
Fernando disse-lhe:
- Gostaste da manteiga no pão? - o garoto
olhou-me e com as respostas sempre na ponta da língua... respondeu à senhora:
- Sim, mas a minha mãe lá em casa mete
sempre a manteiga dos dois lados da torrada.
A tia Pituca riu, gargalhou mesmo.
- Mas olha, filhota, vivia-se mesmo
muito mal. Um dia, apareceu uma senhora a bater-me à porta com uma menina que
ela dizia ter dezasseis anos, mas a quem eu daria treze ou catorze, do delgada
que era, pequenina, mas com uma cara de sonho. Linda, muito linda, olhos de um
verde escuro e límpido, numa pele escura de calor e campo, chaminé e campo,
sempre campo, onde se arrancava a pulso o pão naqueles tempos sem
supermercados.
- Sei quem é a senhora, dizem-me, que é
boa pessoa e gostava que a minha filha fosse criada por si. Sabe fazer tudo em
casa, é a mais pequena das oito irmãs. Os rapazes ficam comigo e com o pai, mas
mesmo assim o chão não nos dá o suficiente para tanta boca. Trabalhará só pela
comida e por aprender a ser uma pessoa de bem. Fique com ela, minha senhora e
se lhe der por mês algumas moedas pode estar certa que ela entregará à família,
sabe que tem gente que depende deste seu trabalho, desta sua nova casa, da
segurança da barriga cheia e quem sabe, se a senhora Dona Pilar não a ensinará
a ler. Faça, por favor, dela uma mulher.
- Quem lhe falou de mim?
- Foi a senhora do Sr. Doutor Juiz. A
irmã ficou lá e falou-me da senhora que tem uma casa basta onde a fome e a
miséria não passam da porta de entrada.
- E que fez a tia Pituca?
- Querias que fizesse o quê, meu amor?
Ficou lá, comprei-lhe roupa nova de trabalho, mas também para sair, ajudava a
Rosália, aprendeu a fazer camas, a trabalhar com a enceradora, mas muitos dias,
deixava-a brincar no quintal com o João Fernando, pouco mais velho do que ela e
com Cripto, que estava um canzarrão brincalhão e gostava dos dois companheiros
de brincadeira. Nunca mais me esqueço das últimas palavras da mãe:
- Faça dela uma mulher, minha senhora.
- Por isso nos fins de semana, comecei a
ensiná-la a ler, comprei cadernos de duas linhas, lápis, borracha, uma pedra e
um caneto e um livro da primeira classe que curiosamente abriu e cheirou antes
de ver os bonecos e as letras que em breve conheceria.
- Muito obrigada, minha senhora – quis
beijar-me as mãos.
- Como se chamava a menina?
- Beatriz.
in A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
(...a ser escrito...)
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