miércoles, 29 de enero de 2014

COISAS DE CRIANÇAS


 Escorria-lhe do canto da boca, baba viscosa que lhe molhava a beata curta, apagada, enganadora do vício que teimava em enganá-lo.
Nunca vi mãos que tremessem tanto, mas as palavras eram seguras, directas, eram palavras com força, contendo uma história em cada letra.
- Sabe , Senhor? Nasci aqui, no Alentejo, ainda fui à escola, sim senhor. Pouco tempo, mas fui.Conhece a Rosa do montado? Namorei-a nove anos!... antes de conhecer a minha patroa. Andámos juntos na escola. O pai dela era merceeiro, uma profissão muito boa naquela altura. Tirou a quarta classe e foi estudar para a cidade. Hoje é professora. Mas, namorei-a nove anos, sim senhora! É que sabe? Ela nas férias vinha à aldeia, e eu... gostava dela, naquela altura... coisas de gaiatos... (sorriu) era bonita, muito bonita mesmo. Depois, a cidade subiu-lhe à cabeça, começou a dar aulas aos cachopos e conheceu um qualquer desses das Finanças, que lhe deu um carro, uma casa... encheu-lhe a barriga.
Eu não podia, tirei só a terceira classe. Andava pelo campo a guardar catorze ovelhinhas. Ganhava um tostão por dia.
Hoje, ela é uma senhora fina, dona do montado.
Se calhar já se nem lembra de mim. Nem me olha na rua.
Coisas de crianças, sabe? Coisas de crianças...
                                                                                                                                   AM
1999
in- Retratos Esquecidos de uma Velha Gaveta ( na gaveta)

martes, 28 de enero de 2014

CRÓNICA DE JANEIRO / PANTEÕES / SEMANÁRIO FONTE NOVA


PANTEÕES
Agora, está na moda o Panteão Nacional.
Podemos estar anos sem ouvir falar dele, e de repente, zás, tudo e todos para o panteão, desenterrados e reencaminhados, com cheirinho a Inês de Castro.
Eusébio, Sophia de Mello Breyner Andresen, Aristides de Sousa Mendes, Irmã Lúcia, Capitão Salgueiro Maia (…) Acho que sim, até porque com tanto português ilustre nascido nas últimas décadas e com o facilitismo com que se pede e pelos vistos concede, a subida ao altar civil, deveria estar ao alcance do comum dos mortais, como aliás, parece ser o que pretende a maioria do povo português, carente como anda de heróis, já mesmo sem esperança em manhãs de nevoeiro, que os candidatos ao heroísmo épico destes últimos tempos, são foleiros e não merecem confiança por pantomineiros.
Foram bem ensinados, como Jotas, ex-JSD, ex-JS, ex-JCP… beneficiaram dos melhores professores, hoje todos bem na vida porque aprenderam o Abracadabra de Ali-Babá.
Somos governados por Jotas, o pior que foi criado pelos partidos.
Vasculhamos assim os mortos recentes, os que a memória ainda recorda, pois os outros, num país com uma partilha cultural deficiente, estão esquecidos e dificilmente se irão da lei da morte libertando.
Passamos assim a recolher nomes, esfomeados de pátria, para os ungirmos com o óleo dos reis.
Seria Portugal o mesmo hoje sem Eusébio da Silva Ferreira? Julgo que sim. Sem Sophia? Parece-me que também. Sem Aristides ou sem Lúcia? Talvez sim, que sei eu? Que sabemos nós? Se não demos tempo ao tempo?
Destes nomes, soprados e circulantes pela net, terei que reconhecer que Portugal, seria melhor ou pior, mas sempre diferente do que fora até aí, se Salgueiro Maia se não tivesse cruzado na história, pelo que concordo com o poeta Alegre de nome e carrancudo de semblante, o poeta da voz de barítono e levar o capitão de Castelo de Vide para a Capital, deitando-o para sempre junto de outros portugueses ilustres, não me espanta, achando-a mesmo uma decisão acertada.
Já sobre Sophia, a quem respeito como um grande nome das letras, a quem admiro pelo legado que nos deixou, causa-me dúvidas pelo precedente que abrirá, na medida em que a considero pertença de um lote de grandes nomes da literatura, como Torga ou Saramago e poderemos causar injustiças de dano a nomes de vulto como Eça, Pessoa, Nemésio, Natália Correia, Florbela, Romeu Correia, tantos e tantas… felizmente, que será bom parar de os nomear para evitar omissões certeiras inevitáveis, pela qualidade do mundo das letras portuguesas, vivos ou mortos.
Não podemos enviar esta malta toda para o jazigo público, pois correremos o risco da banalização.
A ida de Sophia para o panteão, será um precedente, como o foi Amália e abrirá portas até agora impensáveis de abrir.
Foi uma figura notável, sem dúvida, de que a nossa língua se tem que orgulhar, mas quantos portugueses apenas conhecem a poetisa por ser mãe do quase bonito (segundo ela), jornalista e comentador, pioneiro com Sócrates no ataque cerrado aos professores, o primeiro passo para a destruição da escola pública?
São famílias de elite, que ainda por cima sabem escrever, amando ou mordendo com a pena e o tinteiro.
Foi arquivado o seu processo de apalhaçar Cavaco Silva, privilégios, que não tem o cidadão Carlos Costal, 25 anos, de Campo Maior que no dia 10 de Junho, em Elvas, mandou o Presidente trabalhar, chamando-lhe  gatuno e que à data de hoje, continua a ser mordido pela justiça, perseguido por um presidente pequenino e herói que não larga o moço, como osso, sabendo que daí nada tem a temer, o que o leva a manifestar o seu ódiozinho, cobardemente, com quem sabe ser mais fraco e desprotegido.
Tal como Amália abriu as portas a Eusébio, deixando caminho a Ronaldo um dia que bata a bota, também Sophia abrirá portas a todos os gostos, e depois dela, obras de melhoramento e acrescento no panteão, que muitíssimos ilustres lhe baterão à porta. A pedido. Negociatas de parlamento, que o parlamento é o povo. Assim um pouco como as insígnias pátrias, ordens e comendas, nas mãos desta gente. Moeda de troca ou agradecimento pessoal…
A não ser, que tudo isto se trate de uma estratégia para que os portugueses e portuguesas recuperem a auto-estima. Tal como “santos podemos ser todos” parece que nos estão a estimular “panteados poderemos ser todos também”.
Nasce assim uma esperançazinha, de que depois de uma vida de merda, possamos aspirar a um descanso eterno e reconhecido.
Já a igreja nos ensinou durante anos a fazer o mesmo, ser humildes, trabalhadores, bonzinhos, sem refilar, que depois tínhamos o céu.
Por mim, dispenso altares e panteões, prefiro sinceramente que me devolvam os 200 € que me roubaram de novo este mês.
Deixem-me viver tranquilo, que depois de morto, logo se verá.

                                                                     ARAGONEZ MARQUES

domingo, 26 de enero de 2014

GOSTAVA DE PERCEBER AS PRAXES


Ontem, depois de ver o documentário da RTP, senti vergonha como professor e pai. Assumo o total falhanço na educação dos últimos 30 anos.

Isto passa-se na Guarda. Europa. Século XXI. Inimaginável!



É muito difícil acreditar que esta gente vai um dia estar à frente de turmas de crianças ou de jovens, à frente de serviços públicos ou de empresas. Ou sentada na mesa de um tribunal. Ou nas cadeiras da Assembleia da República. Ou dos destinos das autarquias. No Governo, já não custa tanto a imaginar.

"...Os caloiros são obrigados a comprar leite, farinha, ketchup, maionese, ovos, etc. Levam com papas k contêm urina, fezes, vomitado e por aí adiante... É mt mt mt vergonhoso! A maioria das vezes praxam os caloiros no chafariz da Dorna por ser um sitio escondido..." - (num post de Maria Helena Dias Loureiro)


Hoje, depois deste post de Maria Helena Dias Loureiro, pergunto-me em que falhámos?






sábado, 25 de enero de 2014

OPORTUNIDADE PARA JOVEM ILUSTRADOR

A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL
(Novo livro )

Convido jovens desenhadores, com ou sem currículo, para apresentarem proposta para a capa, até dia 15 de Fevereiro de 2014.

Serão obrigatórias, as palavras:
...(Titulo)...
ROMANCE
NOME DO AUTOR
(Espaço para a colocação do logo da editora)

Serão obrigatórias 3 imagens:

UM BIGODE FARFALHUDO E ENROLADO NAS PONTAS
UM TRICÓRNIO DA GUARDA CIVIL ESPANHOLA
UMA CABELEIRA LOIRA DE MULHER

Os interessados deverão enviar as propostas ou informações adicionais para:







viernes, 24 de enero de 2014

RECEBI UMA BOA NOTÍCIA


Hoje 
uma leitora comunicou-me
 que ofereceu o livro a uma amiga 
e ficou muito surpreendida, 
porque foi a mãe da sua amiga, 
que fez dele livro de cabeceira. 

Trata-se de uma senhora, 
que sofre de Alzheimer
 e a quem 
Retratos de Gente em Procissão,
 ajudou a torná-la mais feliz recordando cantinhos da sua cidade, 
escondidos na sua memória. 

Segundo me contou, tem o livro ao seu lado
e várias vezes por dia
abre-o e lê. 

São estas pequenas coisinhas
 que me fazem sentir feliz,
 apesar de tanta tristeza,
 que gira à nossa volta.





jueves, 23 de enero de 2014

FIGURA DO ANO - CRÓNICA / SEMANÁRIO FONTE NOVA



FIGURA DO ANO
Depois do assalto coordenado às janelas e varandas de Norte a Sul, das bandeiras de um país que pretendia ganhar no futebol, vimo-nos novamente assaltados pelos pais natais chineses, trepando escadas e cordas, sacos vazios às costas, imobilizados, como na pausa de um CD.
Competiam nessa guerra com os panos vermelhos do velho natal da velha religião, com um menino de loiça, corpo de três meses e cara e cabelo de três anos, dedos em V, terninho, loirinho e branquinho.
 Os barrigudos anões, foram os primeiros a chegar, barba branca, óculos, barrete vermelho e branco, e vieram em contentores, pelo mar e não pelo céu, de barco e não de trenó, mas logo de seguida numa luta absurda, chegou o retrato do menino, e ambos disputaram um espaço de montra, nas fachadas das casas.
Alertava o pároco para a importância do Natal, para o nascimento do Menino, que os faziam ser donos da tradição, e ali estavam os panos, vendidos na sacristia, seda vermelha, menino gravado, a seis euros primeiro, baixando a quatro depois, à medida que a Noite Santa chegava.
Reproduziram-se nas ruas, nas avenidas, nas casas do Largo, aquela invasão de gorduchos atacantes de varandas e janelas, como pequenos marcianos vermelhos, mais trepadores que voadores.
 Reproduziram-se os panos como bandeiras, tapetes voadores vermelhos verticais, com um Aladino ocidental deitado.
A disputa foi continuando, pela conquista dos espaços, e agudizou-se quando os chineses de Badajoz, começaram a vender os panos vermelhos, iguaizinhos (apenas em vez de “Feliz Natal”, tinham “Feliz Navidad”).
Estalou a guerra total, quando as lojas chinesas de cá, passaram a vender os panos de Feliz Navidad, de lá.
Pai Natal anão de escada e pano vermelho Feliz Navidad, de um lado, pano vermelho Feliz Natal, do outro.
As beatas garantiam que os panos espanhóis eram falsificações fabricados na China, por crianças sem ir à escola, por pessoas sem direitos no trabalho (como aqui?), por isso serem tão baratos, a comparar com os da sacristia.
- Os nossos são de seda, e o senhor padre mandou-os vir de Leiria.
- Ó vizinha… mas olhe que se não fossem os dizeres, eram iguaizinhos…
Não tem esta nossa igreja, mais nada para fazer, com os desempregados, situações de pobreza e medo por trás daquelas janelas e varandas, do que emoldurar por fora, maquilhando, o quadro da tristeza.
Estávamos mesmo necessitados de um Papa chamado Francisco.
Também o nomeio figura do ano.


ARAGONEZ MARQUES

O COICE - CRÓNICA / SEMANÁRIO FONTE NOVA



O COICE
Está a terminar Outubro, o primeiro que me lembre sem comemorações da República. Quem diria? Com o dinheiral e ilusões gastos nos festejos dos 100 anos, há tão pouco tempo, com trabalhos feitos pelos meninos da escola, livros editados para a ocasião, pompa. Talvez por isso os Espanhóis chamem pompa a uma bola de sabão, eles que, monárquicos cada vez com menos Rei, sempre que o tentaram nas suas duas bolas de sabão sem folego, pensavam que era feriado o 5 de Outubro, por ser o dia de Portugal na Feira de Zafra. Talvez mesmo pensando, que era festivo, para que os portugueses fossem ver os toiros, ovelhas e cavalos.
Palavra como cerejas, nas escolas, comemorou-se não a 5, mas a 4 de Outubro, o dia do animal.
Com novas modas, sempre tão criativas como saloias, num calendário onde faltam dias para os dias de: … mulheres, pai, mãe, avós, criança, namorados, bruxas, turista, alimentação, normalização, cancro… competindo com o santuário onde são já os dias de mais do que um santo, e um dia de todos juntos para os que não tenham dia nenhum, aí foi a minha escola para mais uma comemoração.
Falou a Manuela, educadora de infância e ativista infantil, com a mãe de um antigo aluno, hoje com pelos na cara que vive numa quinta ali perto. Aí foi a escola, em peso, ver os toiros, as ovelhas e os cavalos, mas também os gatos, os cães, as galinhas e os patos.
Dividimos os gaiatos por grupos, equipas com tarefas a realizar na quinta. Diferenciar mamíferos, aves e peixes, colocar cada animal na sua família, com recolhas de imagens, descrições escritas e fichas de verdadeiro e falso com tem pelo não tem pelo, bebe leite não bebe leite, essas coisinhas que é melhor descobrir-se do que ouvir-se apenas, até porque perguntas a dúvidas como se todos os mamíferos andavam 9 meses de balão, iam anotadas em estado puro, para a entrevista à dona da propriedade.
Para quem diz que os pais estão arredados da escola, que são alheios ao que se passa e pouco ou nada interferem de um lado para o outro da vedação, fechada a sete chaves, aberta apenas quatro vezes por dia e por onde nos intervalos espreitam como para jaula gigante, introduzindo bananas e bolicaos pelas grades como no zoológico, não sei se por questões ditas de segurança para os meninos e meninas ou para os corpos docentes de senhores professores e minhas senhoras, sotores e sotoras alguns, cada vez mais, apesar de ganharem cada vez menos, o mês de outubro foi para mim referente desse engano.
Claro que os encarregados de educação não estão alheios, e interferem, e fazem parte do universo escolar, apesar das grades e das melhores fechaduras.
Os grupos, com os trabalhos já feitos, conquistadores de pontos por cada tarefa cumprida em equipa, foram premiados em cerimónia de fim de dia. Foram feitas umas medalhas de cartão do fim dos blocos dos cadernos, com a referência ao dia, e que atribuía primeiro, segundo e terceiro lugar às equipas de investigação que pesquisaram na quinta. Tinham as medalhas uma fita de papel de embrulho, vermelha e reluzente que foi colocada no pescoço dos elementos das equipas que melhor trabalharam. No outro dia, logo pela manhã, apresentou-se uma mãe, com a medalha de cartão do filho na mão, a outra na cintura. Na medalha estava escrito o nome da escola, a data da visita, 4 de Outubro, dia do animal e por baixo um 1º, grande e bem desenhado a negro.
- Minha senhora, não sei porque o meu filho levou isto ontem para casa, nem porque acha que é o animal nº1.
Embasbacada, a diretora lá explicou que aquilo significava um primeiro prémio, num concurso e tal e tal …que o professor era assim, sempre com invenções e tal, e tal e tal…
Lá foi a mãe feliz, levando a medalha que trazia escondida, pendurada agora dos dedos à vista de toda a gente.
Alheios ao que se passa na escola? Claro que não!
Também no final da atividade e quando se abordou que houve animais que se não tinham visto, num esforço dos professores, para que chegassem à conclusão de que na quinta não haviam peixes, e reforçando a pergunta de qual o animal que não havia, o Carlos, disse prontamente:
- Os burros!
Quais burros?... outros que respiram por guelras, têm escamas… mas sabendo que o Carlos tinha razão e que burros também não havia, a professora disse-lhe:
- Os burros, também já são poucos mas prometo-vos que quando fizermos a visita de estudo a Lisboa…
- Vamos à Axembleia.
- À Assembleia Carlos? Vamos a uma quinta pedagógica onde há muitos animais domésticos e também burros certamente.
- O pai dixe-me que em Lisboa na Axembleia há muitos burros.
Os pais não interferem na escola? Claro que sim!
Eu fiquei como o Scolari e em vez de exclamar “e depois o burro sou eu”, pensei: os burros somos nós, que aí os juntámos, com o nosso voto, nesta democracia de faz de conta, onde nos levam a assinar cheques em branco para depois nos devolverem as contas completamente carecas.
Evidentemente que os burros somos nós.
Tenho a certeza que é necessário, deixarmos de zurrar nos cafés, nas avenidas e nas pontes e passarmos de vez a escoicear.
Arre!
                                                                                                                  Aragonez Marques

Nota:
Os meus agradecimentos ao António João Rosinha, dono do EX em Campo Maior, lugar onde tenho escrito nos dois últimos meses, o novo livro que tenho, da mente para papel, e as croniquetas para os jornais, com a disponibilidade da sua rede de net, e de onde faço escritório, todos os dias, no fim do trabalho pago.
Ao Rosinha, e à educadora Manuela, inspiradora desta crónica.





PROFESSORES DE MARMITA / CRÓNICA SEMANÁRIO FONTE NOVA



Professores de marmita

É a nova geração.
Chegam de norte a sul, colocados pela plataforma, decidem em 24 horas se aceitam ou não o lugar, e aí vão…
Alugam quartos ao mês e comem asinhas fritas de frango, nas salas de aula, poupando o dinheiro das cantinas escolares, que esta história dos subsídios de alimentação é uma treta e mais do que nunca fazem parte do salário.
Ontem chegou um, veio ocupar o último quarto livre da casa onde também estou. Trazia mochila e vinha de Arcos de Valdevez. Matemática. Professor de matemáticas, não sei se parte integrante dos novos programas. Lembrei-me dos tempos em que comecei, também de mochila, só que nessa altura, por essas datas, a mochila levava sonhos, começos e esperanças. Hoje, quem chega, roça os quarenta anos, quem vai ou vem está sem filhos, família, apenas tem projectos de esposas e mães de rebentos por nascer,  noutras escolas, noutras terras, deste mapa pequeno, mas gigantesco, para quem leva metade da casa às costas. Com essas idades, já eu tinha apartamento da Caixa Geral de Depósitos, filhas e caminho a percorrer. Agora, procuram-se vinte euros para pagar exames, atrasos, como quem adia uma dívida à custa de desculpas mal contadas.
Adia.
É a geração dos professores de marmita.
Saí agora do quarto alugado, ver se a selecção nacional me alivia a angústia depois do violento e último roubo de mais de metade do subsídio de férias. Deixei o novo companheiro a enrolar cigarros com máquina dos chineses e a fazer a sua primeira participação de falta disciplinar a aluno, obrigado a estar na escola para efeitos estatísticos.
Vir um homem de tão longe para fazer participações disciplinares…
Está cinzenta esta escola que quer comer a outra escola que (ia escrever tinha) tem dentro.
Ontem.
O papá leva o gato
- Senhor professor eu tenho um gato…
E o professor aproveitou, e deixou falar sobre o gato, que bebia leite, que tinha pelo, quanto media? Já mediu dez centímetros, agora mede aí um metro… um metro? Vai lá buscar o metro, heia! Que grande gato, vá lá vinte centímetros…
Hoje.
O papá leva o gato
- Senhor professor eu tenho um gato.
- Calou!! Perguntei-te alguma coisa? O menino só fala quando lhe perguntarem. Entendeu? Cada vez chegam piores, nem deixam trabalhar…
Há na realidade duas escolas, uma cinzenta com boca grande, disciplina, pontualidade, rigor… uma merda. Desculpa mãe, lá me saiu mais uma asneira. Tu sabes que não digo palavrões quando falo, mas a escrever, saem-me às vezes. Prometo que substituo a “palavrona” daqui para o futuro por “uma coisa”. Contente? Bem, mas falava das escolas e dos professores, com quem me zanguei muito por não terem aderido à greve do passado dia oito, mas que já perdoei, pois não há dúvida que esta malta não tem dinheiro nem para os cartazes e apitos das manifestações, quanto mais para perder um dia de trabalho. Temos que inventar novas formas de protesto, sem que nos venham ao bolso. Ficarmos todos na escola, a fazer uma chouriçada de protesto e mandarmos às urtigas os trezentos euros com que nos querem comprar para corrigir exames de colegas, companheiros de viagem, ainda por cima, nas férias de Natal.
É perverso.
A escola da boca grande, como as plantas invasoras do Guadiana, enche o cenário de verde e clorofila de esperança, mas asfixia tudo o que se move no rio. Abanam a árvore da escola pública de alto a baixo, à mão e à máquina como as oliveiras, de noite e de dia, porque tem pressa  em criar gente temerosa do futuro, bons dominadores da escrita e dos números (na óptica do utilizador), a que chamam Língua e Matemática, suprimindo qualquer área de expressão que motive ou estimule a criatividade, querem actuantes e não pensantes, que trabalhem num modelo de sociedade de produção barata, que assinem sem pestanejar novos contractos, sem segurança de futuro, por qualquer salário, e com reformas e idades a perder de vista. Para isso precisam desta escola e de preferência sem professores da geração de Abril, não se coibindo de os tentar comprar com montantes ludibriosos, que os levem a largar as paredes com vida, ainda, da escola que ajudaram a criar.
Precisam de “nova” escola para “novo” estado novo.
Precisam de pessoas com medo e por isso apontam para exames, metas, estimativas, novos programas, novos professores. Não contam para as rescisões amigáveis os anos de doença, pelo que, para além de docentes jovens e submissos, que os outros já emigraram, não se importam de ficar também com docentes doentes, pensando, quem sabe, poupar, com a junção do Ministério da Saúde com o da Educação. Atrevem-se a transformar a escola pública em gigantesco laboratório de experiências, cobaias, mesmo com o corte de relações das Universidades, reitores e alunos desta vez em uníssono, perante o descredito e a estupidez. Os meninos do governo, como lhes chama Lobo Antunes, vivem na total impunidade, ameaçando mesmo o Tribunal Constitucional com o apoio de quem jurou defender a Constituição, defendendo-nos a nós, portugueses e portuguesas.
São meninos da linha, cruéis e tiranetes a quem devemos quanto antes cortar as unhas, que começam a crescer, até porque nunca foram arranhados pela vida e não sabem o que isso dói.
Entretanto, enquanto o pau vai e vem, julgamos folgar as costas, mas não, apenas duplicamos as marmitas.
E porque o prometido é devido:
- Isto é uma coisa!
Viste mãe? Que educado é o teu filho professor.
A propósito, parabéns pelo teu aniversário.
Que saudades tenho de quando tinhas a minha idade.
Aí estaremos todos no dia 30, e com tantos professores na família, faremos certamente um comício caseiro, para aliviar o cheiro desta “coisa” do ensino atual, sem c, viva o desacordo acordado.
Pelo sim pelo não, e se não te importares, levo a marmita para trazer alguma sobra da festa pois logo na segunda-feira, começa a primeira semana nómada do mês de Dezembro.
Vida de professor.
-Bela coisa!