jueves, 23 de enero de 2014

PROFESSORES DE MARMITA / CRÓNICA SEMANÁRIO FONTE NOVA



Professores de marmita

É a nova geração.
Chegam de norte a sul, colocados pela plataforma, decidem em 24 horas se aceitam ou não o lugar, e aí vão…
Alugam quartos ao mês e comem asinhas fritas de frango, nas salas de aula, poupando o dinheiro das cantinas escolares, que esta história dos subsídios de alimentação é uma treta e mais do que nunca fazem parte do salário.
Ontem chegou um, veio ocupar o último quarto livre da casa onde também estou. Trazia mochila e vinha de Arcos de Valdevez. Matemática. Professor de matemáticas, não sei se parte integrante dos novos programas. Lembrei-me dos tempos em que comecei, também de mochila, só que nessa altura, por essas datas, a mochila levava sonhos, começos e esperanças. Hoje, quem chega, roça os quarenta anos, quem vai ou vem está sem filhos, família, apenas tem projectos de esposas e mães de rebentos por nascer,  noutras escolas, noutras terras, deste mapa pequeno, mas gigantesco, para quem leva metade da casa às costas. Com essas idades, já eu tinha apartamento da Caixa Geral de Depósitos, filhas e caminho a percorrer. Agora, procuram-se vinte euros para pagar exames, atrasos, como quem adia uma dívida à custa de desculpas mal contadas.
Adia.
É a geração dos professores de marmita.
Saí agora do quarto alugado, ver se a selecção nacional me alivia a angústia depois do violento e último roubo de mais de metade do subsídio de férias. Deixei o novo companheiro a enrolar cigarros com máquina dos chineses e a fazer a sua primeira participação de falta disciplinar a aluno, obrigado a estar na escola para efeitos estatísticos.
Vir um homem de tão longe para fazer participações disciplinares…
Está cinzenta esta escola que quer comer a outra escola que (ia escrever tinha) tem dentro.
Ontem.
O papá leva o gato
- Senhor professor eu tenho um gato…
E o professor aproveitou, e deixou falar sobre o gato, que bebia leite, que tinha pelo, quanto media? Já mediu dez centímetros, agora mede aí um metro… um metro? Vai lá buscar o metro, heia! Que grande gato, vá lá vinte centímetros…
Hoje.
O papá leva o gato
- Senhor professor eu tenho um gato.
- Calou!! Perguntei-te alguma coisa? O menino só fala quando lhe perguntarem. Entendeu? Cada vez chegam piores, nem deixam trabalhar…
Há na realidade duas escolas, uma cinzenta com boca grande, disciplina, pontualidade, rigor… uma merda. Desculpa mãe, lá me saiu mais uma asneira. Tu sabes que não digo palavrões quando falo, mas a escrever, saem-me às vezes. Prometo que substituo a “palavrona” daqui para o futuro por “uma coisa”. Contente? Bem, mas falava das escolas e dos professores, com quem me zanguei muito por não terem aderido à greve do passado dia oito, mas que já perdoei, pois não há dúvida que esta malta não tem dinheiro nem para os cartazes e apitos das manifestações, quanto mais para perder um dia de trabalho. Temos que inventar novas formas de protesto, sem que nos venham ao bolso. Ficarmos todos na escola, a fazer uma chouriçada de protesto e mandarmos às urtigas os trezentos euros com que nos querem comprar para corrigir exames de colegas, companheiros de viagem, ainda por cima, nas férias de Natal.
É perverso.
A escola da boca grande, como as plantas invasoras do Guadiana, enche o cenário de verde e clorofila de esperança, mas asfixia tudo o que se move no rio. Abanam a árvore da escola pública de alto a baixo, à mão e à máquina como as oliveiras, de noite e de dia, porque tem pressa  em criar gente temerosa do futuro, bons dominadores da escrita e dos números (na óptica do utilizador), a que chamam Língua e Matemática, suprimindo qualquer área de expressão que motive ou estimule a criatividade, querem actuantes e não pensantes, que trabalhem num modelo de sociedade de produção barata, que assinem sem pestanejar novos contractos, sem segurança de futuro, por qualquer salário, e com reformas e idades a perder de vista. Para isso precisam desta escola e de preferência sem professores da geração de Abril, não se coibindo de os tentar comprar com montantes ludibriosos, que os levem a largar as paredes com vida, ainda, da escola que ajudaram a criar.
Precisam de “nova” escola para “novo” estado novo.
Precisam de pessoas com medo e por isso apontam para exames, metas, estimativas, novos programas, novos professores. Não contam para as rescisões amigáveis os anos de doença, pelo que, para além de docentes jovens e submissos, que os outros já emigraram, não se importam de ficar também com docentes doentes, pensando, quem sabe, poupar, com a junção do Ministério da Saúde com o da Educação. Atrevem-se a transformar a escola pública em gigantesco laboratório de experiências, cobaias, mesmo com o corte de relações das Universidades, reitores e alunos desta vez em uníssono, perante o descredito e a estupidez. Os meninos do governo, como lhes chama Lobo Antunes, vivem na total impunidade, ameaçando mesmo o Tribunal Constitucional com o apoio de quem jurou defender a Constituição, defendendo-nos a nós, portugueses e portuguesas.
São meninos da linha, cruéis e tiranetes a quem devemos quanto antes cortar as unhas, que começam a crescer, até porque nunca foram arranhados pela vida e não sabem o que isso dói.
Entretanto, enquanto o pau vai e vem, julgamos folgar as costas, mas não, apenas duplicamos as marmitas.
E porque o prometido é devido:
- Isto é uma coisa!
Viste mãe? Que educado é o teu filho professor.
A propósito, parabéns pelo teu aniversário.
Que saudades tenho de quando tinhas a minha idade.
Aí estaremos todos no dia 30, e com tantos professores na família, faremos certamente um comício caseiro, para aliviar o cheiro desta “coisa” do ensino atual, sem c, viva o desacordo acordado.
Pelo sim pelo não, e se não te importares, levo a marmita para trazer alguma sobra da festa pois logo na segunda-feira, começa a primeira semana nómada do mês de Dezembro.
Vida de professor.
-Bela coisa!


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