viernes, 29 de mayo de 2020

A TABERNA DE AVELINO CAMEJO / CAPÍTULO 16 / OFERTA DE LEITURA





16. Os primos

Avelino Camejo não era muito de cemitérios e por isso, os funerais eram algo que o faziam, sempre que possível, não estar presente.

Foi ao do senhor José, não por ele, mas por Dona Beatriz, tão velhinha que se adivinhava não ir viver muito mais depois daquele desgosto, o que se veio a confirmar dez dias depois, por Preciosa que se encontraria orfã e sozinha no mundo e por Sebastião, com mãe já num lar, pois começava a não conhecer ninguém, a esquecer-se da vida e muitos dias até do filho e foi, porque Matilde, indignada lhe disse claramente:

- Não penses nem vir!

Foi, mas ficou para último à saída da igreja, vendo de longe o sofrimento de quem acompanhava o defunto, acompanhando à distância as lágrimas de Preciosa, mas deixou-se ficar no final do cortejo, feito a pé, desde a igreja até aos ciprestes, naquele último passeio de quem não passearia mais. 

Depois, já lá dentro, num repente que não gostaria de ter tido, acendeu-se aquele neurónio intermitente que às vezes o fazia ter a sensação de conhecer a mulher de Sebastião. 

Estava mais velha, era verdade, as feições mudaram com o tempo, mas naquela fragilidade de menina sofredora, reconheceu-a.

Voltou atrás no tempo. Àquele verão caloroso. O tio morrendo na cama do hospital, a tia Pituca sempre ao seu lado, ares condicionados todos sem trabalhar, suor empapando a morte no terceiro piso do hospital:

- Quero falar com o Picado antes de morrer, vê se o encontras Avelino.

O Senhor Picado, mais conhecido por “Pica-Peixe”, era um grande amigo de José Boavida, anos de paródias, pescarias e conversas. 

Foram fundadores do Clube de Pesca da Cidade cujas estantes estavam recheadas de taças e troféus, poeirentos.

Avelino foi a sua casa:

- O meu tio quer falar consigo.

- Como é que ele está desde esta manhã?

- Piorou, a minha tia chamou o padre para lhe dar a extrema-unção. Tem que vir Senhor Picado, pois a última coisa que quer é falar consigo.

- Vamos no meu carro - e montaram-se no Fiat 850 cinzento do Senhor Picado.

- O pior é parar com tantos espanhóis a comprar atoalhados, cães de loiça, terrinas floridas e relógios de banho de cobre e estilo barroco.

- Fico no carro, se vier a polícia tiro-o.

O Senhor Picado subiu as escadarias de granito do hospital, margeadas de arcadas de mármore, que unidas, faziam um corrimão frio de largura razoável.

Cruzou-se com Pituca na escadaria larga e segura, majestosamente segura:

- Vi-os chegar da janela do quarto, sobe Picado, eu vou ter com o meu sobrinho, vou a casa buscar uma ventoinha. O calor é demais.

Podem ter demorado cerca de uma hora, pois Pituca, já que estava em casa, não resistiu a fazer um chá de camomila com gelo e bebê-lo calmamente desfrutando do sofá da sala.

Falou com Avelino:

- O tio Zé já não sai do hospital, nunca mais ficará sentado nesta sala. Quando eu morrer estás a ver este quadro?

Era uma moldura pequena que envolvia um alfabeto desenhado e bordado a ponto cruz. 

Pituca tirou-o da parede, por trás, forrada a fita-cola estava uma chave.

Avelino ficou surpreso.

- Só tu é que sabes, esta chave é da gaveta de baixo da cómoda do quarto do meu querido João Fernando, onde tu ficaste como filho que o meu coração adoptou. Dentro está um testamento que fiz com o teu tio há alguns anos, pouco depois de mudarmos de cidade.

Avelino ouvia pasmado e com atenção.

- Está dentro de um envelope lacrado e leva-o ao Dr. Sampaio, que sempre foi o advogado da família, ele saberá o que fazer com ele.

- Tia Pituca, mas a tia está viva.

- Graças a Deus e bastantes anos Deus ainda me traga por cá. Digo-te isto pois morrerei na tua casa, para onde quero ir. Um dia que eu me fine (benzeu-se), nesse mesmo dia, quero que venhas aqui e tranques a porta da minha casa. Não deixes entrar ninguém, nem mesmo da família. Ninguém mesmo. Tiras a chave do quadro e levas o testamento. Depois só abres a casa após a sua leitura pois o original ficou com o advogado e cópia no tribunal. Prometes?

- Sim tia, prometo.

- Bem vamos lá buscar a ventoinha que o Picado, sedento como é e sem uma cerveja à mão, deve estar contando os minutos.

Ao chegarem ao hospital o Senhor Picado já estava na rua, esperando, branco como a cal da parede e chapéu na mão, dando passos para a frente e para trás como um soldado de guarda à porta de um quartel.

Pituca:

- Está tudo bem?

- Sim, deixou-se dormir e o calor era muito...

Virou-se depois para Avelino que levava já a ventoinha na mão.

- Depois de montar isso no quarto, baixe, eu fico aqui, preciso de lhe falar.

Quando Avelino, Pituca e a ventoinha chegaram ao quarto, o tio estava deitado de lado, olhos abertos, mas sem conseguir falar, a mulher fez-lhe uma festa, ele agarrou-lhe a mão e colocou-a nas costas.

Pituca começou a coçá-lo o que lhe parece ter trazido mais alívio, fechou os olhos e apenas se sabia que estava vivo porque respirava alto, grunhidos, como os porcos das matanças, já depois da faca espetada, esperando a morte.

Avelino tentou fugir dali, mas dava-lhe pena a tia...

- Vai Avelino, vai ter com o Picado que algo te quer, a tia fica bem e também preciso ficar sozinha com ele, porque o tio não passa de hoje. Fez-lhe uma festa na testa enquanto com a outra mão, lhe coçava as costas menos suadas.

Notava-se a ventilação da ventoinha.

Avelino saiu daí e desceu as escadarias duas a duas, precisava chegar à rua, de se sentar, de fumar um cigarro, de ver gente e carros a passar, de ver vida.

Picado quando o viu, foi direito a ele, estava aflito, com o lenço limpava a testa mas também a espuma dos cantos da boca.

- Entre para o carro Avelino, conduza, nem sei como lhe dizer isto. Arranque a caminho da Aldeia do Cano e quando sair da cidade, pare à beira da estrada pois tenho algo muito importante para lhe contar e tem que me prestar atenção.

Avelino arrancou, mas intrigado perguntou:

- Alguma coisa de grave?

O Senhor Picado respondeu apenas:

- Porque me escolheu a mim para uma coisa destas? Vamos ver se chegamos a tempo.

- Onde?

- Pára o carro quando puderes.

Já na estrada, aproveitou uma entrada para um monte que tinha um portão fechado e uma pequena entrada já fora da estrada e meteu o carro aí. Travou-o. Desligou o motor.

- Conte Senhor Picado, não aguento a curiosidade e o seu aspecto é de que algo de grave se passou. Foi a conversa que teve com o meu tio Zé Boavida?

- Dá-me um cigarro aceso.

- Mas o Senhor Picado não fuma.

- Pois vou fumar. Conheço o teu tio há mais de cinquenta anos e nunca me falou deste assunto, que desconhecia completamente, mas que me meteu numa hora destas dentro dele. Pediu-me que não contasse a ninguém, nem a ti, mas caramba és um homem e eu não me sinto preparado para fazer sozinho o que ele me pediu. Vem comigo por favor e nunca contes à tua família, pois é um segredo que só ele e Pituca sabem e que Pituca nunca o deixou tão pouco pensar nisso, nunca mais, quanto mais falar. Um segredo que preciso que me ajudes e esqueças também. Disse-lhe que sim, para não o deixar morrer com esse remorso de consciência. Bem, Avelino, tens uma prima.

- Tenho várias.

- Sim, mas tens uma do teu tio, filha de uma criada que lá trabalhou em casa.

- O meu tio com uma filha? Da criada? Porque precisa de me contar?

- Porque tens que vir comigo à Aldeia do Cano, procurá-la e dizer-lhe que o pai está a morrer e quer vê-la.

- Não lhe pediu a si? Não lhe contou a si? Que vou eu lá fazer?

- Ajudar-me, não me deixes sozinho, não tens que dizer nada. A mãe chama-se Beatriz, casou e a menina, deve ter agora mais de vinte anos, Quem a perfilhou casando com a mãe, chama-se João. Só temos que perguntar pelo sítio onde vivem, pois compraram uma quinta próximo da Aldeia.

- Tenho mesmo que ir?

- Agradecia-te muito.

Avelino meteu de novo o carro na estrada e chegando à aldeia foi fácil saber onde moravam. Era uma Quinta grande. Pararam longe do portão da entrada, viram gente a trabalhar e uma moçoila, franzina e loira sobre um trator.

 Fizeram sinais. 

Chamaram:

- Ó da casa! Ó da casa! – enquanto levantavam os braços para serem vistos.

A rapariga olhou, apesar da distância e do ruído do motor da máquina e aproximou-se. 

Tinha um chapéu de palha e uns olhos azuis que não deixavam dúvidas quanto ao pai. 

O trator ficou ao lado do muro.

- Precisam de alguma coisa?

Foi o Senhor Picado que falou:

- A menina deve ser filha da Senhora Dona Beatriz...

- Sim, sou eu.

Picado continuou:

_ Trago-lhe uma notícia triste, o seu paizinho, José Boavida, está a morrer no hospital da Cidade e queria vê-la antes de fechar os olhos para sempre.

Empertigou-se, levantou-se do banco, ficou de pé sobre o trator, zangada mesmo, revoltada e a perder as estribeiras. Apontou para o fundo da quinta onde um homenzito cavava:

- Vê aquele homem ali a trabalhar? Esse sim é, e será sempre o meu pai, criou-me e deu-me amor. Diga isso a esse senhor e que morra rápido, que o inferno o espera há muito tempo.

Meteu a primeira no trator e começou a afastar-se, terra abaixo, recomeçando o trabalho como se nada se tivesse passado.

Picado e Avelino ficaram a olhar um para o outro.

- Que fazemos agora?

- Nada. Eu digo-lhe que a não encontrei, não lhe dou um desgosto destes.

Não foi preciso, pois quando chegaram ao hospital, já Pituca se agarrou a eles, ainda o viram, mas já morto.

- Foi melhor assim – pensou Picado.

Aquela cara ficou-lhe escondida na memória, era ela, Preciosa, a mulher de Sebastião era filha do tio José Boavida e só ali, naquele funeral triste, olhando para ela, chorosa mas altiva, recebendo do coveiro a chave da urna, triste pelo suicídio, se deu conta de onde a conhecera.

Quando se despediram no fim do enterro, abraçou-a e beijou-a, mas por dentro sentiu-se envergonhado, quase culpado, pelo que quando abraçou Sebastião teve que dizer-lhe:

- Amigo, logo que te sintas melhor, que tenham feito o vosso luto, temos que falar.

Abraçou-o com força:

- Lamento imenso!

                                                               (...)


in A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
A publicar por Filigrana Editora

miércoles, 27 de mayo de 2020

MARGENS DE UM RIO VIOLENTO / CAPÍTULO 35 / OFERTA DE LEITURA





35.

Entrara já sem receios a noite. Tudo estava adormecido. O monitor de serviço ao primeiro piso ressonava prazenteiramente. Os rapazes meio destapados, pernas caídas das camas, sonos soltos, sonhavam com heróis e gaivotas.

Apenas dois estavam acordados esperando a totalidade da noite e do silêncio.

- Estás pronto?

Os rapazes deslizaram das camas, passaram ao corredor de mãos dadas entre a aventura e o medo. 

Frente à porta do quarto vazio de Sérgio, pararam.

- O professor ainda cá não dorme. Anda, descemos pela janela do quarto dele.

Entraram os dois no quarto e fecharam a porta.

- Podes acender a luz, mesmo que o monitor veja luz por baixo da porta não se atreve a dizer nada, porque pensa que é o “profe”.

Popular olhou para a mala aberta e com as camisas ainda alinhadas sobre a cama, depois para Chico Orelhas:

- Não lhe tocamos. Até ver, o “gajo” não parece chato, até deu tabaco à malta.

- Engraçado pá, parece que conheço aquele sacana de qualquer lado…

- Deixa lá isso. O que é que fazemos agora? Aonde vamos?

- Fazer uma visita ao quarto do Director que está de fim-de- semana.

Popular abriu a janela do quarto e saltou para o alpendre. Chico imitou-o. Já na rua correram com as sombras para o bloco da Direcção. 

Treparam a janela. 

Partiram o vidro e entraram.

- Sacaste os fósforos na cozinha?

- Estão aqui.

- Acende um.

Uma luz ténue iluminou o local.

- É aqui que o labrego dorme. Olha está ali uma vela.

- Porra! Queime-me. Onde é que está a vela?

Sobre a mesa de cabeceira do quarto do Director estava uma vela que logo foi acesa.

Chico Orelhas disse baixinho:

- Se os “gajos” sabem que nós aqui estivemos…

- Vão saber que cá esteve gente – disse Popular – mas daí até saberem que fomos nós… - e com um esticão tirou a roupa da cama e atirou com ela ao chão.

Chico abriu a gaveta da mesa de cabeceira e exclamou admirado:

- Franco, está aqui uma pistola.

O Popular pegou nela. Observou-a.

- Está carregada.

- O sacana tem medo de nós e à noite dorme com esta merda… carregada. Seria capaz de nos dar um tiro?

Abriu a porta debaixo da mesinha, tirou o bacio, urinou nele e atirou a pistola lá para dentro.

- Também tenho vontade – abriu as calças – cá vai disto.

Depois ataram as peúgas que estavam na gaveta umas às outras e penduraram-nas do candeeiro do tecto.

- Chico, olha o que aqui está!

- Camisas de vénus?

- Mas p´ra qué c´o gajo as quer? Quem é que aqui dorme com ele? Estas vou eu levá-las.

Guardou o pacote de preservativos no bolso das calças.

- Vamos tirar os quadros das paredes e as roupas do roupeiro.

Quando o quarto estava em desalinho, Popular tirou o fio de prata do bolso, olhou para Chico e sorriu.

- Mas isso é o fio do Pirata.

- Também tu o conheces. Toda a gente o conhece – e deixou cair o fio de prata junto de um dos pés da cama.

Só aí Chico Orelhas percebeu tudo e satisfeito disse:

- Vamos embora, está tudo feito.

- Tudo ainda não. Mas já não é aqui. Vamos embora.

Saltaram para o chão deixando a janela aberta. Atravessaram todo o pátio. Treparam ao alpendre e entraram pelo quarto destinado a Sérgio que ainda se mantinha com a luz acesa.

Depois, pé ante pé, dirigiram-se para a camarata onde perto da cama do Pirata o Franco disse ao Chico:

- Vai além e tira o saco que está debaixo da cama do porco, com cuidado não vá ele acordar.

Chico, deslizando, apanhou o saco do Pirata, abriu-o e Popular tirou do bolso o pacote dos preservativos e atirou-o lá para dentro. Tornaram a fechá-lo e meteram-no novamente debaixo da cama do Pirata.

Deitaram-se depois calmamente e ficaram em silêncio a olhar o tecto.

Anicharam-se mais nas suas camas.

Puxaram as cobertas.

Chico Orelhas disse baixinho:

- Franco, agora sim está tudo pronto – e ambos comprimiram as bocas contra as almofadas, tal era a força das gargalhadas que teimavam em sair contra o silêncio.

- Morde a língua!!

E ambos com a língua entre os dentes, oprimindo o riso e o nervoso, esperaram o amanhecer.

                                                                               (...)

in Margens de um Rio Violento
Publicado por Filigrana Editora.

viernes, 22 de mayo de 2020

A TABERNA DE AVELINO CAMEJO / CAPÍTULO 19.




19. Os sapatos

Não sem um sorriso, sempre que tirava a caixa onde estavam guardados os seus melhores sapatos, azuis escuros, de camurça aveludada, Avelino olhou para eles, tirou-lhes os papelões que lhe mantinham o formato e calçou-os.

Era um dia importante, o baptizado da filha de Sebastião e Preciosa, e onde os padrinhos seriam Ludo e Mabilde, a esposa de Avelino, deixando-o de fora assim como Teo.

Todos concordaram, não podia a criança ter tantos padrinhos e madrinhas e assim estava reposta a amizade entre todos, embora, Preciosa fosse quem mais insistisse nesta solução, no fundo, dos dois amigos do marido, Avelino era o que menos gostava e ia-se transformando pouco a pouco em silêncio entre ambos e num respeito surdo impeditivo de gracejos. 

Afinal Pituca, vivia com o sobrinho e mesmo que se esforçasse, um resistente odiozinho tinha-se instalado nela.

Um dia Avelino disse-lhe:

- Prima...

- Somos de família há tempo insuficiente para me tratares assim. Chamo-me Preciosa, como sempre.

Desde esse dia, Avelino escolhia as palavras e embora risse e partilhasse das brincadeiras, com ela, tentava sempre não se precipitar.

Olhou para os sapatos nos seus pés, no fato claro que a Primavera já chegaria e trancaria o escuro para os festejos do Inverno. Viu-se ao espelho. Faltava a gravata pendurada e o nó do pescoço, mas isso seria Mabilde a fazê-lo, por isso, enquanto ela estava na casa de banho maquilhando-se, bateu à porta e sem abrir disse-lhe:

- Tens que me dar o nó da gravata.

- Já vou amor, estou quase.

Avelino sentou-se na cama, olhou os sapatos e recordou a morte do tio José Boavida.

Foi a tia que o vestiu com a ajuda de uma amiga e ele apenas o ia virando, depois de o terem lavado com uma esponja, lhe terem feito a barba e até, imaginem, lhe terem cortado as unhas dos pés.

- Ajuda aqui.

Avelino colocou-o de lado para lhe vestirem uma camisa, calças perna a perna, meias e gravata azul. Colocaram-lhe os óculos, juntaram-lhe as mãos e conseguiram meter-lhe na boca os dentes postiços. 

Parecia um noivo adormecido. Penteado e limpo, mas quando a tia apareceu com os sapatos achou que estavam velhos e usados.

- Avelino, vai lá acima à Rua do Comércio, à sapataria do Lino e compra um par de sapatos novos para calçarmos ao tio. Diz-lhe que a tia depois faz contas com ele.

Avelino, necessitado de sair daí, aproveitou e foi comprar uns sapatos ao tio morto. 

Tinha estado, durante os dias em que chegou o internamento do Tio Zé, pelas manhãs perdendo-se num gastar de tempo, até chegar a hora das visitas.

Dentro do quarto apenas podia estar a tia e se houve coisa que o atraísse como as séries da MEO, eram as lojas, onde se perdia nas suas montras, enquanto o relógio passava e uma delas era a da sapataria do Lino, onde a família era cliente há muito tempo.

Na montra tinha uns sapatos bonitos, azuis, pareciam camurça e tinham um azul escuro aveludado. 

Olhou para eles vários dias em que subia e descia a Rua do Comércio, abalroada de gente e carros.

Dizia-se nessa altura que a Câmara a queria transformar em via peatonal.

Os sapatos eram tão bonitos que várias vezes esteve para comprá-los, mas tinham que ser muito bons, porque o preço era impeditivo.

Talvez no Natal, com o subsídio de férias...

Foi por isso que quando a tia lhe pediu para comprar os sapatos, custassem o que custassem, o primeiro que fez foi ir à loja do Lino  comprá-los.

Antes do empregado os meter na caixa, tocou-lhes, dobrou-os e sentiu a elasticidade, afagou-os e sentiu a suavidade da pele, eram cosidos, uns sapatos perfeitos.

- A minha tia depois faz contas consigo.

- Dê os nossos sentimentos à sua tia e ela que não se preocupe agora com isso.

Continuou a olhar o espelho e Mabilde saiu da casa de banho, maquilhada, perfeita.

Ainda conseguia estar mais bonita do que nas fotografias espalhadas pela aldeia, de chapéu e óculos escuros, o nome por cima de IVAP, que as eleições estavam à porta.

Sempre acabaram por ter de pagar uma multa pelos acentos agudos, uma ninharia, porque a justiça é barata para a política, limparam as placas identificativas das entradas da Aldeia, da Vila e da estrada de circunvalação.

- Estás tão bonito, Avelino.

- Tu sim, estás bonita, porque não te pintas assim sempre, para mim?

Mabilde riu e começou a vestir-se.

Avelino baixou à cozinha onde já estava a filha pronta para o baptizo.

- Pai, há quanto tempo não te vejo tão bonito, de fato, gravata, sapatos elegantes, a cheirar tão bem...

Avelino fez um café de saco e sentou-se para o beber, mas logo que se sentou, os olhos caíram de novo para os sapatos e começou novamente a recordar.

Lembrou-se de quando chegou com eles à casa da tia.

- São bonitos, foram caros?

- Um pouco – e disse-lhe o preço.

- Bem, o melhor para o tio, e ficam bem com a gravata.

Pituca começou a desapertar os sapatos que já tinha para lhe calçar os novos e foi aí que Avelino soltou:

- Mas esses sapatos estão bons, pensava que estavam piores, é uma pena levar estes, afinal num par de meses já estão piores dos que tem calçados.

A tia Pituca pensou:

- Isso é verdade, mas já estão comprados, parece mal devolvê-los ao Lino.

- A tia não disse que tem roupa do tio que quer deitar fora e se eu a queria?

- E bastante contente fiquei de não te importares de ficar com a sua roupa, ele também era muito teu amigo.

- Tia, também não me importava de ficar com os sapatos, e escusa de passar pela vergonha de devolvê-los.

- Tens razão, é uma pena serem enterrados.

Foi assim que Avelino ganhou um par de sapatos, novos, a estrear.

Mabilde desceu, vinha linda, saltos altos, vestido claro que lhe assentava como uma luva, Avelino impecável no seu fato e a filha, sempre bonita, desta vez com um toque de sombra nos olhos que a mãe autorizou.

Mabilde fez-lhe o nó da gravata e assim saíram os três rumo à igreja da cidade onde estava marcado o baptizo e depois dali para o local do repasto, telefones carregados para as fotografias.

- Está tudo? Não falta nada? Levas as velas e os presentes? A concha de prata para o Padre utilizar e o frasco com água do mar Morto que pediste à Odete quando foi com o pai de excursão? a Israel? que trouxe para baptizares a tua afilhada? E a vela com o lacinho? E os cartões da tipografia para os convidados?

- Levo tudo!

- Ai, por falar em vela eu esqueci a da minha prenda – disse a filha, que levava de presente um livro para as fotografias e uma vela gorda com números até cem, para que em cada ano acendesse, pois segundo lhe disse o vendedor, demorava 24 horas a arder de número para número – vou por ela ao quarto. Espera.

Saíram finalmente de casa, no novo carro que Avelino tinha comprado para não utilizar a carrinha com cheiro a vinho, em família, um Datsun 1600 de cor vermelha.

Mabilde ia ser madrinha de uma bebé baptizada com água de Jerusalém e que anos mais tarde viria a ser enfermeira, pois ainda muito pequena, as suas brincadeiras eram dar injecções às bonecas.

Foram os pais que lhe escolheram o nome, Fernanda, como a avó paterna, que a menina não chegara a conhecer, mas que influenciada pela mãe, amava sem nunca a ter visto. 

Já sobre a tia de Avelino que continuava a viver em casa da madrinha, durante todos esses anos em que se formara como enfermeira, nunca a viu, nem nunca lá foi a casa, custava-lhe, pois apenas conhecia a história que a mãe lhe contara, sempre com cheiro a veneno e mal estar.

A única coisa que Avelino não esperava é que o linguarudo do Sebastião, logo que o viu, atirou-lhe:

- Olha o sovina com os sapatos que sacou ao velho no dia do enterro.

Maldita a hora em que lhes contou essa história uma vez.

Ficou o grupo todo sem entender e a olhar os sapatos bonitos de Avelino.

Não se dando por satisfeito, ainda disse à mulher que estava como todos menos Ludovino, sem perceber nada:

- São os sapatos do teu pai.

Muito séria, quase estragando a festa, Preciosa respondeu:

- O meu pai chamava-se João!

                                                                 (...)

in A TABERNA DE AVELINO CAMEJO
...a ser publicado quando a Covid passar...


lunes, 18 de mayo de 2020

A MULHER DO SARGENTO ESPANHOL / CAPÍTULO 3 (Cheirinho)





3. A Chegada do Professor Primário

Chegou  à  aldeia  com  uma  mala,  em  1970.  Pousou-a  no  chão  do  café  da  Josefa quando ainda estavam vivos e faziam parte do pulso da aldeia, o marido de um lado e o Esteves do outro da estrada. 

Nesse ano, era o Costa um rapaz que caçava ninhos, a filha da Josefa ajudava  no  café  quando  saía  da  escola,  a  Mariana  nem  sonhava  vir  a  casar-se  com  o Fagundes Fonseca e a Glorieta ainda fazia os petiscos da taberna.

Tal como o leite que começa a ferver, nada estava mudado, mas tudo estava em mudança.

África continuava a ter províncias portuguesas. A guerra estava assumida como quem tem que  vestir  um  casaco  quando  faz  frio.  

As  previsões  eram  meteorológicas,  e  as  gentes, acostumadas  aos  enganos  dos  boletins  da  televisão,  sabiam  que  se dissessem  que  iria fazer sol,  poderia chover, ou se dissessem que as trovoadas ameaçariam, poderia sair um dia de céu azul e limpo. 

Pelo sim pelo não, saía-se sempre com o guarda-chuva, pois os 
barcos iam e vinham e os homens iam sem saber se voltavam. 

O Eusébio aterrorizava o Sporting, mas não o suficiente para que o Benfica não perdesse o campeonato nesse ano. 

Lembram-se do Dinis? Foi ele quem marcou o golo que derrotou o 
Benfica. 

Ana Maria Lucas ganhou o concurso de Misse Portugal, Joaquim Agostinho a Volta e tudo era mexido, e dado a dedo, a quem via a RTP 1 com menos de 12 horas por dia de emissão e pela RTP 2 que não chegava às 3 horas diárias, com a grande antena de ferro no 
início e a bandeira mais hino no final.

Começava,  no  entanto  a  sentir-se  a  fervura,  pois  a  licença  de  isqueiro  acabou  em  maio, Simone de Oliveira apesar de insultada, continuava a cantar “a desfolhada”, fazendo filhos por gosto na exaltação do vermelho milho rei, e Salazar, depois de dois dias no Mosteiro dos  Jerónimos  em  câmara-ardente,  partiu  para  Santa  Comba  Dão  em  retiro  perpétuo, depois de grande passeio numa carrinha, dessas dos hippies, Volkswagen, cortada a partir da cabina para a urna ser visível e despedir-se do país em caixa aberta.

A  mala  do  viajante  chegado  ao  café  da  Josefa  tinha  os  cantos  cobertos  com  metal, cantoneiras que  reforçavam  a  proteção  do cartão.  Era  castanha  escura,  e  os  dois fechos 
dourados com buraquinho para a chave fazia adivinhar o grande diário que em si mesma continha.

Colocou o chapéu de feltro no balcão como quem coloca uma pedra de damas em tabuleiro de mármore. Agarrado por cima, com cuidado e precisão. O homem procurava uma pensão. 

Depressa correu pela aldeia que o novo professor tinha chegado.

Fernando António Figueiredo Mata, seu nome completo, Fernando Mata, o que utilizava, só Fernando para amigos íntimos e família, e o Batalha, como era conhecido na tropa, não por ter participado em alguma de referência, mas porque tinha nascido no local, perto de Leiria, onde D. João I mandou construir o Mosteiro que embora tenha o nome de Santa Maria da Vitória é conhecido apenas por Mosteiro da Batalha, esse sim em homenagem à sessão de 
pancadaria entre Portugal e Castela e que como um foguete de lágrimas deixou pinceladas de  cor  nas  lendas  de  um  povo  que  queria  ser  país:  a  Padeira  de  Aljubarrota,  a  Ala  dos 
Namorados,  a  grande  ideia  da  colocação  das  tropas  em  quadrado,  com  os  cavalinhos espetados nas lanças das valas e a castelhanada, com as pesadas e lustrosas armaduras, no chão, sem se levantarem do peso e com as gargantas, os sovacos e as partes baixas ao alcance das lendárias espadas Alfagemanas de Santarém, e por aí fora, porque país sem história é apenas povo, e esse é sempre anónimo, herói sem nome, acabando sempre num só símbolo de soldado desconhecido, em campa rasa.

A gaiatagem depressa se dedicou a espiar o novo professor que dentro de dias iria partilhar o mesmo espaço na escola, mais os rapazes do que as raparigas, pois as meninas eram todas alunas da Dona Antónia Tavares, que fazia já parte da aldeia como o coreto, o mesmo que seria responsável, anos mais tarde, pelos falsos gases da filha da Josefa.

Da  primeira  à  quarta  classe.  Duas  salas.  Rapazes  e  raparigas,  um  professor  a  quem chamavam Senhor Professor e uma professora a quem chamavam Minha Senhora. 

-Já  avisámos  a  Alzira,  Senhor  Professor,  o  melhor  quarto  da  Pensão  Luz  está  a  ser preparado para si.

Fernando Mata sorveu o café.

- A escola não tem casa?

- Ter tem Senhor Professor, a Dona Antónia ainda aí morou, mas já lá vão muitos anos, está a ver, o filho mais velho dela está agora na tropa e era pequenino quando vieram para a aldeia...

Novo sorvo.

- Está suja?

-  Suja?  A  cair  de  podre  Senhor  Professor  e  cheia  de pombos,  autorizados  pela  Junta  à Sociedade Columbófila da terra.

Último sorvo. Chávena solta no pires, chapéu na cabeça e mala na mão.

-  Bem, vamos lá então conhecer a Alzira, casa de pombos, casa de tombos  –  e riu-se, pelo que todos se sentiram na obrigação de rir também.

Uma  lambreta cinzenta  parou  na rua.  Duas  referências  brancas,  os  dentes  e  o  colarinho, estenderam a mão num cumprimento de cumplicidade. 

A igreja e a escola encontraram-se na rua principal. 

-Sou o padre Cabral, dou-lhe as boas-vindas.  

O professor tirou o chapéu e soltou o nome Fernando. Trazia o convite para o chá em casa da Dona Antónia, às dezassete horas, estaria também o farmacêutico. Chá ou vinho enrolou com
palmadinha nas costas o padre Cabral.

A Pensão Luz era uma casa de família, com quintal e cão na frente. 

Uma escada com grade de ferro pintada de branco levava à porta principal. 

Duas  laranjeiras de laranjas no Natal e um  limoeiro  de  limões  todo  o  ano  eram  vistas  de  cima  na  porta  de  casa.  

Alzira  alugava quartos, e tinha hóspedes certos como o Chefe dos Correios, o Gerente do Banco Nacional Ultramarino  e  agora  o  professor.  O  quarto  era  limpo,  sem  luxos,  pequena  mesa  com 
candeeiro de bicha metalizado e com uma janela como um olho gigante sobre a planície.

Alzira era filha de Dona Francisca, a fundadora da pensão, e de Luís Pinheiro, hoje já na casa  dos  que  Deus  tem.  Foram  os  pais  que  depois  de  anos  emigrados  em  França, trouxeram  as  poupanças  e  construíram  a  casa.  

Deixaram  de  fazer  camas  lá,  para  as fazerem cá, de jardinarem lá, para jardinarem cá, de cozinharem lá, para cozinharem cá, no 
que era deles. 

Os sacrifícios que passaram muitas vezes com as estrelas a
servirem-lhes de teto, levaram-nos a chamar Luz à pensão.

A sua estrela arrancada aos céus franceses, a sua luz colocada na sua aldeia. 

Hoje era Alzira que fazia as camas, lavava as toalhas, fazia as comidas e regava o jardim, onde  duas  santinhas  de  pedra  estavam  colocadas  lado  a  lado,  a  Virgem  de  Lourdes  e  a 
Virgem  de  Fátima.  Quando  o  pai  era  vivo,  chegaram  a  ter  sempre  duas  bandeiras desfraldando  com  o  vento  ou  adormecendo-se  nele,  a  tricolor  francesa  e  a  bicolor 
portuguesa com a sua esfera armilar, cujos caminhos também tinham ensaiado. 

Alzira tinha um irmão, mas esse, como todos os irmãos da mesma idade, estava para África, forçando a que a bandeira das quinas se mantivesse noutro mar, mesmo com mortes no capim. 

Pelas  dezassete  horas,  o  professor  Fernando  Mata,  estava  a  ser  recebido  em  casa  da colega  Antónia,  onde  já  estava  o  padre  Cabral  e  o  farmacêutico  Luís  de  Sousa.  Uma serviçal com avental branco trazia a bandeja de prata com o bule a fumegar. Falou-se do tempo no início e em  política no final, sem discussões, todos os presentes eram defensores do  hino,  da  bandeira  e  do  patriotismo.  

-Como  veio  para  professor?  Por  vocação. - E  você Padre? Por vocação. - E você Doutor? - O farmacêutico sem mexer um músculo, mas também sem modificar uma letra ou entoação, disse também:- Por vocação. 

Mentiam todos.

A  única  acariciada  pela  vocação  era  a  Dona  Antónia,  que  desde  pequena,  brincava  às escolas e aos puxões de orelhas. 

O Padre Cabral, nascera em Alcaria, uma aldeia da margem do Zêzere já crescidinho pelos degelos da Serra da Estrela, mas onde a pobreza era escura como a broa e onde o chão, rochoso, era inimigo da fartura. 

Na escola, o menino Cabral filho do coveiro da aldeia era esperto  para  as  letras  e  quando  chegou  a  altura  de  decidir  sobre  emigrar  ou  seminário, optou pelo seminário e acomodado por lá ficou. 

O  farmacêutico,  bem  que  gostaria  mais  de  se  ter  dedicado  às  letras,  especialmente  à poesia, mas a farmácia acompanhava a família desde os avós e era um destino. Foi para Lisboa a mando do pai onde foi um aluno medíocre na Faculdade de Farmácia e acabou o curso  a  pago  de  perus  no  Natal,  borregos  na  Páscoa  e  fruta  fresca  todo  o  ano, acompanhado de imensos pedidos e recomendações de um primo da mãe que era ministro. 

Fernando Mata acabou professor por amor. Com quinze anos, viveu o seu primeiro romance de borboletas e água das pedras com a filha de um funcionário público. Com dois anos de mãos dadas escondidos nos jardins públicos, ou descendo e subindo as ruas lado a lado, confessaram  um  ao  outro  futuro  eterno.  Quando  a  escola  do  Magistério  Primário  se estendeu da capital de província para a capital do distrito, o sonho de ser professor mostrou-se  fácil  à  carteira  do  pai  que  assim  pôde  mandar  estudar  os  filhos  sem  necessidade  de deslocá-los.  

Maria  Catarina  passou  assim  a  usar  bata  branca  e  a  juntar-se  às  cinquenta meninas  que  iriam  dois  anos  depois  ser espalhadas  pelas  escolas  públicas  do  regime. 

Bastava-lhes  naquele  tempo  ter  um  sentido  rigoroso  da  moral,  acreditar  na  trilogia  Deus, Pátria e Família, usar meias de vidro e saias dois dedos abaixo dos joelhos. 

Calças nunca. 

O diretor tinha até o chefe dos contínuos autorizado, a que ao subir as escadas que levavam às  salas  de  aula,  pudesse  beliscar  as  pernas  das  futuras  senhoras  professoras,  com  o objetivo  de  ver  se  tinham  ou  não  meias  e  de  imediato,  caso  tocasse  as  pernas  nuas  e firmes,  comunicar  à  Direção,  que  neste  caso  era  ele,  o  Diretor,  nomeado  por  Diário  do Governo em cargo perpétuo.

As meninas com namorado tinham-nos todos em fila, de casaco, gravata e lenço no bolso, esperando a saída da escola a trezentos metros daí, numa linha de meta imaginária, frente à  tasca  do  Capote  na  rua  que  baixava  para  o  Café  Alentejano,  a  sala  de  espera.  

As namoradas  chegavam,  e  eles  ali,  sem  dar  um  passo,  que  encurtasse  a  distância  fixada. 

Uma  ou  duas  com  mais  idade,  já  com  casamento  autorizado  para  os  poucos  meses que faltavam para a queima das fitas e a missa da praxe, podiam ser levantadas na porta como encomendas desde que os destinatários nunca entrassem no  edifício, e sempre depois de uma  autorização  escrita  do  pai  da  menina  entregue  ao  diretor,  em  papel  azul,  de  vinte  e cinco  linhas,  selado  e  começado  sempre  da  mesma  maneira:  Eu…  abaixo  assinado  –  e acabado também formatado, assinatura e data depois do: Pede deferimento.

Aqui começaram os problemas de Fernando Mata. 

O  governo  de  Salazar,  pai  exemplar,  acima  de  cada  pai,  foi  quem  criou  a  lei  sobre  as autorizações  de  casamento  das  senhoras  professoras.  Se  lhes  pagara  a  formação,  e  lhe 
pagava um ordenado sentia-se na obrigação e o pior era que no direito também, de protegê-las, como pastor de ovelhas com dono.

Havia que evitar a todo o custo a figura parasitária do marido da professora, que corrompia a moral e sem trabalho vivia de um ordenado que não era seu. Então, naquela ânsia de tudo ter bem atado, num novelo cuja ponta estava sempre nos seus dedos, o governo da nação proibiu o casamento das senhoras professoras 
com  quem  não  tivesse  um  emprego  digno,  como,  para  eles,  empregado  de  banco, funcionário  público  ou  empresário  com  provas  dadas  e  salários  superiores  e  onde  o casamento  entre  professores,  senhor  professor  e  minha  senhora,  era  o  mais  autorizado, como também o era o de minha senhora e funcionário das finanças.

Viu-se  assim,  Fernando  Mata,  por  amor  a  Maria  Catarina  a  apresentar-se  ao  exame  de admissão da Escola de Magistério, onde os homens tinham privilégios especiais de entrada, vá-se lá saber por que, pelo menos com professores não se colocava a questão de autorizar casamentos.

O melhor tempo do seu amor com Maria Catarina foi o do seu primeiro ano como aluno da escola, aluno único, com namoro autorizado com a menina da bata branca que estava no segundo e quase a sair como professora, quase pronta para escrever nessas almas infantis, como dizia Junqueiro, gravado no parque infantil da Cidade, essas almas virginais onde tudo quanto nelas se grava não se apaga mais, quase preparada para escrever e gravar, nessas 
almas  brancas  como  a  neve,  nessas  pérolas  de  leite,  o  cunho  como  ferrete  de  um  país cinzento que usava as senhoras de bata branca, para unificar o pensamento eternamente.

Maria  Catarina  começou  a  sua  carreira  de  professora  primária  na  escola  de  Monte  Sete, uma herdade com um casarão com oitenta quartos vazios, lareiras apagadas, biblioteca sem ser lida e cabeças de javalis e veados, dentes de javalis, cornos de veado, javalis e veados e  mais  javalis  e  veados  a  forrarem  os  corredores  e  os  salões.  

Fechados  todo  o  ano.  

família proprietária vivia em Lisboa e apenas abriam a casa uma ou duas vezes no outono onde faziam festas após as caçarias com dezenas de carros de marca parados no pátio. A mulher  do  pastor  tinha  a  chave,  a  senhora  Conceição,  e  abria  as  janelas  uma  vez  por semana  para  que  a  humidade  não  embolorasse  a  pele  dos  cadáveres  e  os  tapetes  de Arraiolos. 

Dona Conceição tinha sete filhos e vivia com o marido numa choça de pedra e telhado lusalite todo o ano. A bondade dos senhores era tanta, que construíram uma escola, com  mesas,  cadeiras  e quadro  preto,  onde  o  vento  entrava  pelas  frinchas  e  os  pardais 
defecavam  no  chão.  

Sete  alunos  tinha  a  escola.  

Os  filhos  do  pastor  e  da  senhora Conceição.  

Colaborava  o  Ministério  com  a  bondade  desta  ilustre  família,  motor  de desenvolvimento, empregando logo nas tarefas do campo os alunos a partir dos dez anos, mas ensinando o ofício, tarefa dos pais, bem mais cedo. 

Dar de comer ao gado, ajudar no pastoreio, ordenhar as ovelhas, alimentar as galinhas, cuidar dos cães, soltar as perdizes e bater os javalis nos dias de caçaria. 

Por isso mesmo o Ministério de Educação  agradecia o esforço  colocando  anualmente  um  professor  presente  de  outubro  a  julho,  todos  os  dias, desde que a ribeira não enchesse e
impossibilitasse o acesso. 

Quando as professoras eram insuficientes,  colocavam  o  que  designavam  como  Regentes  Escolares,  que  sabiam  ler, escrever  e  contar,  eram  normalmente  solteironas  e  algumas  vezes, antes  ou  depois, acabavam  como  amantes  escondidas,  dos  donos  das  herdades,  não  todas,  obviamente, algumas havia que colocavam um gosto nas tabuadas, nos mapas, nas réguas de medir e de esfolar, e beatas quase todas, levantavam o dedo aos patrões e ameaçavam-nos com o Bispo.

Nesta  escola  começou  Maria  Catarina  a  trabalhar,  alojada  num  quarto  da  aldeia  mais próxima, indo a casa nas sextas-feiras à tarde onde lavava as roupas da cama e enchia as marmitas  que  levava  com  comida  feita  aos  domingos,  para  aquecer  em  banho-maria durante o resto da semana, enquanto falava de barcos a quem nunca tinha visto o mar, de estações de caminhos-de-ferro a quem nunca tinha visto um comboio, de aviões que sabiam 
ser  pequeninos  lá  no  ar,  viam-nos  às  vezes  quando  passavam  nos  dias  sem  nuvens, embora as abetardas fossem muito maiores e nunca voassem isoladas, e de rios, grandes, dizia a Senhora, e compridos, de norte a sul do mapa de Portugal, maiores,  muito maiores do que a ribeira da aldeia no inverno, embora fossem pequenas linhas azuis que a Senhora dizia  serem  grandes  e  se  a  Senhora  dizia  era  porque  sabia...  e  de  um  outro  mapa  com 
pretinhos nus que cantavam o hino nacional com as bandeirinhas de Portugal nas mãos.

Foi  difícil  o  primeiro  ano  de  trabalho  de  Maria  Catarina  e  o  último  de  Fernando  Mata  na Escola de Magistério. Viam-se pouco. Ele, assediado por quarenta e nove batas brancas, ela rejeitando os presentes que o filho do patrão, o Senhorito, como lhe chamava a senhora Conceição,  insistia  em  trazer-lhe  de  Lisboa,  nas  visitas  que  aumentaram  da  sua  parte  à herdade nesse ano.

Estiveram no verão, já professores os dois, com os pais dela, numa residencial em Setúbal, na Avenida LuísaTody. Da janela do quarto dele viam o Sado e o movimento dos barcos de pesca fronteirando com Tróia. 

Aí passaram horas com planos e beijos, pois à noite, Catarina 
voltava  ao  outro quarto onde  dormia  com  os  pais,  não fosse  o  diabo tecê-las, que  nessa altura o biltre, ao contrário dos dias de hoje, era adverso do prazer.

Foi a última vez que estiveram juntos. 

Fernando Mata  recebeu a guia de marcha para se apresentar no Centro de Recrutamento Militar  de  Leiria,  daí  para  Santa  Margarida  e  de  Santa  Margarida  para  Santarém,  último 
quartel antes de desembarcar em Moçambique.

- Tens que mudar de escola, Maria, não te quero aí sozinha.

Partiu como furriel e juras de se casar por procuração. Fotografia de um e do outro, nos dois lados do mar, frente a frente, só um coração de cada lado, ela com o pai como padrinho, ele 
com alguém de confiança que poderia vir a conhecer e em último caso, um oficial do seu batalhão  que  convidaria  se  necessário,  com  dois  notários  a  perguntarem  se  sim,  se  para toda a vida. 

Os  aerogramas  começaram  a  voar  entre  oceanos,  primeiro  muitos,  depois  menos,  até  se estabilizarem  num  por  mês,  às  vezes  dois,  até  passarem  a  um  de  dois  em  dois,  o  que 
significava  por  ano,  seis  para  lá,  seis  para  cá,  se  o  tempo  se  prolongasse  para  além  da estação das chuvas e do regresso definitivo. 

O furriel Batalha tinha para além de participar nas colunas militares mato dentro, que ensinar a  ler  os  companheiros,  muitos,  que  o  não  sabiam  fazer,  pois  trocaram  cedo  o  giz  pela enxada, pelo cajado, e estes pelas G3 que os acompanhavam a diário e com quem dormiam como  esposas.  

Maria  Catarina  mudou  para  nova  escola,  desta  vez  para  o  Gavião,  onde conheceu a Alierta, uma açoriana desinibida que a convenceu a concorrer para os Açores no ano seguinte. E  acabou por ir, TAP primeiro e SATA depois até às ilhas, onde se sentia 
útil  cuidando  meninos  ranhosos  e  com  a  cabeça  compartindo  os  piolhos  com  o  sonho,  o sonho de embarcar, acenando com lenço branco na proa de qualquer barco que os levasse dali. 

Enquanto  o  furriel  Batalha  pensava  diariamente  sobreviver,  Maria  Catarina  pensava  em viver. Foi assim, que pisou os telhados do vulcão dos Capelinhos, que se molhou nas águas 
quentes das praias de São Miguel, com os pés enterrados na areia preta que fazia com que os corpos em calções parecessem andar todos de peúgas, comeu o cozido à portuguesa feito  nos  buracos  das  furnas  com  o  calor  da  terra,  comeu  figos  no  Pico  das  figueiras rastejantes que saltavam os muros, bebeu vinho de cheiro, comeu ananás e polvo cozido, cavacos  e  lapas,  fotografaram  as  lagoas,  provou  a  aguardente  amarela  de  São  Jorge, respirou as hortênsias que dividiam as propriedades nas Flores, assistiu à captura solidária das últimas baleias, provou o gin tónico do Peter na Horta e até um dia, no Cais, embarcou num navio de carga, o  Ponta Delgada,  e visitou o Corvo, onde o barco ficava fora por falta de  porto  e  os  passageiros  desembarcavam  na  praia  a  remos  como  no  cinema.  Cem habitantes tinha a ilha e moravam na mesma rua em casas sem chaves nem fechaduras e onde existia apenas um veículo motorizado, concretamente um trator que puxava uma zorra e onde os aventureiros turistas pagavam trezentos escudos, para de pé e agarrados uns aos outros, subirem até à cratera do vulcão. 

O furriel Batalha, exatamente onze meses depois de ter sido engolido por África e quando lhe faltavam sete para terminar a comissão de serviço, pediu ao alferes Faial, com ordem de 
marcha  para  férias  merecidas,  que  mandasse  saudades  para  a  sua  terra  e  deu-lhe  a morada de Maria Catarina para que lhe entregasse em mão uma carta, com fotografias suas barbudas e de camuflado, ora encostado a um tanque, ora na asa de um avião parado com focinho de tigre pintado, ora com um pretinho ao colo com a mãe ao lado, de  boas carnes e mamas de fora, ora afagando uma macaquinha com correia ao pescoço, que acabou por 
trazer do Continente Africano e já na aldeia, anos mais tarde e já crescidita, foi levada para a quinta do Papafina, onde muitas vezes os meninos da escola iam  ver África, o nome que tinha a macaca e que era conhecida por todos. 

Tudo  lhe foi  devolvido  quando  o  alferes  Faial  regressou  dos  Açores  para  se  incorporar  à guerra.

- Temos que falar.

Sentaram-se  debaixo  de  um  embondeiro,  duas  grades  vazias  de  cerveja,  de  madeira húmida, como bancos, uma garrafa de VAT 69 a beber sem copo.

- Não a vi. Já lá não está. Não cheguei a dar-lhe nada. Toma. 

Tirou o envelope dobrado do bolso chapado das calças.

- E não sabes nada?

-  Sim pá, é melhor que bebas e esqueças  -  e estendeu a garrafa depois de lhe limpar o gargalo.

Maria Catarina tinha partido para os Estados Unidos, grávida de três meses, deixando os alunos sonhando com barcos, e
acompanhada pelo açoriano que conhecera na Horta e com 
quem combinou passar o resto da vida.

Fernando Mata nunca mais soube nada dela.

Começou a esquecê-la naquela primeira garrafa e apenas ficou com a profissão, da qual passou a viver quando foi desmobilizado e que o levara até a casa da Dona Antónia, para tomar chá com o farmacêutico e com o Padre Cabral.

In A Mulher do Sargento Espanhol
Filigrana Editora