jueves, 6 de febrero de 2014

ANJOS NO TELHADO / DA GAVETA





Havia no telhado, mesmo no parapeito do mesmo, algeirós por baixo, um anjo sentado.

Quem o via, abria muito os olhos, certificava-se que não sonhava e ficava ali, a ver, e muitas eram já as pessoas que estavam ali, a ver, e o primeiro silêncio da noite que o sentou no beiral, era agora um ondular de vozes e dedos espetados para ele.

Tem asas, diziam, e pernas também, é branco. Não, é cinzento. Não, é creme, anjo? Perguntavam, coisa, pensavam, raro, compartiam, e raro mesmo, era não terem medo e permanecerem ali.

Uma voz atrevida, de um gordo fiado na estatura e robustez ouviu-se sobre o burburinho:

- He! Você!

Tratou-o como pessoa.

-Baixe daí, quer cair?

O ser manteve-se com a mesma postura e não respondeu, pernas para baixo na ponta das telhas.

Cair não cai, ouviu-se, tem asas é porque voa, e o bico? Não tem bico, não é pássaro, imaginemos que é alguém disfarçado, asas postiças, vindo de uma qualquer procissão, que perdera a fé e lutava contra o suicídio? Sim, que daquela altura, se anjo não fosse em breve se tornaria, para quem tem fé, para quem não tem, um corpo estatelado no chão, talvez ensanguentado, ossos partidos, certamente, com uma argola de gente em seu redor e ninguém que lhe tocasse, telemóveis muitos, entupindo o 112, pedindo que alguém viesse para lhe tocar.

- He! Você!

O ser abriu as asas, como eram grandes e brancas, enormes, tornando diminuto o corpo, e as gentes, deram um passo atrás com HÓS!, muitos HÓS!!..., cada vez mais altos, ecoando pelas paredes das casas do largo, olhando aquele ser aberto como um pavão, ameaçando voar mas cortejando primeiro.

Foi então que se ouviu um vento sibilino e uma aragem levantou os pêlos, por frio, admiração ou arrepio, das gentes que eram já multidão, e a lua ficou tapada e o som de um bater de asas  enorme ecoou e outro ser alado circundou o sentado, num volteio, numa circunferência aérea que ia diminuindo o diâmetro à medida que baixava, baixava, baixava até se sentar também no beiral ladeando o outro da sua espécie e perante a admiração dos curiosos que não tiravam os olhos do alto, encostaram as cabeças, numa terna carícia.

- He! Vocês!

Ambos abriram as asas, vum, vum, vum e voaram, voaram, voaram até serem pontos minúsculos perdidos nas estrelas pequenas e brancas que polvilhavam a noite.

Um Há! De admiração soou uníssono na rua do bairro.

Todos tinham assistido a um acto de amor, a um enamoramento ternurento de dois anjos brancos, ou cinzentos, ou cremes, ou... que importa?

Anjos e amor.

- Os anjos não têm sexo? Sim têm, só que por serem anjos, não demonstram as diferenças do seu género.

- Os anjos são gays papá?

Puxou a roupa da cama da filha.

Que história mais rara acabara de inventar e lhe acabara por contar.

Teria que reciclar o seu reportório,  teria que se reciclar a si próprio como pai,  jurou que no outro dia, bem cedo, iria à biblioteca municipal requisitar um par de livros do Walt Disney.

Boa noite. Que descanses.

E apagou a luz.

                                                                            Aragonez Marques
                                                                                      ... madrugada de 13/3/2010...

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