5.
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A morte de
Glorieta Esteves
Glorieta
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Esteves começou a sentir um frio
paralisante nos dedos dos pés. Depois esse gelo mole e etéreo começou a
subir-lhe pelos tornozelos até aos joelhos.
Às seis horas e quarenta e cinco, já lhe tinha chegado ao ventre e
lentamente, continuava a subir arrefecendo-lhe os dedos das mãos, numa
paralisia fria que a impediu de carregar no botão da pêra com a campainha, para
chamar alguém. Antes das oito horas, estava gelada e tesa até ao pescoço e
apenas podia mover a boca e os olhos. Exatamente às oito horas e doze minutos,
estava completamente paralisada, sem qualquer sensação de dor e nem as
pálpebras conseguia fechar, pelo que começou a dar-se conta de que deveria
estar morta.
Sentiu a freira entrar na camarata e chamá-la, Senhora Glorieta, Dona
Glorieta, Glorieta. Não foi capaz de responder. Sentiu que lhe tocavam no pulso
e que lhe encostaram a cabeça ao peito e que lhe puseram dois dedos na
garganta, mas não conseguiu dizer nada, mesmo quando as companheiras da
camarata a olhavam entristecidas, o Padre lhe fez uma cruz na testa e a Madre
Superiora suspirou, paz à sua alma, enquanto com o polegar e o indicador lhe
fechou as pálpebras.
A partir daí deixou de ver e apenas ouvia.
Antes do meio-dia chegaram as filhas.
Mariana, Clara e Branca.
Beijaram-na, afagaram-na e pentearam-na. O genro também estava,
sentiu-lhe os lábios quentes na testa fria e o afago na cara. Vou para fora
fumar, disse Carlos Fagundes Fonseca enquanto a mulher e as irmãs a despiram, a
lavaram e a vestiram de novo com roupas que tinham trazido. Sentiu, ou pelo
menos assim lhe pareceu, que poderia mover o dedo gordo do pé e que tal seria
um sinal para que as filhas soubessem que não estava assim tão morta, mas
perdeu todas as esperanças quando lhe calçaram uns sapatos novos, a que tiraram
o preço, acabados de comprar na sapataria do Cunha. Cortaram-lhe as unhas e
sentiu o cheiro do verniz quando as pintaram, juntaram-lhe as mãos e ataram-nas
para que se mantivessem naquela posição de prece, até à eternidade, com um
terço enrolado nos dedos e Clara e Branca, puseram-lhe pó de arroz no rosto,
uma ligeira sombra nos olhos e um pouco de pintura carmim nos lábios.
Deixaram-na preparada para a sua última viagem, tão bonita como quando
esteve presente no casamento de Mariana.
Antes do almoço chegou o Nogueira da funerária e passaram-na para uma
urna almofadada. Glorieta sentiu-se bem e aliviada, pois não fora preciso abrir
com picareta nenhuma porta e muito menos ser baixa, como a irmã, com cordas da
varanda e apenas sabia estar morta porque não necessitava de respirar.
Ouviu perfeitamente o ruído dos gonzos a fechar a tampa e o enrolar de
uma chave na fechadura. Sentiu que a levavam pelo ar e a depositaram num sítio
plano, ouviu um motor a diesel e soube estar a caminho. Ergueram-na de novo,
pousaram-na, e sentiu novamente a chave, os gonzos e a tampa que se abria.
Estava na igreja da sua terra.
O cheiro a cera de velas assim o indicava.
Colocaram-lhe um pano sobre o rosto e sabia haverem flores porque o
perfume a envolvia.
Começou a chegar gente.
Sentia os passos no ranger do soalho e no eco da abóbada. Tiraram-lhe o
lenço do rosto e uns afagavam-lho, outros colavam os lábios húmidos na sua cara
fria, outros limitavam-se a tirar o lenço, olhar como para confirmar se era ela
e colocavam-lho outra vez sobre a face.
Depois de jantar, foi quando veio mais gente. Sentia-o pelo murmurar
cada vez mais alto dos presentes e às vezes detetava alguns risos de
adolescentes.
Com o passar das horas apenas foram ficando os mais próximos e o
silêncio passou a ser maior, tirando o ressonar de Carlos Fagundes Fonseca, que
cabeceava por falta de hábito a noitadas desde que casara.
Amanheceu igual, como sempre, como se a natureza valorizasse pouco o
desaparecimento de uma vida.
Às dez horas, ouviu-se o velho Padre Cabral falar da amiga que os
deixava, do conforto que encontraria junto do Senhor e dos seus Anjos e depois
de dar a comunhão, pediu um Pai Nosso pela alma da irmã Glorieta.
Daí saíram, depois do eterno adeus e da chave que rodou ter sido
entregue a Mariana como filha mais velha.
Baixou à terra com duas cordas e oito braços que a fizeram balançar e
sentiu o ruído da terra sobre a tampa da urna.
Assim morreu Glorieta Esteves sem saber ao certo se estava morta.
(…)
In a Mulher do Sargento Espanhol
... a publicar em breve...
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