RETRATOS DE GENTE EM PROCISSÃO
Livro de Aragonez Marques a sair em Outubro.
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4.
Lado a lado, como quase sempre, o Zé Picado e o Pica-Peixe iam na procissão.
Eram amigos do meu pai e da sua idade, embora me tratassem como se eu tivesse a sua.
Um trabalhava num jornal da cidade, pertença da igreja e o outro tinha uma lambreta, trabalhava na oficina do Domingos & Companhia, pouco gostava de carros ao contrário do patrão, com tudo o que era gincana transformada em taças na vitrina de casa, mas adorava a pesca, que também lhe dava os seus próprios troféus e a barriga saliente nas horas em que o peixe não picava.
Tinham em comum duas coisas para além da amizade. Um curso de cristandade que os transformava em irmãos e os fazia cumprir os calendários da fé e um gosto muito especial pelo tinto e a petisqueira.
Ao ver os dois ali lembrei-me de uma vez ter visto o Zé Picado a substituir o polícia sinaleiro. Para os mais novos, informo que em Portalegre havia nessa altura, que eu me lembre, pelo menos três polícias sinaleiros. Um no Rossio, outro ao cimo da Rua dos Canastreiros e um terceiro ao pé do café Alentejano, mesmo no cimo da Rua de Elvas. Com capacete branco, luvas e tudo.
O sinaleiro do Alentejano é o que mais recordo. Era neste café que se juntava a estudantada do liceu e do Magistério. O tecto repleto de pontas de cigarro atiradas com saliva. Pareciam estalactites às centenas. Uma bica dava uma tarde. Lá dentro, um bilhar levava-nos as moedas. Ainda me parece ouvir o Sr. Roquete quando as bolas saltavam para o chão :
- Partam, partam qu’é pr’a partir!! Porra que nunca mais chegam as dez da noite!
Era para nós a hora amarga do café fechar. Com ele fechava tudo e desaparecia a gente das ruas. Apenas ficava o policia de guarda ao Banco de Portugal, ao pé da fonte da boneca, dormitando numa guarita de madeira que o protegia do frio. Só quando havia algum morto na Igreja de S. Tiago é que a noite ficava com gente fazendo companhia ao policia.
Mas falava eu do Sinaleiro ao pé do Café Alentejano...
Mas falava eu do Sinaleiro ao pé do Café Alentejano...
Habituámo-nos ao som do seu apito, à sua presença, enquanto as horas do dia passavam sobre os tampos das mesas onde repousavam livros e giravam canetas, que ali também se ensaiava o estudo.
Dentro do café havia duas salas reservadas com passagem só para adultos. Uma sala de petiscos e copos e uma outra de batota. Jogava-se cartas e cavalos.
Defeniamo-nos como homens quando andávamos no quinto ano do liceu e passávamos aquela porta. Tínhamos adquirido um novo direito. Tínhamos crescido.
Um dia lá dentro, coelho frito na mesa, várias garrafas da Adega do Corro despejadas, outras tantas a abrir, o Zé Picado veio à porta das traseiras e começou a desafiar o policia sinaleiro.
- Jacinto, anda cá beber um copo !
Aborrecido, o Sinaleiro, com ar infeliz encolhia os ombros e respondia:
- Não posso porra. Mais logo...
O Zé Picado insistiu:
- Jacinto, é só um...
O Sinaleiro hesitou e o senhor Zé aproveitando a vontade que lhe adivinhava, foi até ele.
-Dá cá o apito e vai lá dentro que eu fico aqui.
E foi.
Tirou o capacete branco, pendurou-o do braço e meteu o copo à boca .
O Pica Peixe :
- Jacinto prova o coelho.
E provou .
Lá fora na rua tinha começado o festival.
Braços no ar tocando o apito, o Zé Picado orientava o trânsito com pose.
A cidade era uma família.
in RETRATOS DE GENTE EM PROCISSÃO - Aragonez Marques - 2012 ( a publicar )
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